Para garantir tranquilidade na Copa, AGU conseguiu na Justiça a
proibição de greves, piquetes e bloqueio de aeroportos, rodovias e
entornos de estádios; ação é criticada por defensores da liberdade de
expressão
A poucos dias do final da Copa do Mundo, os procuradores da Advocacia-Geral da União (AGU) estavam bastante satisfeitos. Para eles, seu time jogou bem. “Olha, minha avaliação é extremamente positiva, sou suspeito para falar, mas vejo que a atuação da AGU foi muito articulada, organizada, consistente”, disse ao telefone o Procurador Geral da União, Paulo Henrique Kuhn, à Agência Pública. Ele se referia ao desempenho da força-tarefa da Procuradoria-Geral Federal (PGF) e Procuradoria-Geral da União (PGU), órgãos da AGU, para garantir a manutenção de serviços e acesso aos espaços e vias públicos durante o evento.
Desde maio até o final da Copa, amanhã, 414 advogados e procuradores
trabalham em regime de plantão para monitorar e comunicar “notícias ou
mesmo indícios de paralisações” de serviços públicos, interdições de
rodovias federais e ocupação de prédios públicos – e acionar a Justiça a
qualquer momento. “Vínhamos com um grupo em todo país monitorando
individualmente, junto com as informações dos órgãos de inteligência e
segurança, todas as intervenções que poderiam atrapalhar os jogos”,
completa o Procurador-Geral Federal, Marcelo Siqueira.
Resultado: através de 12 ações judiciais, conseguiram efetivamente impedir ou reduzir greves de 10 categorias de servidores
públicos, proibir manifestações que bloqueassem rodovias federais em 6
estados – Rio Grande do Norte, Pernambuco, Alagoas, Ceará, Paraíba e
Sergipe – e piquetes ou manifestações no entorno do estádio Arena das
Dunas e Arena Pernambuco e nos aeroportos do Rio de Janeiro.
Juntando todas as ações, o potencial de multas diárias pelo
descumprimento das decisões da Justiça a pedido da AGU – no caso, greve
ou bloqueios de vias – seria de R$ 15,8 milhões.
Multa de meio milhão de reais por hora
“Eu nunca vi isso”, diz Rui da Silva Pessoa, presidente do Sindicato
Municipal dos Aeroviários do Rio de Janeiro (Simarj), que se
responsabilizaria pelas multas mais pesadas entre as previstas nessas
ações, se persistisse em greve. Na madrugada do dia 12 de junho,
primeiro dia de Copa do Mundo, a Justiça Federal do Rio de Janeiro
proibiu, a pedido da AGU e ANAC (Agência Nacional de Aviação), piquetes e
bloqueios no interior e no entorno dos aeroportos do Antônio Carlos
Jobim (Galeão), Santos Dumont e Jacarepaguá. A multa era de R$ 500 mil
por hora – ou R$ 12 milhões por dia. “Fizemos uma greve que foi
considerada legal, mas o governo entrou uma liminar aí que foi bastante
pesada. Não restou outra alternativa, tivemos que suspender a greve”,
diz ele.
O sindicato já havia concordado com a
paralisação parcial, em cumprimento a uma decisão do Tribunal Regional
do Trabalho (TRT/RJ) que obrigava que 70% dos funcionários das empresas
aéreas e 80% das empresas auxiliares de transporte aéreo continuassem
trabalhando. Os trabalhadores reivindicavam um reajuste salarial acima
da inflação, um adicional de 5% por produtividade, a revisão dos valores dos benefícios da cesta básica e vale-refeição e um pagamento adicional para a Copa. “Aqui
no Rio tivemos aproximadamente mil vôos extras e não teve nenhum
aumento para o trabalhador. Evidentemente isso veio sobrecarregar o
trabalhador”, explica Pessoa.
Assim, na manhã da quinta-feira, um
grupo de trabalhadores – cerca de 150, segundo o sindicato, e 30 segundo
a PM – fechou uma pista da Avenida Vinte de Janeiro, acesso ao aeroporto do Galeão. Segundo Rui, a escolha da data foi estratégica. “Todas
as atenções estariam voltadas para o Brasil, é a maneira da gente
mostrar que o nosso país não é essas mil maravilhas que o governo tenta
passar para os outros países”.
Mas a passeata, acompanhada desde o começo pelo Batalhão de Choque, não durou muito – foi interrompida por uma liminar da 8ª Vara Federal proibindo manifestações nas imediações e dentro dos aeroportos.
“Conseguimos uma decisão de madrugada”, diz o Procurador-Geral
Federal Marcelo Siqueira. “Estávamos monitorando com apoio dos órgãos de
inteligência e segurança do governo e chegou a informação de que
haveria uma movimentação desses empregados que traria prejuízo à
operação normal do aeroporto. Também havia uma informação de que eles na
madrugada se concentrariam no centro do Rio e se deslocariam em
sequência para a estrada que liga ao aeroporto, para bloquear a estrada.
Com isso [a liminar] realmente conseguimos que quem quisesse viajar do
Rio para São Paulo conseguisse sem o menor problema”, diz o procurador.
Para Rui Pessoa, havia uma preocupação do governo em mostrar
normalidade no país. “Nós sabemos o seguinte: determinação judicial a
gente tem que cumprir. Mas aí foi abuso. Como é que a União, através da
ANAC, entra com esse recurso e é acolhido? Foi um ultimato isso aí: ou
parava ou a gente iria pagar uma multa de 500 mil reais por hora! Aí,
paramos de imediato”.
A rápida ação no caso dos aeroviários do Rio foi apenas uma entre
outras iniciativas da força-tarefa da AGU. Nos últimos dois meses o
órgão conseguiu no Superior Tribunal de Justiça (STJ) a proibição de
greves dos policiais federais, auditores da Receita Federal, servidores
do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), Fundação Nacional das Artes
(Funarte) e Biblioteca Nacional, e dos servidores das instituições de
ensino federais – entre essas a dos trabalhadores da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, onde a seleção dos Estados Unidos fazia
seus treinamentos.
“Essas ações com declaração de ilegalidade de greves mostraram como a
AGU atuaria em relação a todas as categorias, ou seja, a AGU teria uma
atuação firme”, diz o Procurador-Geral da União, Paulo Henrique Kuhn. “A
atuação da AGU e as decisões judiciais serviram como uma inibição para
outras categorias”.
“Essa afirmação demonstra exatamente o espírito e intenção por trás
da ação da AGU: a intimidação”, rebate Paula Martins, diretora para
América do Sul da organização Artigo 19, que tem monitorado a violação
da liberdade de expressão durante os protestos. “É preocupante que a
AGU, além de agir nesse sentido, não se iniba em deixar explícito o uso
abusivo de seu poder para tentar influenciar a decisão de órgãos que
deveriam ser autônomos e independentes em suas ações e decisões”, opina a
diretora da ONG.
Segundo ela, a posição do governo federal contraria o “próprio
conceito do direito de greve: chamar a atenção das pessoas e inclusive
causar certo incômodo para alcançar tal finalidade. “Esse direito é
garantido constitucionalmente. Desde que utilizando meios pacíficos, os
trabalhadores têm direito por lei de tentar dissuadir outros
trabalhadores a integrarem a greve e de tentar convencer a opinião
pública sobre suas pautas e demandas. O direito de greve, nesse sentido,
é também elemento do exercício da liberdade de expressão”.
Lei Geral da Copa
Para o Procurador-Geral, porém, a responsabilidade assumida pela
União na Copa era o maior argumento legal. “Veja bem, o Brasil convidou o
mundo inteiro para vir para cá assistir uma Copa do Mundo, nós temos
que garantir a segurança e a regularidade do evento, sob pena de a União
ser responsabilizada por conta da Lei Geral da Copa. Se um jogo não
acontece, se algo ocorre, a FIFA vai demandar a União. Existem muito
contratos envolvidos nesse evento, prejuízos a patrocinadores, a
consumidores que vieram do mundo inteiro, isso tudo foi previsto na Lei
Geral da Copa que a União poderia ser demandada”, diz Kuhn.
Para os procuradores, a “excepcionalidade” da situação justifica também a expansão da atuação da AGU para além de sua
competência normal. “Uma das questões que mais nos preocupou,
demandou um estudo maior, foi como seria a atuação da AGU em problemas
que não são de sua competência, que envolve Estados e Municípios”, diz
ele. Exemplos: problemas nos serviços de limpeza nas cidades-sede,
transporte público, e policiais militares. “Não tem a atribuição da AGU.
Mas em função das obrigações da União na Lei Geral da Copa nós
estudamos muito essa situação e entendemos que a União teria
legitimidade para ajuizar determinadas ações”.
Foi o que aconteceu com a greve de servidores do transporte público
em Natal, deflagrada dois meses antes do Mundial. O sindicato já estava
cumprindo a determinação da justiça de manter de 70% das frotas de
ônibus nos horários de pico e de 50% nos demais horários. Mas a AGU
queria mais. “Nós entendemos que esse quantitativo era pouco para os
dias de jogos”, diz Kuhn. Assim, obteve na justiça 90% da frota de
ônibus em circulação, sob pena de multa diária de R$ 100 mil, durante os
dias de jogos em Natal. Além disso, os trabalhadores foram impedidos de
realizar ações “tais como o fechamento de ruas e avenidas, depredação
de ônibus e garagens, fechamento dos acessos às garagens das empresas,
impedimento ao trabalho dos empregados que não aderiram ao movimento
paredista, dentre outras que inviabilizem a manutenção do serviço
público de transporte, conforme estabelecido”, de acordo com a decisão
do Tribunal Regional do Trabalho no estado (TRT/RN).
“Foi uma atuação nossa diferenciada, não é o que normalmente
costumamos fazer, mas foi no sentido de garantir uma circulação de toda a
população local e dos torcedores no evento”, diz Kuhn.
A AGU conseguiu também impedir a realização de manifestações que
bloqueassem ou impedissem a locomoção e o trânsito em rodovias federais e
em locais próximos aos estádios e aeroportos do Rio Grande do Norte e
de Pernambuco, principalmente nos dias de jogos. A ação foi iniciada a
partir de informações do setor de inteligência da PRF, segundo as quais
manifestações “combinadas via redes sociais” poderiam bloquear rodovias e
estádios de Natal e Recife.
Apoiada na decisão da 1ª Vara Federal do Rio Grande do Norte, a
Polícia Rodoviária Federal (PRF) ficou livre para adotar “medidas
cabíveis”. A multa por descumprimento da decisão judicial era de R$ 100
mil por hora, no mínimo. “Ninguém, absolutamente ninguém, tem o direito
de bloquear tais vias de acesso e a Constituição adota como princípio
nuclear o da proteção à dignidade da pessoa humana e do direito de ir e
vir”, diz um trecho da decisão, que se estendeu às estradas de Alagoas,
Ceará, Paraíba e Sergipe.
No princípio era a greve da PF
A primeira atuação da AGU para Copa foi em relação ao indicativo de
greve anunciada pela Federação Nacional de Policiais Federais em maio.
Nem mesmo a “operação-padrão”, um esquema de “zelo absoluto”,
verificando as bagagens de todos os passageiros e todos os passaportes,
resultando em trâmites mais demorados, em protesto às condições de
trabalho, foi permitida.
As reivindicações dos agentes, escrivãos e papiloscopistas da Polícia
Federal eram de melhores condições de trabalho e reestruturação da
carreira. “Infelizmente o atual governo tem sucateado a Polícia Federal,
e as péssimas condições de trabalho dos policiais federais nos
aeroportos já foram comprovadas várias vezes por auditorias do Tribunal
de Contas da União”, diz Renato Figueiredo, diretor de Comunicação da
Fenapef.
Acatando a argumentação da AGU, que classificou o movimento grevista
de “abusivo”, a ministra Assusete Magalhães, do Superior Tribunal
Justiça (STJ) determinou o pagamento de multa diária de R$ 200 mil em
caso de greve ou de operação-padrão. “A Copa do Mundo foi um dos
argumentos”, explica o Procurador-Geral da União Paulo Kuhn. “Uma
operação padrão poderia causar um retardamento do ingresso de torcedores
no Brasil, e isso poderia gerar algum tumulto”, diz.
Para Renato Figueiredo, porém, “proibições genéricas” vão “na
contramão da democracia”. “Os movimentos de greve estão sendo julgados
por antecipação, sem que os dirigentes sejam ouvidos, e não sejam
discutidas as razões das greves, que geralmente são a
irresponsabilidade, omissão e descaso dos governantes”, diz.
Além da greve da Polícia Federal, a AGU também atuou para inibir
greves de policiais militares. De acordo com Paulo Kuhn, a PGU ingressou
na ação – já iniciada pelo Ministério Público Federal da Bahia –
pedindo a declaração de ilegalidade da greve dos policiais, o que acabou
ocorrendo em meados de abril. Em relação à greve da PM e dos bombeiros de Pernambuco,
uma ação da AGU conseguiu bloquear R$ 1,1 milhão de associações de
policiais por despesas da Força Nacional, deslocada em maio até o
estado. A greve também foi considerada ilegal.
Para Marcelo Siqueira, da PGF, que também participou da força-tarefa
da AGU, “atuação coordenada da Advocacia-Geral da União garantiu a
movimentação livre das pessoas entre as cidades-sede e o completo
funcionamento das forças de segurança” e se justifica já que essa não é
uma “situação ordinária de segurança pública, por haver chefes de Estado
e delegações estrangeiras no país”.
Ele admite, no entanto, que duas ações ajuizadas não se encaixam
nesses casos: as que resultaram na proibição da greve durante a Copa dos
funcionários do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), da Fundação Nacional
das Artes (Funarte) e da Fundação Biblioteca Nacional (FBN). Todos
esses trabalhadores, vinculados ao Ministério da Cultura, reivindicavam a
implementação da gratificação de qualificação, a racionalização dos
cargos e a equalização dos vencimentos no sistema Minc. “Desde 2007,
quando fizemos greve, houve acordo nesses pontos, e isso nunca foi
cumprido”, diz Andre Andion Angulo, dirigente da Confederaçãodos
Trabalhadores no Serviço Público Federal(Condsef). “O governo lia como
oportunismo, mas a gente enxergou a Copa como uma oportunidade.
Anunciamos a greve dia 12 de maio para ter um tempo de o governo entrar
em negociação de fato com a gente”
O ministro do STJ que analisou a ação, Napoleão Nunes Maia Filho,
acolheu o pedido da AGU e determinou que as entidades de classe se
abstivessem de realizar qualquer paralisação. “Proíbo a realização de
quaisquer bloqueios ou empecilhos à movimentação das pessoas no
desempenho de suas atividades normais e lícitas”, escreveu o ministro.
Todos tiveram que voltar ao trabalho, sob ameaça de uma multa de R$ 100
mil por dia aos sindicatos envolvidos.
“Aqui era mais uma questão de potencializar o que o Brasil tem a
oferecer aos turistas que estão acompanhando o mundial, um legado não só
diretamente ligado aos jogos de futebol”, diz Marcelo Siqueira. “Seria
uma pena que eles [turistas] não pudessem desfrutar do que o país tem a
oferecer. Isso traria um dano para ações futuras de incremento do
turismo, uma fonte de receitas importante para a economia nacional”.
André Andion dá voz à indignação do conjunto dos trabalhadores:
“Nunca antes na história dos servidores da cultura a gente sofreu uma
judicialização do processo, o governo vindo tão pesado, tão violento, e
justo um governo que vem da gestão de um partido chamado dos
trabalhadores”.
Paulo Kuhn não vê, no entanto, limitação ao direito de manifestação.
“Veja bem, temos que diferenciar as categorias. Temos categorias que,
nesse momento, nessa circunstância, qualquer movimentação poderia gerar
algum transtorno”. E, reforça, a decisão final é da Justiça. “Nada é
feito de forma arbitrária. A União tem buscado o poder judiciário, que é
o órgão competente para decidir”.
É justamente essa atuação afinada – todas as ações foram acatadas
pela Justiça – que chama a atenção, destaca Pedro Ekman, coordenador do
Coletivo Intervozes. “A atuação das forças repressivas, a aprovação de
leis específicas ao evento que contrariam a Constituição Federal e as
ações judiciais que cerceiam de antemão a liberdade de manifestação e
expressão são medidas que claramente colocam os interesses privados e a
vontade de controle muito a cima dos interesses públicos e direitos
fundamentais”, diz. “Temos muitos jornalistas internacionais no país, os
olhos do mundo estão todos voltados para o Brasil, e quanto mais
possibilidade de sermos ouvidos mais instrumentos de censura são
criados”. Para ele, “é estarrecedor que essa prática tenha se tornado o
lugar comum da política de hoje”, em que o país vive uma democracia.