Sábado, 12 de julho de 2014
Em decisão histórica, o PM Alexandre Pereira da Silva foi condenado pelo assassinato de três rapazes durante os chamados Crimes de Maio
Laura Capriglione, Joana Brasileiro/Arte e Rafael Bonifácio
O cabo da Polícia Militar Alexandre André Pereira da Silva foi
condenado pelo Tribunal do Júri nesta quinta-feira (10/7) pelo
assassinato de Murilo de Moraes Ferreira, Felipe Vasti Santos de
Oliveira e Marcelo Heyd Meres em um lava-rápido no Jardim Brasil, zona
norte de São Paulo, em maio de 2006. Trata-se de decisão histórica.
Pela primeira vez, um integrante da PM foi levado a julgamento,
acusado de participar de extermínio de civis durante os chamados Crimes
de Maio, ocorridos entre os dias 12 e 20 de maio de 2006. Nesse
período, pelo menos 493 pessoas foram mortas pela PM como represália aos ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC), que assassinou 43 agentes públicos.
Segundo estudo da ONG Justiça Global, que cruzou informações de
órgãos policiais, Ouvidoria da Polícia, Ministério Público, Defensoria
Pública, Judiciário e testemunhas, há “indícios do envolvimento de
policiais fardados ou encapuzados em 122 execuções, ocorridas em
supostos confrontos ou por ações de grupos de extermínio”.
Pelos
três homicídios no lava-rápido, praticados sem que as vítimas tivessem a
mínima chance de defesa, o cabo André (este é o seu nome na corporação)
foi sentenciado a 36 anos de prisão em regime fechado, além da perda do
cargo público. Como cabe recurso, o réu saiu livre do fórum.
A mãe do jovem Murilo, que completaria 28 anos nesta sexta-feira
(11/07), Angela Maria Moraes Ferreira, comemorou a decisão, exausta:
“Foram oito anos batalhando, mas eu consegui fazer justiça.”
O caso só chegou a esse desfecho graças ao depoimento emocionado que
um rapaz prestou no Tribunal. Apelidado de “Assurbanipal” com o
propósito de proteger sua identidade e evitar retaliações, o jovem
relatou as cenas de terror que tomaram conta do lava-rápido localizado
na avenida Ramiz Galvão. Ele já havia contado a mesma história cinco
vezes, em diferentes oportunidades, ao DHPP (Departamento de Homicídios e
de Proteção à Pessoa), da Polícia Civil, que investigou a chacina.
Segundo ele, na noite do dia 16 de julho, entre seis e oito
motocicletas (todas com dois ocupantes) passaram diante do lava-rápido,
anunciando o ataque que viria. Em 30 segundos, voltaram. Foi um
desespero. Os três mortos tentaram esconder-se dentro do
estabelecimento, mas foram colhidos pelos tiros, disparados pelos
matadores.
O feirante Nuri Meriz caminhava de um lado para o outro no Instituto Médico-Legal, mas pouco falava. As palavras eram engolidas com as lágrimas. Nuri limitava-se a exibir a foto de seu filho no celular
O pai de um dos mortos, morador da vizinhança, encontrou o filho que
acabava de morrer, a cabeça aberta por um disparo, jogado em uma poça de
sangue na entrada do lava-rápido. “Minha vida acabou ali.” Ele ainda
acompanhou a remoção do corpo do filho para o Instituto Médico Legal. Um
repórter o viu lá, naquela noite terrível, e registrou: “O feirante
Nuri Meriz caminhava de um lado para o outro no Instituto Médico-Legal,
mas pouco falava. As palavras eram engolidas com as lágrimas. Nuri
limitava-se a exibir a foto de seu filho no celular, o também feirante
Marcelo Heyd Meri”. Marcelo foi assassinado aos 21 anos.
Três rapazes sobreviveram à chacina porque conseguiram se esconder.
Um, no banheiro do lava-rápido; outro, dentro de um carro.
“Assurbanipal” subiu no telhado.
Foi dessa posição que “Assurbanipal” viu quando um dos matadores
deixou seu rosto à mostra. Era o então soldado André (hoje promovido a
cabo). Foi possível identificá-lo porque ele levantou o capacete para
enxergar melhor, a fim de localizar os que estavam escondidos no local.
Hoje com pouco mais de 40 anos de idade, o cabo André é um homem
baixo e atarracado –1,65 metro de altura. Tem o rosto duro, olhar
severo. Fala com voz gutural, quase inaudível –diz que é sequela de um
tiro que recebeu em 2012, durante o horário de serviço. Sobre os
assassinatos, é lacônico: “Não fiz isso. Não é do meu feitio fazer isso.
Nunca fiz. Nunca precisei disso. Estou na PM há 25 anos para proteger,
não para tirar vidas.”
Mas não conseguiu convencer os jurados –quatro homens e três mulheres.
O testemunho de “Assurbanipal” foi peça-chave na argumentação da
promotora Cláudia Ferreira Mac Dowell. Trabalhador, sem antecedentes
criminais, “Assurbanipal”, logo antes da chacina, acabara de concluir o
ensino médio e sonhava prestar concurso para se tornar PM.
“Por que, senão por sede de Justiça, essa pessoa colocaria a própria
vida em risco? Ele teve de mudar de endereço, deixar uma vida para trás.
É um herói”, disse a promotora. “As outras duas pessoas que poderiam
ajudar a esclarecer esses crimes, porque estavam lá, preferiram dizer
que nada viram, que nada sabem. Porque essa saída, é claro, é a mais
fácil.”
“Matavam para vingar as mortes de colegas”, promotora Claudia Mac Dowell
A promotora apresentou aos jurados conversa mantida (via Orkut) entre
dois policiais militares, dois dias depois da chacina. Nela, um PM
reclama com outro: “S…, Chamei você para trincar lá no JB. Agora tá
liberado! Vamos matar PCC. A polícia de verdade voltou.”
Tanto o nome do PM que enviou a mensagem quanto o do destinatário
dela são conhecidos e estão sob investigação. JB é abreviatura de Jardim
Brasil, o local onde se localiza o lava-rápido.
Segundo a promotora, a mensagem é uma confissão de que policiais
militares tinham mesmo saído, durante aquele período sangrento, para o
“revide”. “Matavam para vingar as mortes de colegas”.
O advogado de defesa do PM, o estrelado Eugenio Carlo Balliano
Malavasi (também defende Edinho, o filho do Pelé), partiu para o ataque,
acusando “Assurbanipal” de mentir. Em prol dessa tese, sacou documentos
com a escala de serviço das viaturas policiais, para provar que o
soldado André nunca esteve no local do crime, nem nas proximidades.
Para reforçar sua narrativa, chamou a cabo Patrícia Aparecida
Ferreira dos Santos Souza, que confirmou o álibi, dizendo ter estado com
o soldado André todo o tempo, naquela noite. Mas bem longe do local do
crime.
Foi essa versão dos fatos que predominou no CD (Conselho de
Disciplina) instaurado dentro da PM para apurar as denúncias contra o
soldado André. O CD decidiu por unanimidade que nada houve de irregular
na conduta do PM.
A promotoria desmontou a defesa. Mostrou outros documentos oficiais,
entre os quais o Boletim de Ocorrência lavrado no 39º DP, que cita a
viatura da então soldado Patrícia como tendo participado do “socorro” às
vítimas (logo, esteve na cena do crime). Mesma versão, assinada por um
soldado da própria PM, aparece no Boletim de Ocorrência Militar. “Quem
está mentindo aqui?”, perguntou a promotora. E, gesto trágico, pôs-se a
rasgar os xerox dos documentos que contrariavam a tese da defesa. “Eles
querem que ignoremos isso… E isso… E isso…”
Duas mães de vítimas da violência policial desabaram em lágrimas e
soluços. Tiveram de se retirar da sala, para não atrapalhar o
julgamento.
O advogado de defesa gritava com os membros do conselho de sentença.
“Jurados! Alto lá, senhores do júri! Alto lá, senhores do júri!” E
mencionava a análise que os três integrantes militares do Conselho de
Disciplina fizeram do testemunho de “Assurbanipal”: “Pelas regras da
experiência, sabe-se que testemunhas que presenciam chacinas ficam com a
vista obnubilada. E impossível guardar detalhes. Testemunhas de atos
assim violentos tem as impressões diminuídas e por vezes divorciadas da
realidade.”
“Quando um PM aparece com o coturno sujo ou a farda em desalinho, sofre punições severas. Mas se o crime é sério, aí é outra história.”, defensora pública Maíra Coraci Diniz
Mas também não colou. A assistente de acusação, defensora pública
Maíra Coraci Diniz, interveio para mostrar como o testemunho de
“Assurbanipal” era singular e corajoso. Citou três casos de testemunhas
de chacinas cometidas no mesmo período que acabaram assassinadas.
“Assurbanipal sabe que está arriscando a própria pele ao enfrentar esse
tipo de assassino.”
Por fim, a promotora citou os quatro julgamentos de policiais envolvidos no Massacre do Carandiru (1992), que resultaram na morte de 111 presos.
“Quatro júris decidiram pela condenação de 73 policiais. E sabe qual
foi o resultado das investigações feitas dentro da corporação militar?
Decidiu-se pelo arquivamento, alegando que os direitos fundamentais dos
policiais militares estavam sendo desrespeitados!”
Por coincidência, o júri que condenou o cabo André foi presidido por
Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo, mesmo juiz que presidiu três dos
quatro julgamentos do massacre do Carandiru.
“Não se deixem levar pela emoção dos parentes”, Eugenio Carlo Balliano Malavasi, advogado de defesa
“Quando um PM aparece com o coturno sujo ou a farda em desalinho,
sofre punições severas. Mas se o crime é sério, aí é outra história. Um
caso de violência sexual cometido por soldados contra duas mulheres,
dentro de uma viatura, por exemplo, foi punido com 15 dias de detenção. E
só”, citou a promotora.
Como último apelo, o advogado de defesa repetiu a incoerência entre
alguns documentos e o testemunho de “Assurbanipal” e pediu: “Não se
deixem levar pela emoção dos parentes. Não me façam desacreditar da
instituição do Tribunal do Júri”.
Com a condenação, o grupo de mães e parentes de vítimas da violência
policial de 2006, conhecido por “Mães de Maio” chorou e se abraçou,
assim que o juiz declarou encerrados os trabalhos. “Isso foi só o
começo. Vamos atrás de outras testemunhas. Vamos reabrir os casos
arquivados. A Justiça pode ser feita. E será”, disse Débora Maria da
Silva, coordenadora do grupo e mãe de Edson Rogério Silva dos Santos,
morto aos 29 anos naquele maio que não tem fim.