Sábado, 9 de
agosto de 2014
Escrito por Gabriel Brito e Paulo Silva
Junior, da Redação
Tanto governos como movimentos sociais ainda fazem seu
balanço da Copa do Mundo e, cada um a seu modo, começam a traçar estratégias
para os próximos tempos. Enquanto para alguns a eleição representa tudo no
horizonte político, para outros a luta apenas continua, sem que saibamos ainda
qual o devido legado deixado pelo megaevento para a nossa democracia.
“Ainda estamos fazendo a avaliação de todo o processo. Mas
sabemos que a luta nem começou no período da Copa e nem termina com o fim da
Copa. O que podemos dizer é que o legado da Copa de 2014, principalmente para
as comunidades mais pobres, foi muito complicado”, disse Benedito Barbosa,
advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, em entrevista ao Correio
da Cidadania.
Dito, como é conhecido, participou do Comitê Popular da Copa
em São Paulo, além de ter um histórico de ligação com movimentos de moradia,
atuais pontas de lança da luta de classes na maior metrópole do país. Atento ao
processo de remoções e despejos, chegou a ser preso em reintegração de posse no
mês de junho, em uma das várias ocupações do centro de São Paulo. Em sua
opinião, “não há uma política de habitação para atender de forma massiva a
população de baixa renda”.
Sobre a truculência estatal vista em atos recentes, tanto de
protesto contra a Copa como em outros casos, crê que devemos ficar atentos. “As
próprias ações e a violência da PM e a prisão sem provas dos ativistas
representam uma excessiva militarização da polícia e a criminalização dos
movimentos sociais. É inaceitável, mas ainda os entendo como fatos isolados,
que não se trata de uma contaminação do conjunto das instituições brasileiras”,
afirmou.
A entrevista completa, realizada em conjunto com a webrádio
Central3, pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Qual a avaliação
que você faz dos protestos ocorridos durante a Copa e também do processo de
luta de alguns movimentos em relação ao megaevento?
Benedito Barbosa:
Nós que trabalhamos com os direitos humanos, a exemplo do Centro Gaspar Garcia,
participamos do Comitê Popular da Copa, organização que reuniu coletivos
políticos, culturais, de luta pela moradia, entre outros, para militar em favor
do direito à cidade.
Passamos os últimos três anos acompanhando os impactos da
Copa do Mundo de 2014, especialmente em relação às comunidades que sofriam
ações de despejo e reintegração de posse. Tal processo foi monitorado e durante
o período foi realizada uma série de mobilizações de denúncia contra as
violações de direitos, especialmente por conta das obras de infraestrutura, que
atingem as comunidades mais vulneráveis. Também estivemos ao lado dos
trabalhadores informais, da população em situação de rua, enfim, de todos os
grupos que estavam vulneráveis aos impactos da Copa.
Correio da Cidadania: Já que você puxou
a discussão para o lado dos impactos, que balanço você faz sobre esse ponto,
agora que o assunto Copa esfriou?
Benedito Barbosa:
Ainda estamos fazendo a avaliação de todo o processo de organização e luta
desses três anos. Mas sabemos que a luta nem começou no período da Copa e nem
termina com o fim da Copa. O que podemos dizer é que o legado da Copa de 2014,
principalmente para as comunidades mais pobres, foi muito complicado.
Para dar um exemplo concreto: duas comunidades da região do
Buraco Quente, próxima do aeroporto de Congonhas, foram removidas por causa da
obra do monotrilho, da linha 17-ouro do metrô. Obra constante da Matriz de
Responsabilidades da Copa. As duas comunidades foram removidas para Vargem
Grande. A CDHU e o governo do estado se comprometeram a construir um conjunto
habitacional para as famílias que estão sob o bolsa-aluguel do estado, mas até
agora elas não têm a menor perspectiva de que o conjunto seja construído.
Continuaremos acompanhando toda a situação e também
organizando as comunidades, a fim de vermos o poder público – federal, estadual
e municipal – encaminhar as promessas de atendimento a tais comunidades.
Correio da Cidadania: O que você pode
contar sobre o dia em que foi preso, ao acompanhar uma reintegração de posse na
rua Aurora, centro de São Paulo?
Benedito Barbosa:
No dia 25 de junho, estava acompanhando, como advogado, a reintegração de posse
no prédio ocupado. Quando cheguei lá, por volta de 7 da manhã, fui informado
pela conselheira tutelar de que as famílias de dentro da ocupação estavam
sofrendo intimidação da PM, muitas crianças choravam etc. As pessoas foram
ameaçadas até com armas dentro da ocupação, conforme denunciaram alguns jovens.
Tentamos entrar na ocupação, conversamos com o policial que
guardava a porta, identifiquei-me como advogado, sabendo em que pé estava a
situação. Negaram minha entrada, insisti e, quando me virei para entrar, me
agarraram pelo pescoço e me deram uma gravata, quase fiquei desacordado. Foi
uma agressão muito grande, até porque tenho problema de saúde e praticamente
fui sufocado, quase me mataram na porta da ocupação. O caso está sendo apurado
pela OAB, que pediu apuração à corregedoria da polícia, e também pelo MP, entre
outros órgãos. Também tem um inquérito policial, no qual me defendo da acusação
de resistência e desacato. Há advogados acompanhando o caso, um grupo pela OAB
e outro grupo na defesa penal.
Além da violência física, foi muito humilhante e
constrangedor. Mas houve uma reação grande da sociedade civil e de algumas
organizações, afinal, não aconteceu só comigo. Tem sido muito corriqueiro a PM
agir com violência contra pessoas e comunidades, além dos relatos de violência
contra a juventude da periferia. Sempre foi assim, mas a atitude da PM vem
recrudescendo em termos de violência nos últimos tempos.
Correio da Cidadania: A luta por
moradia tem sido das mais marcantes no cenário político atual. Como está esse
processo em São Paulo e como você avalia a atuação da prefeitura, que prometeu
55 mil moradias populares no mandato de Haddad?
Benedito Barbosa:
Com relação à prefeitura, vemos com muita preocupação a questão do cumprimento
das metas. Segundo informação deles, já há mais de 50 mil unidades contratadas.
Mas a gente não vê nada disso pela cidade. E estamos sempre andando por aí.
Vamos continuar acompanhando, denunciando, mas o fato concreto é que muitas
comunidades, tanto no centro como na periferia, estão sendo despejadas e não há
uma política de habitação para atender de forma massiva a população de baixa
renda, a fim também de solucionar o déficit habitacional da cidade, que está
muito grave.
Correio da Cidadania: Nesse sentido, o
que pensa do Plano Diretor e sua recente aprovação na Câmara dos Vereadores,
que os movimentos acompanharam muito de perto?
Benedito Barbosa:
Vimos uma participação dos movimentos e dos indivíduos da cidade que foi muito
positiva, monitorando e acompanhando todo o processo de discussão, enquanto o
Plano Diretor passava pelo executivo e legislativo. Os movimentos de moradia
atuaram de forma intensa pela aprovação do Plano porque entendemos que a
proposta da prefeitura, do ponto de vista conceitual, de aproximar a moradia do
trabalho e também ampliar as áreas de interesse social, além de vincular
recursos para a habitação, é muito positiva. Acho que o trabalho do legislativo
aprimorou o Plano Diretor desse ponto de vista, e a pressão social também foi
muito importante pra aprová-lo.
No entanto, é sempre importante dizer que aprovar um projeto
de lei, em tese positivo, por avançar em definir zonas de interesse social e
vincular recursos, não nos faz esquecer de que queremos ver resultados na
prática. Precisa tirar a lei do papel. No Brasil tem muito disso. Aprovam-se
boas leis, mas na prática elas não saem do papel e não funcionam.
Correio da Cidadania: Recentemente,
vimos notícias que dão conta de um número considerável de reintegrações a serem
feitas nos próximos dias, tanto em relação a ocupações de moradia como também
culturais, além da atitude da polícia que você mencionou e das prisões de
ativistas em atos recentes. Olhando adiante, você acredita numa escalada
repressiva das instituições brasileiras, como já criticam alguns setores?
Benedito Barbosa:
O Brasil passou por uma ditadura muito recente. Eu não tenho uma avaliação de
que estamos num processo de retrocesso de tamanha natureza. Mas podemos dizer
que sentimos pontos de direitização e fascismo na nossa sociedade. Isso se
reflete nas instituições e é perigoso para a democracia. Assim, temos de nos
manter vigilantes. As próprias ações e a violência da PM, a prisão sem provas
dos ativistas, como o caso do Hideki (funcionário da USP), por se manifestarem
durante a Copa, representam uma excessiva militarização da polícia e a
criminalização dos movimentos sociais. Temos percebido que esse quadro se
intensificou.
Se tal processo continuar do jeito que vai, e se ampliar,
pode, sim, criar um risco para a democracia. E não podemos imaginar as
instituições em pleno funcionamento ameaçadas, assim como o direito à livre
manifestação e reunião - como no caso daquele dia na praça Roosevelt, em ato
que discutia exatamente a repressão e criminalização dos movimentos, duramente
reprimido pela polícia.
É inaceitável, mas ainda entendo os fatos atuais como
isolados, que não se trata de uma contaminação do conjunto das instituições
brasileiras. Porém, se continuar assim, será preciso a sociedade se mobilizar
mais e resistir à direitização e fascistização das instituições. Não podemos
aceitar um retrocesso de forma alguma.
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Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são
jornalistas