Quinta, 7 de agosto de
2014
Clique na imagem para ampliá-la.
“Do rio que tudo arrasta se diz
violento,
porém ninguém diz violentas
as margens que o comprimem.”
(Brecht)
porém ninguém diz violentas
as margens que o comprimem.”
(Brecht)
por
Thiago Melo
(advogado,
coordenador do Instituto de Defensores de Direitos Humanos)
No momento em que as ruas reivindicam democracia real,
descomemoram 50 anos do golpe civil-militar e questionam as promessas não
cumpridas depois de 25 anos da Constituição Cidadã, eis que se evidencia uma
democracia de baixa intensidade no Brasil. O legado imediato da Copa das Copas
é a criminalização da chamada jornada de junho, com manifestantes processados
criminalmente, presos e foragidos sob a acusação estapafúrdia de formação de
quadrilha armada, restando violado o princípio elementar da liberdade de
reunião e expressão.
Já nos preparativos da Copa eram nítidos os sinais de
autoritarismo.
Em 2012, a partir de uma linha de crédito do Banco do Brasil
direcionada para a organização dos megaeventos esportivos, foram construídas
quatro cadeias. Em 2013, o governo do estado do Rio de Janeiro adquiriu oito
caveirões para reforçar o esquema de segurança da Copa da Fifa e dos Jogos
Olímpicos. Na Copa das Confederações, em atuação conjunta das polícias com as
Forças Armadas, empregaram-se 3,7 mil militares, 500 viaturas, oito
helicópteros, dois esquadrões de Cavalaria de Choque e uma seção de Cães de
Guerra. No dia da final da Copa, foram 26 mil soldados e policiais fazendo a
segurança do evento. Manifestantes foram sitiados pelas forças de segurança na
Praça Saens Peña e vários midiativistas agredidos.
Os manifestantes são taxados de violentos, mas o que
marcou os protestos desde junho de 2013 foram as arbitrariedades policiais:
condução e detenção para averiguação, procedimento típico de ditaduras;
detenção por desacato quando se questiona o abuso de poder de agentes de
segurança pública; flagrantes forjados; quebra de sigilo e espionagem através
de grampos telefônicos e monitoramento de redes sociais, inclusive de
advogados; sigilo da investigação policial em prejuízo do direito à ampla defesa;
utilização inadequada de armamento menos letal e aparato repressivo; e até uso
de armamento letal.
São 24 mortes no contexto das manifestações desde os
primeiros protestos. As causas são muitas: execução, atropelamento, queda de
viaduto, inalação de gás, parada cardíaca etc. Armamentos antidistúrbios têm
sido manejados com o objetivo de ferir e amedrontar. Nas favelas, segue o
padrão de letalidade policial que fez de Amarildo mais um desaparecido da
democracia, mesmo em se tratando de repressão a atos políticos. Somente no
Complexo da Maré foram 10 mortes, após repressão policial à mobilização
ocorrida em Bonsucesso, no dia 24 de junho de 2013. A polícia alegou que
traficantes se infiltraram na manifestação para fazer um “arrastão”.
A trágica morte do cinegrafista Santiago Andrade foi a
única que recebeu atenção da grande mídia. A partir desse episódio, procurou-se
etiquetar as manifestações como atos de vandalismo, em uma tentativa de
desmobilizá-las, apagar suas reivindicações, omitir a crescente repressão
policial que as inibe e justificar a criminalização dos movimentos sociais. De
forma oportunista, o julgamento dos acusados Fábio Raposo e Caio Silva é
dominado pelo sensacionalismo midiático.
Por vezes, manipulam-se os fatos para associar esta
lamentável perda à violência sofrida por jornalistas na cobertura dos
protestos, quando se sabe que o sinalizador que atingiu Santiago não era
dirigido a nenhum profissional de imprensa, se é que se pode atribuir algum
alvo a um artefato explosivo lançado ao chão. Foi um triste acidente, fruto de
uma ação irresponsável, porém sem qualquer relação com a preocupante denúncia
da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), já defasada, de
que 133 jornalistas foram agredidos em manifestações, sendo 70% vítimas de
violência policial, em violação à liberdade de imprensa.
A verdade é que não são as pedras ou rojões que ameaçam a
democracia. As instituições bancárias não vem a público reclamar das vidraças
quebradas de suas agências, preferem viver às sobras de governos,
contabilizando recordes de lucro. Os palácios de poder continuam impermeáveis
às demandas populares. Câmaras Municipais foram ocupadas por ativistas como
normalmente não o são pelos parlamentares, o que chegou a servir de pretexto
mais persuasivo que a falta de quórum para a não realização de sessões. A
grande mídia deturpa até o quantitativo de pessoas presentes nas manifestações,
transforma o conflito social em assunto criminal como forma despolitizar a luta
por direitos. Enquanto a proposta da OAB de reforma política está esquecida no
Congresso Nacional, as eleições são mercantilizadas e colonizadas pelo poder
econômico.
O inquérito da Delegacia de Repressão a Crimes de
Informática (DRCI) que indiciou 23 manifestantes do Rio de Janeiro, acusados do
crime de associação criminosa, é sintoma de que algo vai muito mal no Estado
brasileiro. Sem provas e individualização de conduta, os acusados tiveram
decretada prisão preventiva, que logo foi revogada pelo desembargador Siro
Darlan. Na investigação, foram listados 73 movimentos sociais como integrantes
de uma suposta quadrilha armada. Na falta da identificação das pessoas que
possam ter cometido ilícitos nos protestos, optou-se por criminalizar
genericamente diversos coletivos, organizações da sociedade civil e indivíduos.
O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em conjunto
com os secretários de segurança pública e governadores dos estados de São Paulo
e Rio de Janeiro, soltaram os gorilas da repressão, sempre prontos para fazer
da exceção a regra, e agora teremos trabalho para recolhê-los de volta à jaula.
Desde outubro de 2013, existe uma cooperação oficial entre a polícia federal e
as polícias civis e militares dos dois estados no monitoramento e investigação
de grupos que “promovam atos violentos em manifestações”. O Exército e a
Agência Brasileira de Inteligência (Abin) também participam desse esforço
concentrado de espionagem e contenção de protestos. Embora as leis
antiterrorismo e de criminalização do vandalismo não tenham sido votadas, uma polícia
política, no seu sentido mais estrito, foi colocada em serviço para recontar
sob a perspectiva da “segurança nacional” a rebeldia que tomou avenidas e
praças.
A retórica da preservação das instituições não pode servir
de justificativa para se restringir e criminalizar a liberdade de manifestação.
Militante de movimento social que arremesse uma pedra contra uma vidraça, se
identificado, poderá ser responsabilizado por dano ao patrimônio, é o que a
legislação faculta, mas jamais como membro de uma organização criminosa ou
terrorista, sob pena de se estilhaçar algo mais precioso, a própria democracia.
O caminho adequado para o debate aberto pelas manifestações não é o direito
criminal, e sim a arena política. Quem há de duvidar que nos atos apinhados de
gente e cartazes estão as maiores chances de uma verdadeira democracia? Uma
democracia por vir, que se pretende além do ordenamento jurídico, das
injustiças e privilégios atuais, com capacidade de dialogar e assimilar a
utopia de uma “vida sem catracas”.
O julgamento de 23 ativistas do Rio pelo crime de
associação criminosa e de militantes acusados em São Paulo, Porto Alegre e pelo
país afora é uma grave violação às regras democráticas, uma tentativa de se
produzir um junho às avessas. As investigações da DRCI, que capturaram vozes de
dezenas manifestantes em grampos telefônicos, querem impor obediência e
silêncio às ruas. A sociedade precisa reagir ao arbítrio para que continuem
vivas as ruas que não se conformam a uma “cidade mercadoria”, de grandes eventos
e empreendimentos, no entanto, quase sem direitos para sua população.
Fonte:
Foto: Reprodução da Internet
Ato no dia da final da Copa do Mundo na Praça Saens
Peña – Rio de Janeiro.