Terça, 13 de
janeiro de 2015
Danilo Macedo
- Repórter da Agência Brasil
Três
ações movidas por haitianos contra a Organização das Nações Unidas (ONU)
colocam em xeque a imunidade diplomática e legal da entidade e a expõem a um
dos maiores constrangimentos internacionais desde a sua criação, em 1945,
segundo a advogada e coordenadora do Programa de Cooperação Internacional do
Instituto Igarapé, Eduarda Hamann.
Em janeiro de 2010,
quando o Haiti foi devastado por um terremoto, milhares de missões de todo o
mundo desembarcaram no país com o objetivo de ajudar os haitianos a se
recuperar do desastre. Além da destruição do terremoto, outra tragédia assolou
o país em outubro daquele ano: uma epidemia de cólera, doença que nunca havia
sido registrada no país em quase 100 anos. No total, já foram registrados 720
mil casos, o equivalente a 7% da população do país.
Embora não haja
provas concretas da origem da doença, investigações apontam que a epidemia
coincide com a chegada de um contingente de militares do Nepal – onde a doença
é endêmica – que foi dar apoio a vilas do interior e montou acampamento próximo
ao Rio Artibonite, principal fonte de água do Haiti. A transmissão da bactéria
do cólera se dá pela ingestão oral de dejetos fecais de doentes, principalmente
na água contaminada.
O surto de cólera,
que já matou cerca de 8,7 mil pessoas no Haiti, levou vítimas e parentes de
vítimas a entrarem com três processos contra a ONU, todas em tribunais dos
Estados Unidos, onde fica a sede da organização. O último processo foi
apresentado no primeiro semestre de 2014, em nome de 1,5 mil haitianos. As
ações requerem, em geral, a compensação financeira das vítimas, um pedido
público de desculpas da ONU e a instalação de sistema de água e esgoto no país.
Os advogados das
vítimas alegam que a ONU foi responsável pelo início da doença no Haiti e
cometeu negligências graves por não checar as condições de saúde dos militares
oriundos de um país com a doença, por falhar em manter bons padrões sanitários
nos acampamentos e por não tomar as medidas imediatas necessárias para combater
o surto. Em alguns casos, segundo os advogados, a organização chegou a
dificultar as investigações e esconder exames.
Em sua defesa, a ONU
atribui as causas da epidemia a uma confluência de fatores, como as precárias
condições sanitárias e de saúde do Haiti, além de citar a imunidade diplomática
da organização. Sem assumir a culpa da entidade, no entanto, o secretário-geral
Ban Ki-moon está engajado na arrecadação de recursos para um fundo de US$ 2,2
bilhões para erradicar, em uma década, a cólera da ilha de Hispaniola, onde
ficam o Haiti e a República Dominicana.
A questão, no
entanto, além da indenização que pode chegar a bilhões de dólares, envolve
outros elementos legais e morais que a tornam um dos maiores constrangimentos
da história da ONU, na avaliação de Eduarda Hamann. A imunidade legal da
organização está presente na Carta das Nações Unidas e no Estatuto da Corte
Internacional de Justiça, na Convenção sobre Privilégios e Imunidades das
Nações Unidas e no acordo entre a ONU e o governo do Haiti sobre o status da
operação no país.
A especialista
explica que somente a entidade pode renunciar a sua imunidade. Foi o que também
afirmou, na última sexta-feira (9), o juiz federal J. Paul Oetken, de
Manhattan, que rejeitou uma das ações afirmando que a capacidade da ONU para
bloquear ações judiciais contra ela foi estabelecida em convenção internacional
de 1946.
Os advogados das
vítimas já anunciaram que vão recorrer da decisão, alegando que a ONU violou
obrigações de tratados internacionais. Segundo eles, ao deixar de criar uma
comissão de reparação, instrumento previsto nos tratados e que determina uma
análise independente do caso, inclusive com a possibilidade de indenizações às
vítimas, a ONU não deu alternativa aos haitianos para clamarem seus direitos a
não ser pelas ações na justiça dos Estados Unidos. “Esse fato é uma grande
tragédia para as Nações Unidas porque a expõe a uma das causas que ela mesma
defende, que é a proteção dos direitos humanos. Não porque fez
intencionalmente, mas por ter sido omissa e negligente”, avaliou Eduarda Hamann
Segundo ela, embora
prevista nos acordos de várias missões da ONU, a comissão reparadora nunca foi
criada em nenhum caso. “Qual o custo político de se criar esse precedente?
Quantas comissões serão pressionadas pra ser criadas no mundo? E o custo
político da quebra da imunidade? Quebrando a imunidade, quantos outros casos
poderiam ameaçar a imunidade na história da ONU?”, questionou a especialista.