Quinta, 10 de agosto de 2017
Por
As
atenções dos analistas se voltam para a rejeição, pela Câmara dos
Deputados (a mesma que depôs Dilma Rousseff), do pedido de licença do
STF para processar o ainda presidente da República. Exegetas de todos os
naipes se esmeram na procura de significado nos números de votos pró e
contra abertura de processo, e há os que perscrutam os astros à procura
de luz para a gritante indiferença popular. Teria o povo, cansado e
decepcionado, desistido do país, ou simplesmente se deu conta da
inutilidade de seu empenho diante de uma partida já decidida na ausência
de escolha, pois tratava-se, aquela votação, tão-só de trocar, ou não,
seis por meia dúzia?
Ora,
o relevante para os grupos que se apossaram do poder, cevados desde o
Brasil colônia na sonegação de impostos, na corrupção e na grilagem, não
é a escolha do timoneiro sem autonomia; o que os mobiliza, na verdade
escancarada, é a sustentação e aprofundamento do desmonte da “Era
Vargas”, o sonho da casa-grande desde a intentona de 1932, até hoje
cultuada pela oligarquia paulista.
Vargas
é ainda o espectro que rouba o sono da Avenida Paulista. As menções a
reformas e mais isso e mais aquilo são a senha para impor o ajuste de
contas e, com a revivência do passado, impedir o parto do futuro, a
saber, a emergência de sociedade menos injusta e mais inclusiva, pois
era esse o limite do varguismo e dos projetos do trabalhismo, apodado de
“populismo de esquerda” pela sociologia paulista, que jamais dialogou
com Florestan Fernandes.
O
combate à “Era Vargas”, e, por extensão, ao trabalhismo de um modo
geral, o que explica o ódio incontido a Jango e a Brizola, foi sempre o
grande leitmotiv dos
grupos exportadores, das casas de comércio importadoras e do capital
financeiro imperialista. Por isso mesmo, o anti-varguismo encontraria
campo fértil para sua disseminação em São Paulo, cuja industrialização
ocorreu a despeito do reacionarismo das oligarquias agrárias, que,
todavia, impuseram o viés conservador.
Ali, a
reorganização e politização do sindicalismo, já ao final da ditadura de
1964 e sob a égide da nascente “era Lula”, teria como elemento
aglutinador o combate ao “peleguismo” – termo grafado pela direita para
indicar, pejorativamente, o sindicalismo herdado de Vargas e partilhado
com os dirigentes comunistas, do antigo “Partidão”. Para o petismo
daquele então a CLT era uma arcaica tradução da Carta del lavoro,
de Mussolini, e Vargas apenas um ditador. Por seu turno, o tucanato,
nascido de uma costela do PMDB (de onde herdou o DNA), anunciava, pela
voz de FHC, seu grande sonho: “varrer a Era Vargas”.
O
primeiro grande golpe contra a “Era Vargas”, pós-redemocratização de
1946, foi disparado em 1954 com a sublevação militar (Eduardo Gomes,
Juarez Távora, Pena Boto) que, açulada pela direita civil (Carlos
Lacerda à frente) impôs a deposição de Vargas. O antigo ditador,
agora presidente eleito e democrata, se viu acossado por haver ousado
atribuir ao Estado o papel de indutor do desenvolvimento,
consubstanciado na criação do BNDE, da Eletrobrás e da Petrobras. Quando
lhe puxaram o tapete do apoio militar, o presidente não tinha mais
condições de apelar às massas, pois seu sindicalismo de cooptação
deixara de ser a vanguarda dos trabalhadores.
Naquele
24 de agosto as massas, até então silentes, saíram às ruas,
desorientadas, numa explosão de desespero. Mas àquela altura já era
tarde, só lhe restando chorar a morte de seu líder.
Quando
esse varguismo ressurge com a eleição de Juscelino Kubitschek, em 1955,
a mesma direita de 1954, agora no poder, intenta o impedimento da
posse dos eleitos, enfim desarmado pela dissidência do Marechal Lott no
episódio do “11 de novembro”, que já faz parte da História.
Poucos
anos passados, em 1961, frustrado o golpe populista de Jânio Quadros,
as forças civis e militares de sempre intentaram impedir a posse do
vice-presidente João Goulart. O veto a Jango repetia o discurso de 1954 e
1955. Sob a liderança do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel
Brizola, as forças populares se levantaram em defesa da legalidade. A
irrupção derrubou o veto a Jango mas não teve forças para evitar o golpe
do parlamentarismo, traficado nas caladas da noite entre forças
políticas e militares. Como sempre, a conciliação da classe dominante
prevaleceu. Para assegurar a posse de Jango, impôs-se emenda
parlamentarista votada às pressas, mediante a qual, despido de poderes, o
herdeiro de Vargas assumiria a Presidência, mas sem condições de
governar.
Em
1964, o quadro se reproduz (a História brasileira é recorrente), com
desfecho consabido, e a direita obtém, com a deposição de Jango, afinal
lograda, e a implantação de uma ditadura longeva, aquela que parecia ser
sua definitiva vitória sobre a “Era Vargas”. Entretanto, já era outro,
então, o Brasil. Castello não conseguiu fazer o sucessor, e os governos
militares que se sucederam restabeleceram o compromisso com o
desenvolvimento, embora autocrático, e sob a égide de forte repressão
que compreendeu prisão, tortura e assassinatos.
A
ditadura é finalmente derrotada, mas não a persistente tentativa de
aplastar a “Era Vargas”, que continuava a incomodar. Depois do assalto
collorido, tivemos o neoliberalismo antivarguista e antinacional dos
anos FHC, afinal superados pelas eleições de Lula.
Mas,
o que era (é) o varguismo, ou pelo menos o que ele simbolizava para o
País e a nação? Pinço alguns aspectos e o primeiro deles é a proteção
(paternalista, se quiserem) dos trabalhadores, cuja grande marca – daí o
ódio que desperta – é a Consolidação das Leis do Trabalho, editada
ainda sob o Estado Novo. O varguismo pode ser identificado ainda pela
opção por um desenvolvimentismo de viés industrial e tentativamente
autônomo, donde a opção por políticas nacionalistas e a busca de
soberania. Seus símbolos são o salário mínimo, a Previdência Social, o
BNDE, o monopólio estatal do petróleo e a Petrobras, a Eletrobrás, a
consolidação do CNPq e da universidade pública e, símbolo maior, nessa
análise, a Cia. Siderúrgica Nacional, assegurando o aço sem o qual não
se poria de pé o sonho industrialista.
E aqui se encontram o varguismo e o lulismo, malgré lui même,
pois, conscientemente ou não, os governos lulistas, principalmente os
dois primeiros, foram administrações programaticamente similares ao
varguismo, e, por isso mesmo tão violentamente rechaçados pela
oligarquia agroexportadora, mais e mais acompanhada por seitas
evangélicas neopentecostais. Quais são suas características marcantes
senão o desenvolvimento autônomo, a defesa da empresa nacional, a
emergência das massas, e a utilização do Estado como indutor do
desenvolvimento? Essa raiz varguista decretou o fim do mandato dilmista,
pela necessidade de brecar a continuidade do projeto lulista, que pode
ser medido com os seguintes números: de 2001 a 2009 a renda per capita
dos 10% mais ricos cresceu 1,5% ao ano, enquanto a dos 10% mais pobres
aumentou à taxa anual de 6,8%.
A
reação ao lulismo ou o combate anacrônico ao varguismo, objetivado a
partir da deposição da presidente Dilma, não se encerra com a ruptura de
2016, pois, sua tarefa atual é cerrar as vias de seu retorno (do
lulismo), amanhã, em 2018 ou quando houver eleições. Enquanto isso,
remover as conquistas sociais que remontam seja ao varguismo, seja ao
lulismo.
Para
tal desiderato a direita não medirá esforços nem julgará meio que levem
à destruição do ex-presidente e do que ele, independentemente de sua
vontade, representa para o povo brasileiro, por que não há, da parte da
direita (a História o demonstra sobejamente), qualquer compromisso com a
democracia representativa. Isso quer dizer que as eleições até podem
ser realizadas— advirtamos sempre – mas se de todo for afastada a
hipótese de recidiva lulista, com Lula ou sem ele. Mas, como a principal
ameaça eleitoral é o ex-presidente, torna-se fundamental removê-lo do
pleito, como for dado. Se de todo revelar-se impossível deter sua
candidatura (as pesquisas de opinião indicam que hoje ele teria algo
como 50% das opções de voto), o golpe de mão, relembrando 1961, será ou
um ‘presidencialismo mitigado’, ou o parlamentarismo pleno, já em 2018,
como sem rebuços pleiteia o inquilino do Jaburu, quando, tornada
irrelevante a presidência, qualquer um poderá ser eleito, até um quadro
de esquerda, pois o poder ficará com o Congresso, independentemente de
sua ilegitimidade. Aliás, quanto mais ilegítimo, mas dócil aos projetos
da casa-grande, de quem é mero despachante.
O
golpe em curso precisa de ser detido enquanto não conclui o projeto de
desmontagem do Estado nacional, de nossa economia, de nossa soberania,
de nossa ordem jurídica, e, afinal, como consequência, a desmontagem da
democracia representativa, recuperada com tantos sacrifícios.
Como
detê-lo, em face de um sistema de comunicação que professa a religião
do antinacional e do anti-povo, solidário, portanto, com a blitzkrieg desencadeada
contra as forças populares? Apelar para a resistência de um Congresso
controlado pelo que a crônica chama de baixo-clero, para significar a
composição do fisiologismo com o reacionarismo? Do Judiciário, que
desrespeita a Constituição e manipula o poder mediante o jogo de
liminares concedidas segundo o interesse político da hora? Afinal, que
esperar de um Judiciário cujo principal líder é Gilmar Mendes?
Resta-nos
confiar na reação popular, na reação dos trabalhadores, na reação da
universidade, na reação dos trabalhadores, na constituição de uma frente
de resistência ao desmonte do Estado, dos direitos sociais e da
soberania, antes que seja tarde, e voltemos à condição pré-Vargas, a de
exportadores de produtos agropecuários, de minérios, de petróleo, e a de
importadores de tudo.
Se
não redescobrirmos o caminho das ruas, a direita, que mede a reação
popular, continuará avançando e certamente não se contentará com a
condenação de Lula.
Roberto Amaral
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia