Segunda, 7 de agosto de 2017
Do Jornal do Brasil
Dalmo de Abreu Dallari*
Uma recente decisão do Senado dos Estados Unidos tem grande
importância em termos de efetivação de uma ordem social justa e
democrática, merecendo por isso ampla divulgação. Tal decisão consistiu
na rejeição de projeto proposto pelo Presidente da República, Donald
Trump, por meio do qual o Chefe do Executivo pretendia revogar uma lei
sancionada por seu antecessor, Barack Obama, que alterou o sistema de
saúde com o objetivo de proporcionar às camadas mais pobres da população
o acesso aos direitos sociais na área da saúde. A rejeição do projeto
anti-direitos humanos proposto e fortemente defendido por Trump e seus
seguidores, representa, por sua significação social, uma derrota dos
egoístas adoradores do dinheiro e deixa evidente que o poder econômico
não assegura necessariamente o domínio absoluto dos meios de governo. Um
aspecto de especial relevância da referida decisão é a demonstração de
que a pressão firme e constante, por meios pacíficos, para que os
mandatários do povo assegurem a prevalência dos direitos humanos
consagrados em documentos internacionais e nas Constituições,pode ser
extremamente eficiente e produzir resultados concretos, superando as
fortes resistências. Por isso, por seus resultados práticos, mas também
por seu efeito estimulante e conscientizador, é importante divulgar essa
vitória dos direitos humanos.
Para avaliação do significado da
decisão acima referida, é importante relembrar que o ex-Presidente dos
Estados Unidos, Barack Obama, fortemente influenciado por objetivos
humanistas, criou e implantou, por via legal, um programa voltado para a
efetivação dos direitos sociais, programa que na linguagem corrente foi
intitulado de “Obamacare” e que tem por objetivo a garantia do acesso
aos direitos sociais da área da saúde às camadas mais pobres da
população. Esse programa foi legalmente implantado por meio de lei
federal, aprovada pelo Legislativo e sancionada pelo Presidente Obama em
23 de Março de 2010. Essa lei introduziu mudanças no sistema de saúde,
estabelecendo o controle dos preços dos planos privados de saúde e, além
disso, expandindo os planos públicos de seguro-saúde, de tal modo a
possibilitar a proteção dos setores sociais mais pobres. Tal mudança
garantiu o acesso aos serviços de saúde, incluindo assistência médica e
internação quando necessário, para alguns milhões de pessoas que não
tinham tal possibilidade.
Esse foi um passo altamente positivo em
termos de correção de uma injustiça social e garantia do acesso aos
direitos fundamentais a pessoas até então marginalizadas. Entretanto,
apesar de ser essencialmente humanista e democratizante, o “Obamacare”
deu motivo a uma revolta indignada de pessoas das camadas mais ricas da
população, que consideraram absurdo que o poder público assumisse esses
custos, que serão cobertos com recursos resultantes dos tributos pagos
pelos contribuintes. Não há dúvida de que essa reação essencialmente
egoísta, por acharem injusto que uma parte de seus ganhos econômicos
fosse entregue compulsoriamente ao governo para atendimento de direitos
sociais, pelos quais não têm o mínimo respeito, contribuiu para que
Donald Trump fosse eleito Presidente da República.
Transpondo
isso para a realidade brasileira, pode-se afirmar, pela observação e
análise das características dos conflitos sociais relacionados com a
implantação dos direitos sociais, que também no Brasil existe uma camada
social sem noção de ética e sem nenhum respeito pela dignidade da
pessoa humana e pelos direitos humanos fundamentais internacionalmente
proclamados e expressamente consagrados na Constituição brasileira de
1988. Como já tem sido registrado por analistas da realidade social
politicamente independentes, essa atitude é reveladora de que existe
muito de verdade numa afirmação de notáveis filósofos e juristas dos
séculos dezessete e dezoito que acrescentaram um dado essencial para a
análise dos comportamentos humanos em sociedade. Anteriormente, grandes
pensadores da Grécia antiga, com destaque para Aristóteles, registraram a
existência de um “impulso associativo natural” dos seres humanos, que
os leva a buscar a convivência com os semelhantes para satisfação de
várias de suas necessidades essenciais, de natureza material,
intelectual e espiritual.
Reafirmando essas convicções, mas
acrescentando um dado também essencial, apreendido na observação e
análise dos comportamentos humanos em sociedade, assinalaram, Kant e
outros notáveis pensadores, que, assim como existe no ser humano um
impulso associativo natural, também existe, com intensidade variável de
um para outro indivíduo mas presente em todos, um “egoísmo essencial”,
que pode ser contido ou ter suas conseqüências práticas diminuídas se
houver a conscientização das pessoas quanto a esse núcleo negativo da
personalidade humana e o risco de suas más conseqüências. A existência
desse impulso egoísta fica evidente na observação do comportamento dos
que, com desprezo pela pessoa humana e sem admitir a igualdade essencial
da dignidade e dos direitos humanos fundamentais, proclamados na
Declaração Universal dos Direitos Humanos, colocam acima de tudo os seus
interesses e a satisfação de suas ambições. E isso se torna mais grave
quando tais indivíduos sofrem o deslumbramento das vantagens e dos
privilégios sociais que decorrem da superioridade quanto às riquezas
materiais.
Por tudo o que acaba de ser exposto e, em termos
práticos da atualidade, por ser uma valiosa demonstração de que é
possível assegurar, por meios pacíficos e institucionais, a prevalência
dos direitos humanos, inclusive dos direitos sociais, a derrota sofrida
pelo Presidente Donald Trump no Senado dos Estados Unidos foi uma
vitória dos direitos humanos. Essa decisão deve ser conhecida e
amplamente divulgada, para ser utilizada como exemplo e estímulo para
iniciativas e decisões que assegurem a efetividade dos direitos humanos.
Assim estarão sendo corrigidas graves injustiças sociais e se estará
caminhando no sentido da universalização dos direitos humanos.
* jurista