Da
ponte.org
Para Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz, a indústria de armas e munições tenta, há anos, se desvencilhar das responsabilidades pelo atual quadro da violência no país
“O Brasil atravessa um dos piores
momentos relacionados com a segurança pública interna de suas grandes
cidades. Não bastassem o alto nível de desemprego e a ineficiência do
Estado para combater o crime organizado, vê- se que os bandidos estão
extremamente organizados, adquirindo inclusive treinamento específico,
outrora privilégio das forças policiais e militares, para aumentar seu
poder de fogo frente à população desprotegida e apavorada”.
Você pode estar pensando que a frase acima é o trecho de alguma recente declaração na tentativa de justificar o decreto de intervenção federal no
Rio de Janeiro, que entrou agora no terceiro mês. Mas ela foi escrita
há 12 anos. De autoria do deputado federal Moroni Torgan (ex-PPS,
atualmente no DEM-CE), ela serviu de justificativa para a abertura da CPI (Comissão
Parlamentar de Inquérito) destinada a investigar as organizações
criminosas do tráfico de armas. Publicada em novembro de 2006, um dos
seus sub-relatores na época era o hoje Ministro da Segurança Pública,
Raul Jungmann. Responsável pela
análise, o então deputado pelo PPS destacou, por exemplo, a origem das
armas e munições que chegam na mão do crime. “Embora o contrabando de
armas e munições [internacionais] exista e deva ser combatido, 78 % das
armas apreendidas são de fabricação nacional, são desvios que se devem à
falta de controle dentro do território nacional, e 22% são fabricadas
no exterior”. Duas outras comissões com o mesmo tema aconteceriam nos
anos de 2011 e 2016 na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj).
De acordo com o gerente de sistemas de justiça e segurança pública do
Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, passados mais de dez anos, o
cenário pouco se alterou. No ano passado, a ONG realizou o
levantamento “Arsenal Fluminense: análise das apreensões de munições no estado do Rio de Janeiro”,
que mostra como novos projetos de lei sobre o tema voltados a facilitar
a compra e o porte de armas no país são criados semanalmente e que boa
parte das munições desviadas – 42% – têm origem nacional. Além disso, o
contrabando internacional de fuzis, submetralhadoras e armas automáticas
corresponde a apenas 10% do montante apreendido. “O objetivo deles [CBC e Forjas Taurus que detém o monopólio nacional de fabricação de armas e munições]
é obscurecer a importância da indústria no atual estado do problema e
assim não precisa alterar o quadro”, explica. Outro grande problema
apontado por Langeani se refere ao desrespeito das empresas com relação à
portaria do Exército que determina a quantidade máxima de 10 mil itens
em um lote de munição a fim de tornar o controle mais eficiente.
O tema ganhou força depois da
execução da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, no
último dia 14 de março. Parte da munição foi identificada como sendo do
lote UZZ-18, adquirido pela Polícia Federal
em 2006 e desviada no mesmo ano. Os projéteis apareceram em outras
cenas de crimes nos últimos anos, com destaque para a chacina de Osasco,
em agosto de 2015, a maior da história de São Paulo. Segundo a LAI (Lei
de Acesso à Informação), o lote adquirido pelo Ministério da Justiça
por quase R$ 5 milhões tinha pouco menos 2,5 milhões de munições. “Um
lote desse tamanho nem adianta marcar porque ele vai ser distribuído
para tanto lugar que não vai ser possível achar quem desviou e onde”,
critica Langeani.
Confira a entrevista com Bruno Langeani, do Instituto Sou da Paz:
Ponte – Há doze anos, o relatório da CPI do tráfico de armas do
Congresso Nacional chegou a conclusões muito semelhantes aos que o
relatório do Sou da Paz chegou, guardadas as devidas proporções. O que
se alterou desde 2006?
Bruno Langeani –
Desde essa época o que mais houve foram flexibilizações da lei, tais
como a do porte de arma para algumas categorias e para atiradores
esportivos. Além disso, semanalmente novos projetos são criados,
justamente para facilitar a compra e o porte. Mas o que teve de
possíveis mudanças positivas eu destacaria duas coisas. A primeira foi
que se obrigou o judiciário a fazer destruições periódicas de armas
apreendidas com a finalidade de não acontecer o desvio devido a
negligência da guarda. A outra é que o Ministério da Justiça tem
facilitado a consulta de armas do SINARM, que é o banco de armas da Polícia Federal a partir do INFOSEG,
que é acessível a todos os policiais do Brasil. Antigamente, quem tinha
acesso eram alguns poucos policiais e os federais, o que basicamente
dificultava muito o rastreio das armas. Essa integração, porém, não
existe do SINARM com o Banco SIGMA, que é o banco de armas do Exército
Brasileiro. Na época da CPI das armas você inclusive consegue achar
declarações do Raul Jungmann dizendo que era um absurdo não haver essa
integração. É importante marcar que nosso problema não é legislação,
porque ela é boa. Nosso problema na prática é a implementação, mas há
alguns bons exemplos práticos. A criação da DESARME (Delegacia
Especializada em Armas, Munições e Explosivos), da Polícia Civil do Rio
de Janeiro, é uma ótima iniciativa. Mas fora isso, realmente pecamos na
execução.
Ponte – Muito se fala sobre o controle das fronteiras para nos
proteger do contrabando de armas e munições. Mas, no último relatório de
vocês é possível observar que boa parte das munições tem, na verdade,
origem nacional e de uma mesma empresa, a CBC, com 42%. Por que?
Langeani – Essa
percepção vem sendo construída publicamente pela indústria de armas, que
trabalha para promover essa conclusão. A ANIAM (Associação Nacional da
Indústria de Armas e Munições), a Forjas Taurus, e CBC (Companhia
Brasileira de Cartuchos) mandam release o tempo todo para dizer que o
problema não é deles, que o problema é o contrabando que vem do
Paraguai… Só que as pesquisas feitas pelo Sou da Paz sobre perfil das
armas no crime e também análises feitas na CPI do tráfico de armas em
Brasília e no Rio demonstram que a origem é majoritariamente nacional.
Por conta disso o objetivo deles é obscurecer a importância da indústria
no atual estado do problema e assim não precisar alterar o quadro. A
gente tem esse problema de contrabando para fuzis, submetralhadoras e
armas automáticas, mas essas não representam nem 10% de tudo que é
apreendido. Então se o foco se atém a essas armas estrangeiras, você
deixa de lidar com uma série de outros perfis majoritários.
Ponte – Então muitas dessas armas têm origem legal. Qual é o vácuo que permite que munições legais parem na mão do crime?
Langeani – Quando
falamos de munição nacional esses 42% que falamos são da Companhia
Brasileira de Cartuchos (CBC). Todas essas são legalizadas. A partir
disso você tem três focos de desvio: um no campo civil, em locais de
treinamento para defesa pessoal, clubes de tiro etc; Outro no campo da
segurança privada, que também é um grande fornecedor de armas e munição
para o crime. E finalmente o setor público, que inclui as forças de
segurança. Neste existe até uma obrigatoriedade advinda do Estatuto do
Desarmamento para que essas munições venham com numeração e lote
marcado. Mesmo assim acredito que esses números devem inclusive ser
subestimados. Se você não tem uma pressão política para instituir
controle de munição fica difícil descobrir os desvios, que acabam sendo
descobertos quando aparecem em local de crime. Idealmente as polícias
deveriam ter controle do tipo: “Eu forneci para esse batalhão 50 mil
munições. X quantidade de munições foi usado em operação tal. Fulano
usou 20 no treino Y e assim por diante“. Esse que deveria ser o
controle, mas em muitos lugares isso não acontece.
Ponte – E cerca de 28% das munições não têm origem definida. Qual a dificuldade para identificá-las?
Langeani – Esse é um
problema de registro na delegacia. Essa é uma informação que deveríamos
receber no BO, mas muitas vezes este acaba sendo feito de qualquer
jeito. Às vezes você até tem a marca ali, mas quem faz o registro não se
preocupa em colocar essa informação. Assim fica difícil saber a
nacionalidade da munição e se foi usado munição de recarga por exemplo. O
exército flexibilizou bastante as entidades que podem fazer recarga de
munição, o que é bem ruim para o controle. Esse estojo, onde fica
contido a pólvora, pode então ser reaproveitada para um novo disparo. O
que defendemos é que tenhamos uma restrição grande para munição de
recarga e que essa marcação de lote seja universalizada. As policias e o
exército são obrigadas a comprar munição marcada no estojo, e isso é
péssimo para segurança pública e esclarecimento de crime. Se todas as
munições tivessem o número de lote ia ser muito mais fácil para
esclarecer crimes. O crime contra a juíza Patrícia Acioli foi desvendado
através disso.
Ponte – Os fuzis representam 5% das apreensões de armas mas 22%
das apreensões de munição. Os fuzis são fabricados nacionalmente? De
onde eles vem e qual o preço deles de mercado?
Langeani – No Brasil
você tem apenas duas fábricas que produzem fuzis. A fabrica da IMBEL,
que produz um fuzil tipo fal e parafal, e a Forja Taurus fazendo modelos
de fuzil também. O fato dos fuzis serem caros é um resultado da nossa
política de armas. No caso do revólver e da pistola, são armas mais
acessíveis, disponíveis no mercado legal, o que permite uma oferta
grande, inclusive no crime. Já fuzil e submetralhadora, no qual são
poucas as categorias que têm acesso a esse tipo de armamento, é mais
difícil. Quando você tem pouca arma significa que a oferta diminui e o
preço aumenta. Um ponto interessante que mostra que isso tá ligado é que
há 20 anos muitos policiais usavam apenas revólver, mas poucas
pistolas. E aí a arma do crime tinha pouca pistola também. Alguns até
conseguiam comprar, mas eles geralmente trabalham com o disponível.
Quando a polícia troca revólver por pistola começa a aparecer mas
pistola no crime. E quando a polícia começa a adotar o fuzil como arma
do dia a dia, aumenta a do crime também. O uso geralmente parte do
mercado legal para o ilegal. Agora, o fato de você não ter possibilidade
de comprar uma AK-47 legalmente no Brasil faz com que essas armas
tenham que vir de fora. Isso encarece muito o armamento, o que é no
mínimo positivo, porque se ela fosse muito mais barata seria bem pior a
situação. E também há armas desviadas do exército, como vemos as vezes
sendo pegas armas como a .50, que a polícia não tem.
Ponte – O caso Marielle chamou a atenção porque o lote da munição
já tinha sido usado em duas chacinas: uma em São Paulo, que teve
participação de policiais, e a outra no Rio, por traficantes. Isso
significa que a munição literalmente pode ir para qualquer lugar?
Langeani – Esse é um
ponto importante porque existe uma portaria do Exército Brasileiro
dizendo que o lote padrão deveria ser de até 10 mil munições (segundo a
portaria No 16-D LOG, de 28 de dezembro de 2004). Esse lote do qual veio
a munição que matou a Marielle não obedeceu a essa normativa. Tinha
dois milhões de projéteis. Um
lote que tem dois milhões de projéteis nem adianta marcar porque ele vai
ser distribuído para tanto lugar que não vai ser possível achar quem
desviou e onde. O lote padrão já é melhor, é 10 mil, e para além disso
estamos atualmente advogando para que aconteçam duas mudanças: Que toda
munição seja marcada e que esses lotes sejam de até mil unidades. Assim
será possível rastrear muito mais facilmente. Mas o lobby das armas
obviamente vai contra, e as justificativas são sempre parecidas. Em 2003
essa necessidade de marcar munição veio do estatuto do desarmamento.
Mas nesse mesmo ano a indústria dizia que não era possível, que
encareceria muito. E o que se descobriu era que, na verdade, a indústria
já vinha marcando munição para exportação, para clientes que pediam no
estrangeiro. E agora, pra ampliar isso, eles sempre falam que vai
encarecer, mas na prática nossa avaliação é que se universalizar e
começar a marcar lote pequeno vai ficar muito exposto o quanto a
indústria acaba participando na criminalidade violenta, e isso não é
interessante para eles.
Ponte – Um ponto que vocês citam no relatório é que o SICOVEM
(Sistema de Controle de Venda e Estoque de Munições) teria sido
desenvolvido pela CBC e doado ao Exército. Não há um conflito de
interesse?
Langeani – O SICOVEM
nasceu da necessidade do Estatuto do Desarmamento, então ele cria uma
necessidade de um controle melhor das indústrias pras lojas e destas pro
consumidor final. Este sistema regula principalmente essa venda ao
mercado civil. E, a partir das informações que temos até o momento, é
que o Exército aceitou esse sistema como doação da indústria, e que todo
o desenvolvimento do software foi feito pela CBC. Isso é um conflito de
interesse muito grande, até porque o Exército é um órgão fiscalizador
da CBC, que é uma empresa que visa lucro. Ele é a instituição que deve
ter o desenvolvimento desse sistema para garantir que não exista fraude,
para garantir que a informação colocada seja fidedigna. Se o Exército
aceitou essa doação isso me parece bastante grave porque na medida que
você não desenvolveu esse sistema não é possível garantir sua qualidade.
É como se você tivesse o Itaú doando o software para que a Receita
Federal fiscalizasse o Imposto. Só que estamos falando de artefatos
letais, que fazem parte na tragédia de mais de 60 mil assassinatos por
ano.
Conheça as mudanças na lei
Abaixo você confere as principais
alterações legais ocorridas desde a CPI do Tráfico de armas, em 2006. As
informações foram cedidas pelo Instituto Sou da Paz. No período houve
também pelo menos 8 mudanças no Estatuto do Desarmamento.
Categoria | Alteração | Ano |
Porte/Posse de arma | Concedido o porte de trânsito para atiradores | Portaria do Exército, 2017 |
Concedido o porte para guardas municipais de pequenos municípios | Lei nº 10.867, de 2004 | |
Concedido o porte para auditores fiscais do trabalho e analistas tributários – também fora do serviço | Lei nº 11.501, de 2007 | |
Concedido o porte para agentes prisionais | Lei nº 12.993, de 2014 | |
Concedido o porte de arma particular para agentes públicos de segurança | Lei nº 11.706, de 2008 | |
Concedido o porte para servidores da justiça e do MP em função de segurança | Resolução conjunta CNMP e CNJ, 2014 (dúvida) | |
Fica extinta a punibilidade de eventual posse irregular de arma | Lei nº 11.706, de 2008 | |
Aumento da validade da posse para civis – renovação a cada 5 anos | Decreto do presidente Temer, 2017 | |
Concedida a posse para civis no local de trabalho | Lei nº 10.884, de 2004 | |
Destinação das armas | Permitida a doação de armas que não mais interessam à persecução penal aos órgãos de segurança pública ou às forças armadas | Lei nº 11.706, de 2008 |
Atestado de aptidão psicológica | Maior validade – renovação a cada 10 anos | Decreto do presidente Temer, 2017 |