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(Millôr Fernandes)

sábado, 7 de julho de 2018

Papa manda recado aos ricos: “parem de pisotear pobres, migrantes e refugiados”

Sábado, 7 de julho de 2018

Do IHU
Instituto Humanitas Unisinos
Segundo o Papa Francisco, a única resposta razoável aos desafios apresentados pela migração contemporânea é “solidariedade e misericórdia”, menos preocupação com cálculos políticos e mais com uma distribuição equitativa de responsabilidades.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 06-07-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
O Papa Francisco celebra a missa na ilha italiana de Lampedusa. Foto de arquivo do dia 8 de julho de 2013. (Foto: Paul Haring)
Citando uma passagem da Bíblia, o Pontífice disse na sexta-feira que “os dias estão chegando, nos quais Deus mandará fome sobre a terra…. e sede da palavra do Senhor” sobre todos aqueles que “pisotearam os necessitados e os pobres”.
“Muitas pessoas pobres estão sendo arruinadas! Todos estes pobres são vítimas dessa ‘cultura do descartável’ que foi denunciada repetidas vezes”, incluindo os migrantes e refugiados que “continuam a bater à porta de nações que zombam de suas dificuldades”, ressaltou Francisco.

O discurso do Papa ocorreu em uma missa privada que ele celebrou na Basílica de São Pedro, em Roma, no Altar da Cátedra de Pedro, localizado atrás do altar principal, que costuma receber cerimônias menores. Cerca de 200 pessoas, incluindo migrantes e aqueles que trabalham com eles, estavam presentes.
Uma política de imigração justa, disse o Pontífice, é uma pessoa a serviço de outra, sendo capaz de fornecer soluções que possam garantir segurança, respeito pelos direitos e dignidade. É necessário que se garanta uma política voltada para o bem do próprio país levando em conta a dos outros num mundo cada vez mais interconectado ”.
Francisco disse que, embora Deus prometa liberdade a todos os oprimidos, ele precisa que cumpramos a sua promessa.
“Ele precisa de nossos olhos para ver as necessidades de nossos irmãos e irmãs. Ele precisa de nossas mãos para lhes oferecermos ajuda. Ele precisa da nossa voz para protestarmos contra as injustiças cometidas graças ao silêncio, muitas vezes cúmplice, de muitos”, disse o Papa, antes de listar vários “silêncios”, incluindo o do senso comum e o que justifica a injustiça, do tipo “mas sempre foi feito deste jeito”.
Comentando sobre uma passagem do Evangelho de Mateus, lida durante a missa, Francisco disse que Jesus repreende os fariseus, apontando o dedo para a “hipocrisia estéril daqueles que não querem 'sujar as mãos', como o sacerdote ou o Levita, na parábola do bom samaritano.”
"Esta é uma tentação presente em nossos dias. Ela transparece em nossos corações fechados para aqueles que têm o direito, assim como nós, de condições de vida dignas e seguras. Constrói paredes, reais ou virtuais, em vez de pontes”, acrescentou Francisco.
A missa foi celebrada para marcar o quinto aniversário da primeira viagem do Papa para fora de Roma. Ela ocorreu 8 de julho de 2013. Nessa ocasião, ele visitou a cidade de Lampedusa, no sul da Itália, considerada uma das portas de entrada para milhares de imigrantes e refugiados vindos da África e do Oriente Médio para a Europa.
Ao explicar sua decisão de fazer de Lampedusa o destino de sua visita pastoral, o pontífice disse em 2013 que os relatos da morte de pessoas desesperadas tentando buscar uma vida melhor tinham sido como “um espinho no coração”.
Sua viagem começou no início do verão, quando Lampedusa, a apenas 70 milhas da Tunísia, estava vendo um fluxo constante de barcos frágeis e inseguros chegando às suas margens. Essa é uma realidade que continua hoje, e ainda mais precária por decisões tomadas pelo governo da Itália e Malta no sentido de fechar seus portos ao resgate de barcos migrantes do afogamento no Mar Mediterrâneo, que Franciscodescreveu como "Maremortum".
O pontífice argentino, filho de imigrantes italianos, fez do cuidado daqueles que foram deslocados à força, uma das bases sociais de seu pontificado. Chegou até mesmo a abrir as portas de propriedades do Vaticano a vários migrantes. Entre esses, estavam três famílias sírias que ele trouxe consigo vindos da Ilha grega de Lesbos para a Itália, como parte de uma iniciativa humanitária.
Falando em espanhol durante sua homilia na sexta-feira, o Papa disse que queria marcar a data com a presença de equipes do resgate e com os resgatados no Mar Mediterrâneo, para agradecê-los por "encarnar" a parábola do Bom Samaritano, “que parou para salvar a vida de um pobre homem espancado por bandidos. Ele não perguntou de onde ele era, suas razões para viajar ou pediu seus documentos. Ele simplesmente decidiu cuidar dele e salvar sua vida.”


“Reitero minha solidariedade e encorajamento, pois estou bem ciente das trágicas circunstâncias pelas quais vocês estão fugindo”, disse o pontífice, se dirigindo aos migrantes.
Ele pediu aos migrantes que permanecessem “testemunhas da esperança” em um mundo que tem pouca perspectiva para o futuro, esperando que com “respeito pela cultura e pelas leis do país que os recebem, trabalhem juntos no caminho da integração”.

Eis a íntegra da homilia do Papa Francisco proferida na missa celebrada na Basílica de São Pedro pelos migrantes, cinco depois da viagem à Lampedusa.

«Ouvi isto, vós que esmagais o pobre e fazeis perecer os desfavorecidos da terra (…). Eis que vêm dias em que lançarei fome sobre o país, (...) fome de ouvir as palavras do Senhor» (Am 8, 4.11).
A advertência do profeta Amós revela-se ainda hoje de veemente atualidade. Quantos pobres são hoje esmagados! Quantos desfavorecidos são feitos perecer! Todos eles são vítimas daquela cultura do descarte que repetidamente foi denunciada. E, entre eles, não posso deixar de incluir os migrantes e os refugiados, que continuam a bater às portas das nações que gozam de maior bem-estar.
Recordando as vítimas dos naufrágios há cinco anos, durante a minha visita a Lampedusa, fiz-me eco deste perene apelo à responsabilidade humana: «“Onde está o teu irmão? A voz do seu sangue clama até Mim”, diz o Senhor Deus. Esta não é uma pergunta posta a outrem; é uma pergunta posta a mim, a ti, a cada um de nós» [Insegnamenti I(2013)-vol. 2, 23]. Infelizmente, apesar de generosas, as respostas a este apelo não foram suficientes e hoje choramos milhares de mortos.
A aclamação de hoje ao Evangelho contém este convite de Jesus: «Vinde a Mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei de aliviar-vos» (Mt 11, 28). O Senhor promete descanso e libertação a todos os oprimidos do mundo, mas precisa de nós para tornar eficaz a sua promessa. Precisa dos nossos olhos para ver as necessidades dos irmãos e irmãs. Precisa das nossas mãos para socorrê-los. Precisa da nossa voz para denunciar as injustiças cometidas no silêncio – por vezes cúmplice – de muitos. Na realidade, deveria falar de muitos silêncios: o silêncio do sentido comum, o silêncio do «fez-se sempre assim», o silêncio do «nós» sempre contraposto ao «vós». Sobretudo o Senhor precisa do nosso coração para manifestar o amor misericordioso de Deus pelos últimos, os rejeitados, os abandonados, os marginalizados.
No Evangelho de hoje, Mateus narra o dia mais importante da sua vida: aquele em que foi chamado pelo Senhor. O Evangelista recorda claramente a censura de Jesus aos fariseus, com tendência fácil a murmurar: «Ide aprender o que significa: Prefiro a misericórdia ao sacrifício» (9, 13). É uma acusação direta à hipocrisia estéril de quem não quer «sujar as mãos», como o sacerdote e o levita na parábola do Bom Samaritano. Trata-se duma tentação muito presente também nos nossos dias, que se traduz num fechamento a quantos têm direito, como nós, à segurança e a uma condição de vida digna, e que constrói muros, reais ou imaginários, em vez de pontes.
Perante os desafios migratórios da atualidade, a única resposta sensata é a solidariedade e a misericórdia; uma resposta que não faz demasiados cálculos, mas exige uma divisão equitativa das responsabilidades, uma avaliação honesta e sincera das alternativas e uma gestão prudente. Política justa é aquela que se coloca ao serviço da pessoa, de todas as pessoas interessadas; que prevê soluções idôneas a garantir a segurança, o respeito pelos direitos e a dignidade de todos; que sabe olhar para o bem do seu país tendo em conta o dos outros países, num mundo cada vez mais interligado. É para um mundo assim, que olham os jovens.
O Salmista indicou-nos a atitude justa que, em consciência, se deve assumir diante de Deus: «Escolhi o caminho da fidelidade e decidi-me pelos vossos juízos» (Sal 118/119, 30). Um compromisso de fidelidade e de juízo reto que esperamos realizar juntamente com os governantes da terra e as pessoas de boa vontade. Por isso, acompanhamos atentamente o trabalho da comunidade internacional para dar resposta aos desafios colocados pelas migrações atuais, harmonizando sabiamente solidariedade e subsidiariedade e identificando recursos e responsabilidades.
Desejo concluir com algumas palavras dirigidas particularmente aos fiéis que vieram da Espanha.
Quis celebrar o quinto aniversário da minha visita a Lampedusa convosco, que representais os socorristas e os resgatados no Mar Mediterrâneo. Aos primeiros, quero expressar a minha gratidão por encarnarem hoje a parábola do Bom Samaritano, que parou para salvar a vida daquele pobre homem espancado pelos ladrões, sem lhe perguntar pela sua proveniência, pelos motivos da sua viagem ou pelos seus documentos: simplesmente decidiu cuidar dele e salvar a sua vida.
Aos resgatados, quero reiterar a minha solidariedade e encorajamento, pois conheço bem as tragédias de que estais a fugir. Peço-vos que continueis a ser testemunhas da esperança num mundo cada vez mais preocupado com o próprio presente, com reduzida visão de futuro e relutante a partilhar, e que elaboreis conjuntamente, no respeito pela cultura e as leis do país de acolhimento, o caminho da integração.
Peço ao Espírito Santo que ilumine a nossa mente e inflame o nosso coração para superarmos todos os medos e inquietações e nos transformarmos em instrumentos dóceis do amor misericordioso do Pai, prontos a dar a nossa vida pelos irmãos e irmãs, tal como fez o Senhor Jesus Cristo por cada um de nós.

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