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(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

O vale-tudo judicial é incompatível com o estado democrático de direito

Quinta, 4 de outubro de 2018

Por
Aldemario Araújo Castro
Advogado
Professor
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 4 de outubro de 2018

Nos últimos dias, o noticiário oriundo do Supremo Tribunal Federal (STF) revela uma “guerra” de decisões proferidas pelos ministros Ricardo Lewandowski e Luiz Fux. As manifestações referidas autorizaram e proibiram a realização de entrevista do ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva, na condição de presidiário, ao jornal Folha de São Paulo.

O embate chamou a atenção da comunidade jurídica pela ácida altercação entre membros da Suprema Corte. Ademais, as questões procedimentais (ou processuais) envolvidas e a discussão de fundo (versando sobre direitos fundamentais, liberdade de manifestação e liberdade de imprensa) são particularmente sensíveis.

Foi nesse contexto, aqui dramaticamente resumido, que o ministro Luiz Fux realizou pronunciamento perante o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB). Segundo registram inúmeros veículos de comunicação, as seguintes afirmações foram feitas pelo aludido integrante do STF: “À luz de princípios constitucionais nós conseguimos plasmar decisões que são aquelas decisões que o povo espera do Judiciário, porque a Constituição afirma que todo poder emana do povo e para o povo deve ser exercido. Isso significa dizer não que tenhamos que fazer pesquisa de opinião pública para decidimos, mas quando estão em jogo razões morais, razões públicas devemos proferir decisão que represente anseio da sociedade em relação à Justiça”(https://www.jota.info/stf/do-supremo/fux-anseio-ser-considerado-nao-ha-discordia-no-stf-02102018).

Essa declaração, pela sua importância e gravidade, reclama a devida atenção e a mais veemente censura. Desde já registro que os ministros do STF podem e devem ser admoestados publicamente, com o devido respeito, como exercício republicano dos mais relevantes. Afinal, os membros da Corte Maior praticamente não estão sujeitos a controle nos marcos institucionais atualmente postos. A competência do Senado Federal prevista no art. 52, inciso II, da Constituição tem sido meramente figurativa (“para inglês ver”).

É certo que vivenciamos uma profunda mudança de paradigma no campo do direito. Com efeito, até a primeira metade do século XX as Constituições e seus princípios não eram vistos e considerados como verdadeiras normas jurídicas (obrigatórias e vinculantes). Prevalecia o entendimento de que os comandos constitucionais eram proclamações políticas a serem considerados por ocasião da atuação do legislador. As disposições constitucionais: a) não eram aplicadas diretamente para resolver os problemas verificados na vida social; b) não geravam direitos subjetivos e c) não eram utilizadas pelos juízes na solução dos casos submetidos à apreciação do Judiciário. Segundo o paradigma legal (ou legalista) prevalecente, obrigavam e vinculavam somente as leis elaborados pelo Parlamento.

A segunda metade do século XX testemunhou uma profunda mudança paradigmática na compreensão e aplicação do direito. Razões históricas bem definidas, notadamente as iniquidades praticadas antes e durante a Segunda Guerra Mundial com sustentação em leis, alimentaram a visão de que a Constituição e suas disposições, especialmente seus princípios, possuem força normativa (obrigatória e vinculante). Assim, os comandos constitucionais podem incidir diretamente sobre os casos da vida e resolver problemas postos perante o Judiciário sem a necessária intermediação do legislador.

O novo panorama de avaliação e aplicação do direito suscita uma quantidade significativa de graves problemas jurídicos a serem equacionados. Eis alguns deles, a título de ilustração: a) os relatos dos princípios constitucionais são mais subjetivos, fluídos e de interpretação mais difícil; b) os princípios não são imediatamente (só mediatamente) comportamentais; c) existe a possibilidade de confrontos, em situações concretas, a partir de princípios ou direitos fundamentais consagrados nas Constituições; d) a abertura para construção de soluções com base nos valores dos operadores do direito escorados na ordem jurídica e e) a necessidade de fixação dos limites a serem observados quando o operador do direito constrói uma solução fundado diretamente em princípios.

Neste ponto já é viável a análise da manifestação do ministro Luiz Fux. O ilustre julgador assevera que os princípios constitucionais podem fundamentar decisões judiciais. Como visto, os princípios constitucionais, atualmente com força normativa, podem efetivamente plasmar diretamente a solução de problemas jurídicos. Ocorre que o ministro sustenta que os princípios constitucionais são invocados para a formulação de decisões “que o povo espera do Judiciário”. Esse é o ponto de extremo relevo, preocupação e perigo.

Observe-se que a solução do caso, segundo o ministro, não precisa realizar a ordem jurídica (uma regra comportamental ou um princípio-valor mais abstrato). A motivação para a decisão pode, ainda segundo o ministro, ser o desejo ocasional do povo ou a pretensão circunstancial da opinião pública. O princípio constitucional aparece depois como mero elemento de justificação, usado, torcido ou retorcido para produzir uma aparência de legalidade. Essa concepção é rigorosamente inaceitável. O Estado Democrático de Direito está fundado na juridicidade. Toda e qualquer decisão jurídica é uma aplicação do ordenamento jurídico. Nesse sentido, inclusive, o artigo oitavo do novo Código de Processo Civil (“Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz ...”).

Apelar, da forma destacada, para os princípios constitucionais como caminho para atender anseios populares funciona, na prática, como álibi para: a) todo tipo de voluntarismo; b) realização de preferências políticas e partidárias e c) satisfação de simples interesses pessoais.

Admite-se, na atualidade, que os princípios constitucionais podem: a) incidir diretamente sobre os casos da vida; b) paralisar a incidência de uma lei-regra e c) conformar a incidência de lei-regra. Qualquer dessas utilizações ou aplicações do princípios jurídicos reclama do operador do direito, em especial do juiz, a apresentação de exaustiva argumentação que demonstre a melhor realização da ordem jurídica na solução do problema. É preciso indicar os enunciados normativos considerados, os aspectos fáticos julgados relevantes e as valorações contempladas no ordenamento jurídico.

O julgamento, pelo STF, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 132 é um emblemático exemplo da importância e correção dos novos rumos tomados pelo direito. Em julgamento unânime, com profunda argumentação jurídica, o pleno do Supremo reconheceu a incidência direta de um amplo conjunto de valores, princípios e objetivos constitucionais (proibição de discriminação, proibição do preconceito, pluralismo, liberdade, autonomia da vontade, dignidade da pessoa humana, igualdade, promoção do bem de todos, busca da felicidade, proteção da intimidade, proteção da privacidade, fundamentos da cidadania, construção de uma sociedade livre, justa e solidária, prevalência dos direitos humanos e liberdade de autodesenvolvimento da personalidade) para considerar a união homoafetiva como instituto existe, válido e eficaz. Não custa destacar que a conclusão indicada pelo STF representa um avanço civilizatório profundamente amparado na ordem jurídica. Não se tratou, no deslinde do caso, da concretização de capricho ou interesse pessoal, político ou partidário lançando mão de forma torta de valores, princípios e objetivos constitucionais.

Portanto, o novo paradigma de compreensão do direito, que reconhece força normativa para a Constituição e suas disposições (princípios, em especial), reclama operacionalização cuidadosa e limitada para a realização dos objetivos e valores constitucionais mais relevantes para o convívio social. Nesse sentido, o rigor e crítica social da argumentação jurídica são fundamentais. A abertura do direito para a vida, para o complexo e plural convívio social contemporâneo, por intermédio de valores e objetivos, não pode legitimar a sua interesseira aplicação para consecução de caprichos, interesses pessoais e desideratos político-partidários com a invocação genérica (um álibi mesmo) de respeito ao interesse público, à opinião pública ou aos anseios populares.