Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 27 de julho de 2022

O efeito da privatização de refinarias da Petrobrás: dois cenários possíveis

Quarta, 27 de julho de 2022
AEPET, com informações da FNP

Escrito por Eric Gil Dantas
Publicado em 26/07/2022 

No contexto dos “desinvestimentos” da Petrobrás, a estatal celebrou ainda em 2019 um Termo de Compromisso de Cessação com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) se comprometendo a vender metade do seu parque de refino, a fim de encerrar uma investigação sobre conduta anticompetitiva no setor. Desde então, a direção da empresa ganhou mais um argumento para se empenhar na entrega de suas refinarias para a iniciativa privada.

O curioso é que se a estatal cumprir a decisão do Cade teremos muito provavelmente elevação ainda maior dos preços dos combustíveis, como já vimos na Bahia – com a primeira refinaria privatizada, a RLAM (hoje Mataripe). Para terminar de cumprir o compromisso a estatal teria que vender, além da refinaria baiana, todas as outras fora do eixo Rio-SP: Lubnor (CE), SIX (PR), Reman (AM) e Clara Camarão (RN), que já estão com suas vendas assinadas, Rnest (PE), Repar (PR) e Refap (RS), que foram colocadas novamente a venda em junho, além da Regap (MG).

Tendo em vista que o discurso pró-privatização da Petrobras por parte do governo tomou novo fôlego nestes últimos três meses, com a nomeação de Adolfo Sachsida para o MME e Caio Paes de Andrade para o comando da estatal – ambos do time do Paulo Guedes – vou discutir quais seriam as possíveis consequências para o preço dos combustíveis se levarmos a cabo a privatização de mais refinarias da Petrobras.

Este é apenas um exercício parcial das consequências da privatização da Petrobras, especificamente no setor de refino. Há vários outros setores que já estão sendo modificados com as privatizações da maior empresa do país – em minha opinião com uma piora clara para o consumidor brasileiro. Como por exemplo: (i) a criação de duopólio na distribuição de gás natural com a venda da Gaspetro; (ii) o aumento da concentração de mercado com a venda da Liquigás (distribuição de gás de cozinha) para uma de suas concorrentes (Copagaz, hoje Copa Energia); (iii) criação de monopólios privados no transporte de gás natural (venda da NTS e TAG); (iv) venda da BR Distribuidora (hoje Vibra Energia) com a consequente piora na garantia de suprimento de combustíveis do país (ameaça constante de desabastecimento); e um longo e triste etc.

Por que privatizar refinarias aumenta preços?

Historicamente as refinarias do país foram construídas pela Petrobras para abastecer diferentes regiões. À exceção do estado de São Paulo, que possui três refinarias distintas da Petrobras, todas as outras unidades são espalhadas por diferentes estados: RS, PR, RJ, MG, BA, PE, RN, CE e AM. Elas não competem entre si, pois cada uma dá conta da sua região. Enquanto a Reman (Amazonas) abastece os estados do Pará, Amapá, Rondônia, Acre, Amazonas e Roraima, a Potiguar (Rio Grande do Norte) abastece o seu estado e o sul do Ceará. Isto ocorre mesmo em SP, já que cada refinaria está em uma região distinta: Região Metropolitana de Campinas, Região Metropolitana de São Paulo, São José dos Campos (Vale do Paraíba) e Cubatão (próximo a Santos). Ou seja, elas têm um formato complementar, e não de competição.

Sendo assim, ao entregar uma refinaria para a iniciativa privada, ela herda uma estrutura de mercado de monopólio regional. Esta foi a conclusão do estudo produzido por Antônio Thomé, Marcelo Seeling, Carlos Maligo, Allan Cormack e Millena Mansur, do Departamento de Engenharia Industrial da PUC-Rio. Há “alta possibilidade de formação de monopólios privados regionais, sem garantia de aumento de competitividade que possa ser refletido em redução do custo aos consumidores finais”. Eles chegaram a esta conclusão analisando a produção e o escoamento de Gasolina A e Diesel A das refinarias do país, considerando os diferenciais de custo entre as possíveis alternativas de suprimento, isto é, a possibilidade da concorrência real – levando em conta tanto os custos de produção quanto à possibilidade e o custo de levar seus produtos para regiões geográficas onde estariam as outras refinarias (verificando se há formas de escoamento por dutos, ferrovias, portos e rodovias e quanto isto adiciona no preço do seu produto).

Isto se agrava por, atualmente, as refinarias do país sequer darem conta da sua demanda. Em 2021, o Brasil importou 8,52% da gasolina consumida, 23,24% do diesel e 29,52% do GLP. Se as refinarias não dão conta da sua própria demanda, por que elas competiriam por mercado em outra região? Se a refinaria de Pernambuco não produz sequer tudo aquilo que a sua região demanda de diesel, faz sentido ela tentar entrar também no mercado baiano – a qual ainda haveria o acréscimo de custo de transporte?

Um segundo fator é a estrutura da própria empresa. A Petrobras é uma empresa que extrai o óleo e o refina. A margem da estatal é gigante. No primeiro trimestre de 2022, a Petrobras gastou R$ 218 para extrair e refinar um barril de petróleo (custo de extração, participações governamentais, amortização e custo de refino), enquanto isto vendeu o barril de derivados por R$ 544, um lucro operacional de R$ 326 por barril. Se a Petrobras fosse uma empresa que apenas refinasse e recebesse o barril ao preço internacional (US$ 101,40/R$ 522, em média no 1º trimestre de 2022), sua margem de refino seria de apenas R$ 22,23 por barril, muito menor do que é a de uma empresa integrada. Sendo assim, a Petrobras com extração e refino tem uma margem muito maior para absorver preços menores do que a Acelen/Mataripe, por exemplo, que é uma tomadora de preços para o petróleo e apenas refina.

E, por fim, o único objetivo de uma empresa privada é a maximização do seu lucro. Na Petrobras isto não é verdade, vide todo o debate público e o comportamento da empresa do ano passado para cá. Mesmo com a política privatista, em prol dos acionistas minoritários e de preservação do PPI, a Rnest vendeu diesel s-10 36 centavos abaixo do PPI ao longo de 2022 e a Regap vendeu gasolina 61 centavos abaixo do PPI para este mesmo período. A Acelen não tem nada a ver com o povo baiano, ela só quer lucrar o máximo possível para remunerar o seu dono nos Emirados Árabes. Tanto que em vários momentos vendeu gasolina e diesel acima do próprio PPI.

O que aconteceu na Bahia?

A Bahia deve ser considerada um laboratório da privatização das refinarias do país, pois o que aconteceu na Bahia seria uma antecipação do que deverá ocorrer nas outras regiões onde houver novas privatizações.

A Refinaria Mataripe está sob operação da Acelen desde dezembro do ano passado. Essa refinaria, quando era de propriedade da Petrobras vendia gasolina em média 2 centavos mais barato do que as outras refinarias da estatal e o diesel em média 3 centavos mais barato (dados de 01/08/2019 até 29/09/2021). Após a privatização, a refinaria passou a ter preços bem mais elevados do que todas as outras, transformando-se na refinaria mais cara do país.

Para ilustrar isto, vejamos no gráfico como a refinaria privatizada se comportou se comparada à Petrobras no preço da gasolina. À exceção de 13 dias ao longo de 2022, Mataripe sempre teve preços mais elevados do que a Petrobras. Em média, ao longo do ano de 2022 a Acelen cobrou 8% a mais pela gasolina do que a estatal. Isto ocorre mais ou menos igual para o diesel. Em apenas 22 dias do ano a Acelen vendeu diesel abaixo do preço da Petrobrás. Na média, a Acelen vendeu diesel 6,7% mais caro do que a Petrobras.

Gráfico 1 – Preços da Gasolina A nas refinarias da Acelen e da Petrobrás (em R$) – de 01/01/2022 a 11/07/2022

Em síntese, a refinaria da Bahia que vendia gasolina e diesel abaixo da média das outras refinarias da Petrobras, transformou-se na refinaria mais cara do país – fruto unicamente da privatização.

O que pode acontecer a partir da privatização de outras refinarias?

Para pensarmos como a privatização das outras refinarias que estão no rol de desinvestimentos poderá afetar o preço dos combustíveis, simularemos dois cenários. O primeiro é o de reprodução do caso da Acelen para as outras refinarias a serem privatizadas. A segunda é a adoção do PPI por parte destas refinarias.

1º Cenário – Acelen como exemplo

O pressuposto aqui é que as refinarias do pacote de privatização passarão a se comportar tal como a Acelen/Mataripe após a privatização. O que é bastante razoável, tendo em vista que a estrutura produtiva, de mercado e tipo de empresa (operadora apenas de refino) do caso baiano é o mesmo das outras refinarias/mercados.

Como método fizemos o seguinte. Produzimos um número-índice para cada uma das refinarias a serem privatizadas e que tenham produção para gasolina e diesel s-10. Este número foi criado a partir da relação entre preço dos combustíveis na Rlam com a refinaria em questão baseado nos preços disponibilizados no site da Petrobras (1 de agosto de 2019 até 30 de setembro de 2021). Por exemplo, o número-índice da Repar é de 1,058 para o diesel s-10, pois naquele período a refinaria paranaense vendeu este produto em média por 105,8% do preço cobrado pela Rlam. Outro exemplo, na gasolina o número-índice da Clara Camarão é de 0,957, pois a refinaria potiguar vendeu gasolina – em média – por 95,7% do preço da Rlam.

Para a gasolina (Gasolina A) levamos em conta as refinarias Repar, Refap, Regap, Clara Camarão, Rnest e Reman, que são as que têm produção de gasolina e estão no pacote de privatização. Para o diesel S-10 (Diesel S-10 A) levamos em conta a Repar, Refap, Regap e a Rnest, que são as que produzem diesel s-10 (a Reman, por exemplo, só produz diesel s-500).

Como podemos ver no Gráfico 2, a diferença percentual entre o preço cobrado caso estas refinarias se comportassem tal como a Mataripe e o quanto elas cobraram de fato foi, em média, 9%. Isto é, neste cenário ao longo de 2022 a gasolina teria sido 9% mais cara se estas refinarias fossem privadas. Há momento de maior e de menor diferença, como podemos ver no gráfico. Isto se dá porque a Petrobras tem uma política de menor quantidade de reajustes, enquanto a Acelen/Mataripe tem reajustes constantes (principalmente aos sábados).

Gráfico 2 – Comparação de preços médios simulados de gasolina que seriam praticados pelas refinarias privatizadas e o preço efetivamente cobrado pelas refinarias sob propriedade da Petrobras – em percentuais (01/01/2022 a 11/07/2022)

Já no caso do diesel s-10, a partir desta simulação, teríamos em média um combustível 12% mais caro nestas refinarias, caso elas se comportassem como a Acelen.

Gráfico 3 – Comparação de preços médios simulados de diesel s-10 que seriam praticados pelas refinarias privatizadas e o preço efetivamente cobrado pelas refinarias sob propriedade da Petrobras – em percentuais (01/01/2022 a 11/07/2022)

2º cenário – O PPI como referência

Um segundo cenário possível é que estas refinarias passem a utilizar o Preço de Paridade de Importação (PPI) como sua referência pura e simples. Como a concorrência aqui ocorreria basicamente a partir de importações (e importação realmente tem como referência o PPI), é um cenário que também é bastante plausível.

Para isto, comparamos o preço médio do PPI por região, disponibilizado pela ANP, com os preços efetivamente cobrados por refinaria da Petrobras. Por exemplo Rnest x Suape, Refap x Canoas, Clara Camarão x Guamaré. Diferentemente do anterior, que foi colocado em dias (porque os dados eram diários), aqui transformamos tudo em semanas (porque os dados de PPI são semanais).

Se estas refinarias cobrassem o preço do PPI, teríamos em média ao longo de 2022 uma gasolina 11,5% mais cara do que efetivamente foi cobrado pela Petrobras.

Gráfico 4 – Comparação de preços médios simulados de gasolina A que seriam praticados pelas refinarias privatizadas com o PPI e o preço efetivamente cobrado pelas refinarias sob propriedade da Petrobras – em percentuais (semana 03-07/01/2022 a semana 04-08/07/2022)

á o diesel s-10 teria tido um preço, em média, 10,3% superior nestas refinarias, caso elas estivessem privatizadas e seguissem o PPI.

Gráfico 5 – Comparação de preços médios simulados de diesel s-10 que seriam praticados pelas refinarias privatizadas com o PPI e o preço efetivamente cobrado pelas refinarias sob propriedade da Petrobras – em percentuais (semana 03-07/01/2022 a semana 04-08/07/2022)

Se privatizar vai aumentar

Em síntese, os dois cenários mostram que a privatização destas refinarias causaria aumento de preços. A média do preço da gasolina poderia sido 9% (1º cenário) ou 11,5% (2º cenário) superior ao que efetivamente foi, caso as refinarias tivessem sido privatizadas. Já o diesel s-10 poderia ter sido vendido 10,3% (2º cenário) ou 12% (1º cenário) superior ao que efetivamente foi.

Isto são estimativas, claro, mas é pouco provável que um cenário de privatização esteja muito longe destes dois cenários apresentados. Nem mesmo os analistas de mercado negam que o efeito – ao menos de curto e médio prazo, na concepção deles – é de aumento de preços.

Estamos falando do efeito em um conjunto de refinarias que podem ser privatizadas. Mas obviamente se em todos os outros estados os preços se elevarem, a Petrobras estenderá esse aumento de preços também para suas refinarias do Rio e SP. Ou a estatal manteria preços “especiais” apenas nestes dois estados? Duvido.

Se atingimos os maiores preços da história para gasolina, diesel, GLP, querosene de aviação e todos os outros produtos derivados de petróleo, e acabamos de destruir as contas públicas da União, estados e municípios para tentar frear este problema, a última coisa que precisamos é uma política que eleve ainda mais os preços cobrados nas refinarias. Não me parece muito inteligente privatizarmos nosso parque de refino se é esta a consequência. Pelo contrário, precisamos que a Petrobras retome a criação de novas unidades, a fim de zerarmos a nossa dependência do mercado externo. Com o pré-sal nos tornamos o oitavo maior produtor de petróleo do mundo, e ainda aumentaremos a nossa produção nos próximos anos. A faca e o queijo estão em nossas mãos. Vamos jogá-las fora?


Eric Gil Dantas. É economista do Observatório Social do Petróleo (OSP) e do Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais (Ibeps). É mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná e pesquisador de pós-doutorado na Fundação Getulio Vargas de São Paulo na área de Economia Política.

Fonte: FNP