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(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Alexandre Dugain: a libertação da economia — 3ª parte

Quarta, 6 de julho de 2022

Alexandre Dugain: a libertação da economia, 3ª parte

Publicado em 06/07/2022
*Escrito por Felipe Quintas e Pedro Pinho

Ninguém segura a juventude do Brasil

“A futura ordem mundial já está rolando. Será constituída por Estados soberanos fortes. O barco levantou âncora. Sem volta” (Pepe Escobar, “Exílio em plena rua principal: ao som do mundo unipolar que desaparece”, UNZ Review, 22/06/2022, tradução por Vila Mandinga autorizada pelo autor).

O mundo que se extingue agora, no Ocidente, é o mundo de João Calvino (1509-1564), que Louis Dumont (“Ensaios sobre o Individualismo”, 1983) denomina de “um individualismo fora do mundo cristão”. Este ultraliberalismo da Escola Austríaca (Ludwig von Mises, Friedrich Hayek, Karl Menger (filho de Carl Menger), Oskar Morgenstern, Abraham Wald) é o fundamentalismo do mercado e a destruição do Estado, mesmo o globalizado, na acepção de Theodore Levitt (1925-2006), que reconhece a globalização e as organizações internacionais, sejam governamentais e não governamentais. Desde o advento do neoliberalismo nas décadas de 1970 e 1980, o Estado se identificou a tal ponto com a suposta racionalidade econômica do mercado, ditada pelos centros financeiros e acadêmicos, que ele se dissolveu na sua trama de interesses privados especulativos.

Paralela a esta mudança se deu profunda alteração no que se designava “veículos de comunicação”, as mídias. O que provoca também alterações nos comportamentos e nas percepções das pessoas.

Por conseguinte, uma Teoria Geral do Estado deve ser no mínimo contemporânea da sociedade que surge. O conjunto internacional de sociedades hoje tende cada vez para a multipolaridade, e, consequentemente tem as soberanias ressaltadas para a efetividade deste mundo de muitos atores. Do mesmo modo que as potências coloniais mudaram as formas de domínio, concedendo independências políticas após a II Grande Guerra, os países agora dominantes também não terão as presenças que deles se exigiam, mesmo unipolares, para garantia do poder.

E esta nova sociedade plural precisa ter um projeto de construção da cidadania compatível. Este será quase exclusivo, pouco valendo teorias gerais e exemplos exitosos. Será tanto mais eficaz quanto único, atendendo à cultura e à formação do povo habitante do território, logo às próprias condições físicas dos Estados, seus recursos de toda sorte: insolação, aquíferos e água doce, terras para agricultura, biomas, minerais, fontes de energia etc.

Alexandre Dugin (“Quarta Teoria Política”, 2009) parte da análise existencial do ser, o “Dasein” em Martin Heidegger (1889-1976). O ser que está em permanente formação. O Dasein é ser-junto-a, é um ser com outros. O homem necessita da presença do outro para viver. A convivência com o outro tem o papel muito importante na vida do homem, pois é através dela que “o homem se humaniza”.

“O Dasein partilha com os outros o espaço que circunda. Em sua ocupação ele se encontra a si mesmo e aos outros. De fato, nesta possibilidade de ser-com-os-outros, “o estar-só do Dasein é ser-com no mundo (…). O próprio Dasein só é na medida em que possui a estrutura essencial de ser-com, enquanto co-Dasein que vem ao encontro dos outros” (M. Heidegger, “Ser e Tempo”, tradução de “Sein und Zeit”, 1927, por Márcia Sá Cavalcante Schuback, para Editora Vozes, Petrópolis, 2002).

Nesta relação não só o homem se “humaniza” como é relativizada a individualidade liberal e se pode considerar a máxima romano da sujeição da liberdade individual ao interesse coletivo.

No entanto, vemos, novamente, como Fichte, buscando na confederação os limites das ações soberanas. E assim se chega à possibilidade efetiva: dar consistência real ao desejo de paz.

Vê-se, por conseguinte, que abandonando a economia como característica dos interesses individuais e societários, se pode construir um mundo melhor.

Resta adequar a cultura, sempre nacional, pois fruto da condição especial de relação do homem com seu ambiente físico, à estrutura organizacional, também própria do Estado, aos interesses da humanidade e em harmonia com os demais Estados Nacionais. O Estado não é uma categoria abstraída das condições culturais e existenciais do povo, pois, quando assim é, trata-se não de um Estado legítimo, mas de um entreposto colonial, a serviço de interesses exóticos.

Dugin considera as características do homem da pós-modernidade:

“despolitização, autonomização, microscopização, sub- e trans-humanização (como forma especial de desumanização), e dividualização (fragmentação)”.

Algumas características resultam do progresso da ciência, das tecnologias desenvolvidas para responder às necessidades sempre novas do homem e da sociedade. Não é possível desassociar a miniaturização das coisas às suas consequências sociais e psicológicas, à modificação social que dela decorre.

Tampouco se pode ignorar a estreita vinculação entre um capitalismo cada vez mais financeirizado, desmaterializado e burocrático com a crescente desagregação psicossocial, que dissolve ou fragiliza os vínculos comunitários e torna os seres humanos reféns de sistemas invisíveis e totalitários de dominação representados pela ideologia dominante como fatores de libertação e de expressão individuais.

No atual cenário, de especial importância é a possibilidade de participação, cada vez maior e mais intensa, do homem na sociedade. Ou seja, a consciência política da existência e da integração indispensável para transformar os esforços em benefícios comuns.

Recordando a citação de André Gide, feita por Heidegger na conferência: “O Que é Isto, a Filosofia?” (1956), “C’est avec les beaux sentiments que l’on fait la mauvaise littérature” (É com os belos sentimentos que se faz a má literatura), todas estas reflexões irão necessitar de organização política popular e participativa e lideranças autênticas, conscientes, para que se realizem.

O que encontramos no passado recente brasileiro?

Em 1995, surgiu o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), elaborado pelo então ministro do extinto “Ministério da Administração e Reforma do Estado (Mare)”, Luiz Carlos Bresser-Pereira, ex-ministro da Fazenda de José Sarney, designado por Fernando Henrique Cardoso.

Especificamente destinada ao funcionamento do Estado, o governo militar editou o Decreto-Lei 200/67, pelo qual a execução de algumas tarefas de interesse do Estado poderiam ser realizadas por outras pessoas jurídicas. Quando não pretendia executar certa atividade, através de seus próprios órgãos, o Poder Público transferiria a sua titularidade ou sua execução a outras entidades.

O mote maior seria a descentralização, porém, efetivamente, começava a desfigurar a ação do Estado, introduzindo a capacitação formal por entidades privadas ou mistas.

A Grande Depressão dos anos 1930 decorreu do mal funcionamento do “mercado”. No Brasil, com a Revolução de outubro de 1930, já em novembro, após a posse do Governo Provisório, Getúlio Vargas dá início à primeira grande reforma do Estado Brasileiro, que inauguraria nova era em nossa história: a Era Vargas. Esta Era, com governos de diferentes matizes políticas, uns eleitos outros impostos pelo estamento militar, teve continuidade e consolidou o progresso econômico e social do País. Não havia, antes de 1930, classe média numerosa e menos ainda classe industrial empreendedora. Restava, por conseguinte, ao Estado assumir não apenas o papel de indutor e planejador mas de executor das transformações.

Civis e militares estiveram envolvidos, uns mais economicistas outros mais socialistas, todos capitalistas, na construção do novo Brasil. Foram nossos “50 anos gloriosos”, fazendo alusão à expressão cunhada pela Associação Francesa de Economia Política. O comunismo não ganhou aqui a adesão que encontrou na Europa pelas opções erradas que desde a Revolução de 1930 adotou, num rigor ideológico e prática autoritária que leva ao desastre da “Intentona” de 1935. Ficou assim marcado não só pelos liberais e pela Igreja Católica, também pelos trabalhistas e nacionalistas, como um movimento não nacional, impatriótico que a participação na II Grande Guerra não conseguiu apagar.

Assim, com forte presença do Estado, a organização nacional teve na área privada um complemento, nunca a condução. No Governo Geisel (15 de março de 1974 a 15 de março de 1979) ocorre um fato significativo da insatisfação da indústria privada: o “Documento dos Oito”, assinado por oito empresários, conhecidos pelas ações empreendedoras, políticas e sociais, entre eles o ex-ministro Severo Gomes, pedindo “ampla participação de todos ..... capaz de promover a plena explicitação de interesses e opiniões, dotado de flexibilidade suficiente para absorver tensões sem transformá-las num indesejável conflito de classes — o regime democrático. Mais que isso, estamos convencidos de que o sistema de livre iniciativa no Brasil e a economia de mercado são viáveis e podem ser duradouros, se formos capazes de construir instituições que protejam os direitos dos cidadãos e garantam a liberdade”.

Não estivéssemos no regime fechado, militar, esta manifestação que poderia ser acolhida pelo modelo mais aberto, como de maior participação da sociedade civil, mas se transformou em verdadeiro impulso à ausência do Estado, ao neoliberalismo que se instalaria em 1990.

Assim, as expressões sinônimas à Reforma do Estado, quaisquer que fossem as justificativas e discursos, não objetivavam a eficiência mais ao encolhimento do Estado em favor do “mercado”, ou seja, os particulares definindo o seu interesse como geral.

Asneiras e bobagens como número de ministérios, de funcionários públicos, de gastos com aposentadorias e pensões de funcionários civis são divulgados pelas mídias, já controladas pelos capitais apátridas, como fatores a serem corrigidos, enquanto a legislação tributária, que penaliza as classes médias e pobres, aliviando as mais ricas, está sistematicamente ausente das “reformas do Estado”, nunca examinada pelas receitas, apenas pelas despesas.

Estados, municípios e União têm seus impostos, taxas e contribuições. A grande fonte de arrecadação são os impostos indiretos, aqueles que recaem sobre todos os cidadãos, como aqueles incidentes nos alimentos e produtos de higiene. Pobres, ricos, remediados pagam o mesmo tributo, ainda que, diante de suas rendas tenham significação muito diferente. Por outro lado, há impostos que só recaem sobre a renda da pessoa, como o de propriedade de veículos, helicópteros, fazendas. Nenhum pobre e pouquíssimos da classe média pagam estes tributos. E eles são muito favoráveis a ponto de lanchas de passeio não sofrerem tributação anual, como ocorre com automóveis. Do mesmo modo, as isenções de imposto de renda não se dão sobre rendimento do trabalho mas sobre rendimentos financeiros.

O período de governo de Fernando Henrique Cardoso foi extraordinariamente nefasto para a formação de um Estado eficaz e democrático, embora a mídia hegemônica tenha vendido um conceito inteiramente oposto. Mas a derrota de seu partido mostra que o povo sentiu diferentemente da propaganda enganosa da mídia. Não é nosso objetivo analisar questões específicas, mas as filosofias e políticas que as sustentam. No entanto há verdadeiras aberrações que merecem ser examinadas: a que foi instituída pela lei nº 9.790, de 23 de março de 1999, uma verdadeira armadilha para fraudar as contas públicas, e a promulgada mais recentemente, a lei nº 14.185, de 14 de julho de 2021, verdadeiro assalto legalizado ao Estado e aos contribuintes.

A primeira cria as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OS e OSCIP), onde organizações “sem fins lucrativos” recebem de cofres públicos para executarem serviços próprios de órgãos públicos. Isso mesmo, o leitor não errou:

“Art. 3º - A qualificação instituída por esta Lei, observado em qualquer caso, o princípio da universalização dos serviços, no respectivo âmbito de atuação das Organizações, somente será conferida às pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujos objetivos sociais tenham pelo menos uma das seguintes finalidades:

I - promoção da assistência social;

II - promoção da cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico;

III - promoção gratuita da educação, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata esta Lei;

IV - promoção gratuita da saúde, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata esta Lei;

V - promoção da segurança alimentar e nutricional;

VI - defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável;

VII - promoção do voluntariado;

VIII - promoção do desenvolvimento econômico e social e combate à pobreza;

IX - experimentação, não lucrativa, de novos modelos sócio-produtivos e de sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito;

X - promoção de direitos estabelecidos, construção de novos direitos e assessoria jurídica gratuita de interesse suplementar;

XI - promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros valores universais;

XII - estudos e pesquisas, desenvolvimento de tecnologias alternativas, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos que digam respeito às atividades mencionadas neste artigo”.

“Art. 10. O Termo de Parceria firmado de comum acordo entre o Poder Público e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público discriminará direitos, responsabilidades e obrigações das partes signatárias.

§ 2º São cláusulas essenciais do Termo de Parceria:

I - a do objeto, que conterá a especificação do programa de trabalho proposto pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público;

IV - a de previsão de receitas e despesas a serem realizadas em seu cumprimento, estipulando item por item as categorias contábeis usadas pela organização e o detalhamento das remunerações e benefícios de pessoal a serem pagos, com recursos oriundos ou vinculados ao Termo de Parceria, a seus diretores, empregados e consultores”.

A lei nº 14.185 dispõe sobre o acolhimento pelo Banco Central do Brasil de depósitos voluntários à vista ou a prazo das instituições financeiras:

“Art. 1º Fica o Banco Central do Brasil autorizado a acolher depósitos voluntários à vista ou a prazo das instituições financeiras.

Parágrafo único. A remuneração dos depósitos referidos no caput deste artigo será estabelecida pelo Banco Central do Brasil”.

Estes “depósitos voluntários” são os saldos diários das contas dos clientes do banco que, aplicados pelo banco, gerarão títulos de dívida pelo Governo e remuneração para a entidade financeira. E tudo com seu dinheiro.

Tudo feito para encolher o Estado e promover a eficiência da gestão pública.

*Felipe Maruf Quintas, cientista político, e Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.
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Em breve será publicada a 4ª parte