Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

CORRUPÇÃO, PREVENÇÃO E DESIGUALDADE PARTE II — A CULTURA DE LEVAR VANTAGEM

Sexta, 11 de novembro de 2022

Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 11 de novembro de 2022

Nesta série de textos abordarei, de forma sucinta, vários temas relacionados com um dos mais relevantes problemas da realidade brasileira: a corrupção sistêmica. Não é o maior dos nossos problemas (a extrema desigualdade socioeconômica ocupa esse posto). Também não é momentâneo ou transitório (está presente em todos os governos, sem exceção, desde que Cabral chegou por aqui). Não está circunscrito a um partido ou grupamento político (manifesta-se de forma ampla no espectro político-partidário). Não está presente somente no espaço público (a corrupção na seara privada é igualmente significativa). Não será extinta ou reduzida a níveis mínimos com cruzadas morais ou foco exclusivo na repressão (será preciso uma ação planejada, organizada e institucional em torno de uma série de medidas preventivas). Não obstante esses traços característicos, tenho uma forte convicção. A construção de uma sociedade democrática, justa, solidária e sustentável, centrada na dignidade da pessoa humana em suas múltiplas facetas e manifestações, exige um combate firme, consistente e eficiente a essa relevantíssima mazela do perverso cenário tupiniquim.  

Existe um elemento de fundo responsável pela alimentação, em larga escala, da corrupção, da improbidade administrativa e das mais variadas formas de malversações da coisa pública (e privada) no Brasil. Trata-se da cultura de levar vantagem.

O combate à corrupção no Brasil envolve um sério (seriíssimo, melhor dizendo) enfrentamento à tolerância histórica com essa prática e outros procedimentos escusos similares. Está enraizada na formação da sociedade brasileira e na própria construção do Estado a ideia de que o “esperto”, aquele que leva todo tipo de vantagem (lícita e ilícita, em espaços públicos e privados), é merecedor de elogios e é sinônimo de sucesso.

No Brasil, temos uma famosa “lei” para retratar a “cultura de levar vantagem”. Afirma a Wikipédia: “Na cultura brasileira, a Lei de Gérson é um princípio em que determinada pessoa age de forma a obter vantagem em tudo que faz, no sentido negativo de se aproveitar de todas as situações em benefício próprio, sem se importar com questões éticas ou morais./A ‘Lei de Gérson’ acabou sendo usada para exprimir traços bastante característicos e pouco lisonjeiros do caráter midiático nacional, associados à disseminação da corrupção e ao desrespeito a regras de convívio para a obtenção de vantagens pessoais”.

Na esteira da cultura de levar vantagem, vigora, de forma ampla, a hipocrisia de que “os outros” são corruptos, “os meus” são “espertos”, “competentes”, “desenrolados”, “jeitosos”, “maleáveis”, “flexíveis”, “compreensivos”, “habilidosos” ou coisa que o valha.

O auxílio emergencial, instituído como ajuda financeira de R$ 600,00 (seiscentos reais) mensais para o extrato mais vulnerável da população, ante a redução das atividades econômicas e as implicações na obtenção de renda decorrentes da pandemia da Covid-19, foi recebido indevidamente por milhões de pessoas, entre elas militares, servidores públicos e empresários.

Segundo levantamento realizado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), mais de 7 milhões de beneficiários do auxílio emergencial não se enquadravam nas exigências da legislação pertinente. As verificações efetivadas pelo TCU indicam que cerca de R$ 54 bilhões, dos R$ 293 bilhões distribuídos, foram pagamentos indevidos.

Essa lamentável realidade relacionada com o auxílio emergencial é uma das raras situações onde é possível quantificar, em número de beneficiários e valores envolvidos, como a cultura de levar vantagem está amplamente disseminada na sociedade brasileira. Sublinhe-se que num momento de profundo desespero, milhões de brasileiros receberam um valor, completamente indiferente ante suas condições financeiras, subtraído de outras milhões de pessoas que, em regra, dependiam desses recursos para a necessidade fundamental de viabilizar a alimentação pessoal e familiar. Esse foi um dos quadros mais surrealistas pintado na sociedade brasileira nos seus cinco séculos de existência formal.

Exemplifico, nessa linha, um conjunto de condutas, “socialmente aceitas”, que merecem profunda reflexão justamente em função dessa “aceitação” de vantagens indevidas ou ilícitas. São inaceitavelmente comuns: a) “colar” em provas; b) copiar obras alheias sem declinar a autoria; c) “encomendar” a elaboração de trabalhos acadêmicos; d) responder chamadas escolares por colegas; e) subornar autoridades de trânsito; f) viajar em transportes urbanos sem pagar; g) estacionar em fila dupla; h) dirigir sob a influência de bebidas alcoólicas; i) “fabricar” atestados médicos; j) modificar dados em documentos; k) “capturar” o sinal da tv a cabo; l) criar e alimentar várias modalidades de “gatos” e m) jogar (ou mais propriamente, arremessar) toda espécie de lixo nas vias públicas.

Os exemplos escolares ou acadêmicos são propositais. Afinal, esses espaços de convivência são justamente onde se formam ou moldam, em grande medida, consciências e pautas de valores importantíssimas para os mais variados convívios sociais ao longo da vida.

Portanto, diante do que foi dito, o combate à corrupção e demais formas de malversação dos patrimônios público e privado reclama, entre outras iniciativas, fortes e permanentes ações educativas contra a cultura de levar vantagem. É preciso investir numa profunda mudança cultural e de comportamento de boa parte da sociedade. É crucial promover entre as novas gerações os necessários debates e reflexões sobre ética, transparência, controle social e cidadania. O compromisso com a superação do mais vil egoísmo, presente em cada ato de corrupção, em favor de um olhar generoso para as dimensões coletivas e sociais da vida, é uma das mais importantes dimensões do permanente aprendizado que começa na infância.