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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

CORRUPÇÃO, PREVENÇÃO E DESIGUALDADE. PARTE III — O SERVIDOR CORRUPTO SOZINHO

 Sexta, 18 de novembro de 2022

CORRUPÇÃO, PREVENÇÃO E DESIGUALDADE
PARTE III — O SERVIDOR CORRUPTO SOZINHO

Aldemario Araujo Castro
Advogado
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Brasília, 18 de novembro de 2022

Nesta série de textos abordarei, de forma sucinta, vários temas relacionados com um dos mais relevantes problemas da realidade brasileira: a corrupção sistêmica. Não é o maior dos nossos problemas (a extrema desigualdade socioeconômica ocupa esse posto). Também não é momentâneo ou transitório (está presente em todos os governos, sem exceção, desde que Cabral chegou por aqui). Não está circunscrito a um partido ou grupamento político (manifesta-se de forma ampla no espectro político-partidário). Não está presente somente no espaço público (a corrupção na seara privada é igualmente significativa). Não será extinta ou reduzida a níveis mínimos com cruzadas morais ou foco exclusivo na repressão (será preciso uma ação planejada, organizada e institucional em torno de uma série de medidas preventivas). Não obstante esses traços característicos, tenho uma forte convicção. A construção de uma sociedade democrática, justa, solidária e sustentável, centrada na dignidade da pessoa humana em suas múltiplas facetas e manifestações, exige um combate firme, consistente e eficiente a essa relevantíssima mazela do perverso cenário tupiniquim.

Entre as manifestações mais frequentes da corrupção, fraudes e atos congêneres estão os casos em que um funcionário público atua sozinho, de forma isolada ou individual. Em regra, esse agente vislumbra oportunidades, no âmbito de sua atuação funcional, de obter vantagens indevidas, em regra pecuniárias.  

Os ilícitos podem ser praticados por intermédio de atos positivos ou negativos. Pode ser expedido um documento sem atendimento aos ditames legais pertinentes (um alvará, uma certidão, um relatório, etc). Por outro lado, um ato pode não ser praticado ou retardado. Nesse caso, busca-se o recebimento de algum valor (propina) para “lubrificar” a máquina emperrada. Normalmente, faz-se uma análise rasteira do custo-benefício de ações deletérias e, de alguma maneira, uma aposta num sentimento geral de impunidade.  

São inúmeros e variados os caminhos trilhados nessas ações escusas. Na sequência, serão mencionados algumas das ocorrências mais comuns em função do modus operandi utilizado.

No âmbito da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) já foram flagrados e punidos inúmeros casos de emissão indevida de certidões quanto à Dívida Ativa da União. Um procedimento comum, nesses casos, é o cancelamento dos débitos de uma pessoa física ou jurídica num determinado dia, a emissão da certidão (negativa) no dia seguinte e a reativação dos débitos no terceiro dia.

Também foram identificadas várias situações de baixas ou cancelamentos indevidos de débitos na Dívida Ativa da União para favorecer pessoas físicas ou jurídicas devedoras. Um dos procedimentos utilizados possuía traços bem originais. Primeiro, um servidor com acesso ao sistema informatizado reduzia os valores a serem pagos. Um débito de R$118.346,00 era alterado para R$ 118,34, por exemplo. Depois, o devedor, beneficiário da malversação, realizava o pagamento desse valor menor por intermédio de documento de arrecadação na rede bancária. Na sequência, o próprio sistema informatizado realizava a baixa do débito a partir do reconhecimento daquele recolhimento reduzido (em relação ao valor devido).

Relatórios de medição ou fiscalização são objetos frequentes de ações escusas. Normalmente, viabilizam a realização de obras ou pagamentos no seio de contratos firmados por particulares com o Poder Público. Assim, atestar regularidade (onde ela não existe) ou que foi realizada obra, serviço ou entrega (quando não foi ou foi efetivada a menor) rendem “boas” propinas para o agente público envolvido nesse procedimento escuso.

A inserção de dados falsos em sistemas informatizados para gerar supostos direitos, como benefícios previdenciários, é uma prática observada com indesejável frequência. A defesa do servidor, em um desses casos, argumentou que se tratava de uma operação para averiguar a eficiência dos procedimentos de controle e fiscalização !!!!

Dependendo da extensão e lapso temporal da realização dos registros indevidos é possível flagrar o enriquecimento ilícito do servidor envolvido com as irregularidades (art. 9o, inciso VII, da Lei n. 8.429, de 1992 – Lei da Improbidade Administrativa). São significativas as situações de acréscimos patrimoniais sem respaldo em origens lícitas, notadamente inúmeros depósitos bancários na conta do servidor ou familiares mais próximos.

São frequentes, entre as explicações para os acréscimos patrimoniais incompatíveis com as rendas conhecidas, afirmações acerca do desenvolvimento de atividades econômicas informais sem a produção de nenhum tipo de documento físico ou eletrônico (contratos, termos, recibos, e-mails, etc). Num caso bem peculiar, o enriquecimento ilícito foi justificado a partir de dezenas de operações de compra e venda de veículos. Todas as transações desprovidas de lastro documental. Sequer foram apontados os veículos envolvidos para uma possível verificação junto ao órgão de trânsito competente.

Observa-se que a Administração Pública adota com intensidade crescente mecanismos de verificação (auditorias, trilhas, etc) de anomalias e desvios nos sistemas informatizados que direta ou indiretamente gerem recursos públicos. Juntamente com as denúncias, a maioria anônimas, são os meios mais frequentes de identificação de condutas deletérias.


Textos anteriores da série:

PARTE I – O SENTIDO COLOQUIAL DE CORRUPÇÃO
PARTE II – A CULTURA DE LEVAR VANTAGEM

Disponíveis em: