Sexta, 20 de junho de 2014
Da Pública
Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo
Os protestos no Brasil contra os abusos da entidade fizeram com
que pela primeira vez a Fifa viesse a público para se explicar; o que
não significa revelar a verdade, como pontua o jornalista sula-fricano
Eddie Cottle
O lançamento do folheto é importante: pela primeira vez a Fifa se viu
forçada por protestos em massa – e pelos brasileiros – a defender sua
imagem assim. As manifestações no Brasil têm ganhando dimensões bem
maiores do que fatos como a onda de greves ocorrida durante a Copa na
África do Sul exigindo da Fifa que incorporasse a agenda mundial por
trabalho decente. E desta vez o cenário da maior revolta contra a
entidade em uma Copa do Mundo é um país que ama o futebol!
O panfleto é revelador pelo tom defensivo adotado pela Fifa, até
então a voz hegemônica do futebol mundial. Começa com uma afirmação
cômica, mas inegavelmente franca: “Os contribuintes pagaram a conta, a FIFA não gastou nada“,
diz, referindo-se aos custos de 15 bilhões de dólares em infraestrutura
para a Copa, destacando que só é responsável por cobrir os custos
operacionais do evento.
Segundo a FIFA, os gastos com a infraestrutura da Copa do Mundo partiram exclusivamente dos contribuintes (Foto: Agência Brasil)
Ok, estamos todos de acordo, a Fifa não gastou um centavo com o
principal e mais caro fator do evento, a infraestrutura mega-esportiva.
Faltou dizer que os contribuintes estão pagando um mega subsídio
público, precisamente porque a FIFA não “gasta nada”! E além dessa e de
outras doações públicas que recebe dos países que sediam a Copa do
Mundo, a criança mimada FIFA exige mais uma série de concessões legais,
as famigeradas Leis da FIFA (no Brasil, conhecidas como Lei Geral da
Copa).
Essas leis têm um papel chave para garantir mega lucros à FIFA e a
seus parceiros comerciais, bancos, empresas de construção e engenharia
locais e internacionais. A acumulação de capital para FIFA, afiliadas,
empresas e seus acionistas, baseia-se exatamente nesse acesso a fundos
públicos, subsídios e isenções fiscais que permitem à entidade e seus
parceiros juntar bilhões de dólares sem qualquer esforço. Quem toma os
recursos dos contribuintes do país-sede são os Estados nacionais, que
representam o grande capital.
A FIFA está correta ao dizer no folheto que não há isenção fiscal total geral, mas há uma extensa série de isenções de impostos federais
concedidas exclusivamente: (i) à própria FIFA e às entidades
relacionadas domiciliadas no exterior; (ii) às afiliadas da FIFA no
Brasil; (iii) aos prestadores de serviços da FIFA estabelecidos no
Brasil; e (iv) a pessoas físicas não-residentes contratadas para
trabalhar nos eventos. As isenções incluem todas as receitas, lucros,
despesas, custos, investimentos, folhas de pagamento e qualquer tipo de
pagamento, em dinheiro ou de outra forma.
Há isenções fiscais por tempo determinado para importações realizadas
pela FIFA, por subsidiárias brasileiras da FIFA, confederações da FIFA,
membros de associações estrangeiras da FIFA, parceiros de negócios e
prestadores de serviços estrangeiros da FIFA, e a transmissora oficial
da FIFA.
Há também pagamentos especiais e únicos de prêmios no valor de R$ 100
mil (sem impostos), bem como uma bolsa mensal para os jogadores que
fizeram parte das equipes vencedoras da Copa do Mundo de 1958, 1962 e
1970.
Esses pagamentos serão feitos por intermédio do Ministério do Esporte
e do Ministério da Previdência Social e a origem desses recursos é o
erário público.
As Leis da FIFA estabelecem ainda que todos os “vistos e autorizações de trabalho”
relacionados ao evento deverão ser emitidos gratuitamente a centenas de
milhares de delegações da FIFA, aos que trabalham na transmissora
oficial da entidade, e a seus parceiros comerciais, incluindo todos os
fãs de futebol que têm ingressos para os jogos. Assim, milhões em
receita pública foram perdidos antes mesmo de os jogos começarem.
Também há um gasto elevado do Estado para garantir os direitos de propriedade intelectual da FIFA
em que a “FIFA deve ser liberada de pagar quaisquer taxas ao INPI
(Instituto Nacional da Propriedade Industrial) até 31 de dezembro de
2014”. Esta lei também inclui uma “bolha livre de impostos” num raio de
dois quilômetros ao redor dos locais oficiais da FIFA, o que na prática
acaba com a livre concorrência e impede que qualquer um tenha lucro – a
não ser que se consiga uma licença com a FIFA. As leis são tão extremas
que um bar ou restaurante local não pode nem usar as palavras “copa do
mundo”, “Brasil 2014”, “2014 Brasil” e muito menos “FIFA” para atrair
clientes. Essa medida exclui a maioria dos comerciantes informais e
negócios locais que desejam vender seus produtos durante a Copa do
Mundo. A FIFA engana o público quando diz que “não expulsa comerciantes de rua”
já que as novas condições (que na África do Sul resultaram em protestos
massivos) para camelôs continuam impedindo a presença da maior parte
deles nas ruas.
A FIFA ainda frisa que não ordenou que o “Brasil construísse 12 estádios caros”.
Embora talvez a gente nunca fique sabendo quantos estádios a FIFA
realmente pediu é fato que a entidade exige sim “estádios
modernos…lindos…de nível artístico”. O relatório de 228 páginas da FIFA
“Estádios de futebol: Recomendações Técnicas e Requisitos”, que é
considerado o guia dos estádios de futebol do século 21, com certeza
deixa a impressão de que os estádios não só podem como devem ser caros. O
lounge VIP da FIFA, por exemplo, exigido pela entidade, deve
ser grande o suficiente para acomodar 500 convidados por partida em cada
local e 2 mil pessoas nos locais de abertura e encerramento dos jogos.
Somado a outras exigências de hospitalidade isso só pode ser considerado
como um monstruoso desperdício, como despesas de luxo.
O livro “Copa do
Mundo na África do Sul: Legado para quem?” comprova que a FIFA exigiu a
construção de um novo estádio moderno em Cape Town simplesmente por
causa de seu preconceito de classe com Athlone, uma comunidade de
trabalhadores onde já existia um estádio viável.
Estádios “padrão FIFA” da Copa contam com áreas luxuosas para centenas de convidados VIP (Foto: Divulgação)
Finalmente a FIFA se desdobra para provar que a Copa do Mundo não deixa o país anfitrião com “problemas sociais, econômicos e ecológicos“,
que gastou US$ 182 milhões de dólares com o legado esportivo na África e
que o evento respeita as questões ambientais. Novamente,
meias-verdades: a FIFA teve o maior lucro da história da Copa do Mundo
na África do Sul – cerca de US$ 2,3 bilhões de dólares – e o país teve
arcar com custos que ultrapassaram em 1.708% o previsto. Além disso, a
Copa do Mundo de 2010 foi considerada o torneio mais poluente até agora.
Para todos os efeitos, a Copa do Mundo Brasil 2014 vai deixar um
“legado” ainda maior do que a da África do Sul, que entrou para a
história como o torneio mais caro e poluente da história da Fifa.