Sábado, 20 de fevereiro de 2016
*Escrito por Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação do Correio da Cidadania
www.correiocidadania.com.br
A pauta política do ano começa a esquentar e um dos principais
tópicos em discussão é a Reforma da Previdência, sempre bombardeada
pelos setores corporativos como deficitária – sob benção do próprio
governo. Para discutir mais esse tema repleto de informações dadas pela
metade, entrevistamos Denise Gentil, economista e pesquisadora, que
acabou de concluir sua tese de doutorado sobre o que considera o falso
déficit da Previdência.
“A reforma é uma completa insensatez. O gasto com a política social
foi um dos esteios do crescimento econômico no período 2004-2010. Com a
crise mundial e a queda dos preços das commodities a partir de 2011, o
gasto social se transformou numa necessidade básica para dar sustentação
à economia interna, já que os investimentos privados, o consumo das
famílias e as exportações sofreram em quedas consecutivas”, afirmou, em
tom introdutório.
A seguir, Denise mostra em números como a seguridade social
brasileira tem contas sustentáveis, mas, como em qualquer setor da
economia, está colocada a serviço da manutenção das margens de lucro do
empresariado, o que obviamente se oculta dos debates midiáticos.
“São todos argumentos de apoio à privatização, mais precisamente, à
financeirização de tudo que seja público. Ocorre que essa é uma equação
simplificadora da questão. Há outras fontes de receita que não são
computadas nesse cálculo, como a COFINS, a CSLL e a receita de loterias.
Quando todas as receitas são computadas no cálculo do resultado
financeiro da Seguridade Social, obtém-se superávit de R$68 bilhões no
ano de 2013, R$ 36 bilhões em 2014 e R$16 bilhões em 2015”, expôs.
Além de desconstruir a argumentação “liberal-privatizante”, como
denomina a proposta, Denise Gentil propõe outros pontos de vista em
questões como idade mínima de aposentadora e a própria noção de
solidariedade da seguridade social, além de defender fórmulas variadas
para a aposentadoria dos trabalhadores de diversas regiões e
características do país.
A entrevista completa com Denise Gentil pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como enxerga a volta da proposta de
Reforma da Previdência neste início de ano, em meio a uma grave crise
econômica?
Denise Gentil: É uma completa insensatez. O gasto
com a política social foi um dos esteios do crescimento econômico no
período 2004-2010. Com a crise mundial e a queda dos preços das
commodities a partir de 2011, o gasto social se transformou numa
necessidade básica para dar sustentação à economia interna, já que os
investimentos privados, o consumo das famílias e as exportações sofreram
em quedas consecutivas.
O governo Dilma, no entanto, mudou completamente o rumo da política
macroeconômica e tem enfrentado muito mal a crise externa. A economia
brasileira tem sido desativada de seus mecanismos de crescimento de
forma programada. Houve redução do crédito, queda brutal do investimento
público, elevação da taxa de juros, menor aporte de recurso para as
estatais (principalmente Petrobrás), redução inclusive do gasto social,
enfim, um pacote recessivo que reforça as consequências nefastas da
crise mundial.
Para culminar, o governo, na angústia de ser solícito e atender às
pressões do sistema financeiro, achando que, com isso, vai se equilibrar
minimamente no jogo de poder onde tem perdido sistematicamente, lança
como estratégia política a Reforma da Previdência. Considero um suicídio
político. O governo atira contra sua base eleitoral correndo o risco de
perder apoio onde ainda lhe resta algum.
Correio da Cidadania: O que pensa dos argumentos dominantes em favor dessa reforma previdenciária?
Denise Gentil: São todos argumentos de apoio à
privatização, mais precisamente, à financeirização de tudo que seja
público. O orçamento público se transformou num instrumento a serviço
dos interesses do sistema financeiro. Temos a mais elevada taxa de juros
do mundo e a dívida pública é o mecanismo mais brutal de apropriação
privada dos recursos públicos. Em lugar nenhum há uma transferência tão
violentamente explícita de renda aos bancos, fundos de investimento e
fundos de pensão como no Brasil.
É um escândalo que nosso país tenha gasto R$501 bilhões com juros no
ano de 2015, justamente num ano em que o orçamento público deveria estar
a serviço da recuperação da economia. São 8,5% do PIB destinados a uma
classe de rentistas que apenas acumula riqueza sem nada devolver à
sociedade. Não investe, consome pouco e remete renda ao exterior.
Mas os bancos não querem apenas os juros da dívida. Na área da saúde,
o sucateamento do SUS empurra as pessoas para os planos de saúde
privados ofertados também pelos bancos. Na área de educação, o
patrocínio do governo às empresas privadas é de enorme generosidade.
Agora, como se ainda não fosse o suficiente, a base da proposta de
Reforma da Previdência visa dificultar o acesso a direitos sociais e
comprimir o valor dos benefícios. O governo alardeia que a previdência
pública não tem sustentação financeira. Usa a mídia para divulgar
amplamente essa idéia como se fosse uma verdade inabalável. O resultado é
que está empurrando as pessoas para os planos de previdência privada
complementar o que os bancos oferecem. É mais do mesmo.
É um amplo processo orquestrado de privatização, que o governo Dilma
está levando adiante de forma muito mais radical. É preciso entender a
reforma da previdência não como uma necessidade conjuntural de ajuste
fiscal ou de enfrentamento de uma trajetória demográfica, mas antes como
um projeto do mundo das finanças. O ajuste fiscal é apenas um pretexto
para justificar os interesses ocultos por trás desse grande acordo entre
Estado e o poder financeiro.
Correio da Cidadania: O que você comenta a respeito da ideia
do “déficit da previdência”, tão propalada pelos veículos de
comunicação?
Denise Gentil: Tenho defendido a ideia de que o
cálculo do déficit previdenciário não é correto, porque não está de
acordo com os preceitos da Constituição Federal de 1988, que estabelece o
arcabouço jurídico do sistema de seguridade social. O cálculo do
resultado previdenciário que tem sido oficialmente divulgado pelo
governo leva em consideração apenas a receita de contribuição
previdenciária ao INSS dos empregados, empregadores e contribuintes
individuais, diminuindo dessa única fonte de receita o valor dos gastos
com benefícios previdenciários. O resultado dá em déficit.
Ocorre que essa é uma equação simplificadora da questão. Há outras
fontes de receita da Previdência que não são computadas nesse cálculo,
como a COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade social), a
CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido) e a receita de
concursos de prognósticos (loterias). O artigo 195 da Constituição
Federal assegura que essas receitas financiam a Previdência, a Saúde e a
Assistência Social, mas não são levadas em consideração. Quando todas
as receitas de contribuições sociais são computadas no cálculo do
resultado financeiro da Seguridade Social, obtém-se superávit de R$68
bilhões no ano de 2013, R$ 36 bilhões em 2014 e R$16 bilhões em 2015.
A pesquisa que realizei leva em conta todos os gastos com benefícios,
com pessoal e custeio dos ministérios (Saúde, Assistência Social e
Previdência). Essa informação favorável não é repassada para a
população, que fica com a noção de que o sistema previdenciário
brasileiro enfrenta uma crise de grandes proporções e necessita de
reforma urgentemente. O cálculo é propositalmente feito para difundir um
suposto déficit e gerar o descrédito do sistema público de Previdência
para se conseguir a aprovação de reformas que reduzem benefícios.
Essas ideias foram tão reiteradamente repetidas que o cidadão comum,
as pessoas do meio acadêmico, os homens de negócios e a burocracia do
governo passaram a incorporá-las como se fossem verdades definitivas. A
ANFIP faz estudos anuais, com elevado grau de detalhamento, divulgando o
resultado superavitário da Seguridade Social há mais de vinte anos.
Nunca vi uma matéria na televisão que propagasse os estudos da ANFIP
(Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal) que,
aliás, são de alto nível.
Há um outro ponto que gostaria de destacar. O governo Dilma
privilegiou desonerações tributárias em larga escala como um dos eixos
principais de estímulo ao crescimento e, em menor escala, à recuperação
da indústria, a despeito da conhecida limitação desse instrumento para
tal fim. A renúncia de receitas em 2014 alcançou a cifra de R$253
bilhões ou 5% do PIB, dos quais R$136 bilhões (2,6% do PIB) pertenciam à
Seguridade Social.
Em 2015, a desoneração total chegou a R$282 bilhões e representou um
valor maior do que a soma de tudo o que foi gasto, em 2014, em Saúde
(R$93 bilhões), Educação (R$93,9 bilhões), Assistência Social (R$71
bilhões), Transporte (R$13,8 bilhões) e Ciência e Tecnologia (R$6,1
bilhões) pelo governo federal. Em 2015, do total do valor das renúncias
de receitas tributárias, 55% pertenciam à Seguridade Social, isto é,
R$157,6 bilhões.
Não é aceitável que o governo conceda esse patamar estratosférico de
desonerações e agora proponha cortar gastos. Não é minimamente razoável
que o governo force o entendimento de que faltam recursos para manter o
sistema de proteção social quando abre mão de montantes gigantescos de
receita a favor da margem de lucro das empresas.
Correio da Cidadania: O que pensa da proposta de idade mínima
pra aposentadoria? Qual fórmula te parece mais justa nesse sentido?
Denise Gentil: Não sou favorável ao estabelecimento
de uma idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição. Quem
se aposenta nessas condições normalmente começou a trabalhar muito cedo
e, no caso dos que têm menor renda, sacrifica seus estudos e sua
escolaridade fica prejudicada. Por isso tais pessoas ganham salários
menores, têm saúde mais precária e vivem menos. Estabelecer uma idade
mais elevada para a aposentadoria seria punitivo para os que começaram a
trabalhar muito cedo.
Normalmente, as pessoas que se aposentam por tempo de contribuição
formam dois tipos de grupo. Alguns acabam voltando a trabalhar depois de
aposentados e, portanto, voltam a contribuir para o INSS; estes, não
são um peso para o orçamento da União, pelo contrário, gerarão mais
arrecadação do que será gasto com suas aposentadorias. Outros que se
aposentam mais cedo, por tempo de contribuição, o fazem
compulsoriamente, porque não conseguem manter seus empregos, na maioria
das vezes por defasagem entre os avanços tecnológicos e sua formação
ultrapassada, ou por problemas de saúde devido ao aparecimento de
doenças crônicas que certos ofícios normalmente ocasionam, ou ainda por
desemprego causado por períodos recessivos. Estes aposentados já são
punidos (com redução do valor da aposentadoria) pelo fator
previdenciário.
As perdas de renda são grandes principalmente para as mulheres.
Tratar a todos com se fossem iguais, como se o mercado de trabalho fosse
homogêneo e como se tudo ocorresse da mesma forma na região Norte e
Sudeste, é injusto. Mas o fundamental em tudo isso é que forçar a
aposentadoria para uma idade mais alta não implica necessariamente em
manter o trabalhador contribuindo para a previdência, porque poucos vão
conseguir ter um posto de trabalho com o avanço da idade. Pode, ao
contrário, significar que eles perderão a condição de segurados,
principalmente em recessões prolongadas.
Correio da Cidadania: Você acredita na necessidade de alguma reforma da Previdência? De que tipo?
Denise Gentil: A reforma realmente necessária teria
que permitir a aposentadoria de trabalhadores urbanos mais pobres e
informais com regras semelhantes às dos rurais. Aqueles que não
conseguiram um emprego formal no meio urbano durante sua vida ativa
deveriam se aposentar com um salário mínimo, comprovando o tempo de
trabalho. A reforma deveria ser inclusiva, criando mecanismos de
proteção mais amplos e não afastando as pessoas da previdência pública
com regras duras e renda baixa para os aposentados.
Deveríamos caminhar no rumo de um sistema previdenciário para todos,
inclusive para os que não contribuíram, mas trabalharam a vida toda.
Estes necessitam da aposentadoria na velhice e poderiam receber o piso
básico simplesmente porque são cidadãos brasileiros e não podem ser
desamparados. Se não contribuíram diretamente para a previdência,
pagaram impostos indiretamente, principalmente aqueles embutidos nos
preços.
Nós precisamos de uma reforma edificante, que traga mecanismos
compensatórios para a exclusão do mercado de trabalho, que discuta uma
agenda positiva com a sociedade, que proponha laços de solidariedades
entre as gerações e entre as classes e que fortaleça a cidadania.
Correio da Cidadania: Quais seriam as principais consequências na vida da população, caso se aprove a reforma agora discussão?
Denise Gentil: Ainda não se sabe exatamente a
amplitude que essa reforma terá. Quando o debate começa no fórum da
previdência e as propostas vão surgindo, as coisas vão ficando perigosas
porque as disputas se acirram e a atuação dos lobbies fica muito mais
forte. Haverá também a enorme pressão política dos meios de comunicação.
As forças conservadoras da burocracia do governo emergem, trazendo
propostas de reforma draconianas. O desfecho é pouco previsível. Para a
classe trabalhadora isso é um pesadelo, um tormento que se repete
incessantemente.
O resultado que se quer alcançar com reformas de corte
liberal-privatizante é a redução da renda das aposentadorias, do piso e
do teto, e ao mesmo tempo elevar o grau de dificuldade para as pessoas
conseguirem se aposentar para que elas passem o menor tempo possível
recebendo uma renda do governo. Quanto menor o período de aposentadoria,
isto é, quanto mais próximo do fim da vida, melhor. Essa é a
estratégia. Com benefícios menores, as pessoas que tiverem condições de
pagar serão empurradas para os planos de previdência complementar num
banco privado, porque a renda que receberão do sistema público não
garantirá a sobrevivência em condições semelhantes às da fase ativa.
A previdência pública tende a se responsabilizar apenas por um piso
básico de valor mínimo para atender precariamente os mais pobres. Assim,
a tendência é de transferir a responsabilidade da renda futura para os
indivíduos e famílias, retirando cada vez mais o amparo do Estado. O
sistema previdenciário vai ampliar as assimetrias e exclusões existentes
no mercado de trabalho e a pobreza entre os idosos voltará a crescer. O
governo Dilma não consegue sustentar os avanços sociais conquistados na
primeira década deste século. A impressão que se tem é que tudo não
para de desmoronar.
Correio da Cidadania: Em sua visão, quais seriam os resultados macroeconômicos da reforma previdenciária, tal como proposta?
Denise Gentil: O resultado político é desastroso,
mas já que a pergunta é sobre o efeito macroeconômico, talvez seja
melhor começar por aí. O resultado econômico de se fazer redução de
gasto público, aliás, de qualquer tipo de gasto, sempre será um menor
crescimento. E crescimento mais baixo significa queda da taxa de
emprego, dos lucros e salários e, por tudo isso, menor será a
arrecadação de tributos. Fazer ajuste fiscal agrava o resultado fiscal.
Reduzir gasto social é condenar a economia à recessão, particularmente
em momentos de crise externa.
O governo diz que a redução do gasto previdenciário vai abrir espaço
para o investimento público. Isso é uma grande bobagem. Redução de gasto
em governos muito conservadores, como é o caso do governo Dilma, sempre
significará elevação de superávit primário e não maior investimento.
Além disso, um governo que realmente deseje realizar investimentos de
grande porte não usa a arrecadação dos tributos para esse fim, porque
nunca seriam suficientes. Para se fazer investimentos expressivos o
governo tem de tomar empréstimos, lançar títulos públicos no mercado,
emitir moeda e, sobretudo, fazer grandes acordos para coordenar um bloco
de interesses, nacionais e internacionais, numa determinada direção.
Essa fórmula é mais velha que a roda no mundo das finanças públicas.
Só tem dinheiro para fazer investimentos de grande impacto quem tem um
projeto de inserção internacional. País nenhum na história do
capitalismo mundial cresceu economizando migalhas de seus recursos
internos, mas realizando grandes projetos estratégicos que implicam em
elevar a dívida pública. Portanto, não será “economizando” com gastos
sociais que o governo arranjará uma fonte de recursos para ampliar os
investimentos.
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"A falsa crise da Seguridade Social no Brasil: uma análise financeira do período 1990 - 2005" – tese de doutorado de Denise Gentil.
*Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader é economista e editora do Correio da Cidadania.
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