Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Dilma e Sakineh

Quinta, 4 de outubro de 2010 
Por Ivan de Carvalho
    Só temos que reconhecer e até proclamar o acerto e principalmente a ênfase da declaração feita ontem pela presidente eleita Dilma Rousseff, quando respondeu em entrevista coletiva sobre o a execução da iraniana Sakineh Mohammadi Ashtiani, condenada à morte por lapidação (apedrejamento), sob acusação de adultério, que teria ocorrido quando ela já era viúva.
    A reação internacional à aplicação da pena de apedrejamento levou a teocracia iraniana, por intermédio de seu suposto “Poder Judiciário” – a serviço e submisso à tradição xiita, ramo islâmico que domina o país – a montar um caso jurídico mais complexo. Ao invés de morrer por apedrejamento por causa do adultério, Sakineh Ashtiani poderia ser executada por homicídio, caso em que a pena é de morte por enforcamento.
    Mas como assim? É simples. Como a coisa das pedras estava “pegando mal” para o regime iraniano em todo o mundo livre (perdão por usar esta antiga expressão do tempo da guerra fria) – ou no mundo democrático ou, se preferir o leitor, no mundo que se declara “civilizado”, o poder político iraniano tentou o pulo do gato.
    Sakineh Ashtiani poderá ser executada por enforcamento para pagar o assassinato do ex-marido, que teria sido morto numa ação conjunta dela e de um homem que viria a ser seu amante. Assim se evitaria o “barbarismo” do apedrejamento, que muitos Estados, principalmente do Ocidente, não conseguem aceitar, enquanto aceitam – quando não praticam – quase sem pestanejar o enforcamento, a cadeira elétrica, o fuzilamento, a injeção letal e a bala solitária na nuca – esta, uma especialidade chinesa.
    Como está no noticiário da mídia eletrônica desde ontem e nos jornais impressos de hoje, a presidente eleita Dilma Rousseff, embora declarando-se desprovida ainda de qualquer “status oficial” para se pronunciar sobre o assunto, afirmou que é “radicalmente contra o apedrejamento da iraniana”, e, dirigindo-se diretamente aos jornalistas, repisou: “Externo aqui perante vocês que eu acho uma coisa bárbara o apedrejamento da Sakineh. Mesmo considerando os usos e costumes de outros países, continua sendo bárbaro o apedrejamento da Sakineh”.
    O presidente Lula já havia, há uns meses, interferido neste assunto, ao oferecer o Brasil para receber Sakineh, “se ela está causando algum incômodo” no Irã. Mas ocorreu que o governo iraniano não só recusou a oferta como a criticou, muito aborrecido. O presidente Lula, na prática, tirou seu cavalinho da chuva. Isso faz da declaração de Dilma, realmente, uma surpresa. Uma grata surpresa.
   E vale assinalar que, no caso de Dilma, sua posição política e humanitária no geral mescla-se (e é aí reforçada, da mesma forma que tornada mais exigível) a sua condição de mulher em defesa de outra mulher prestes a ser apedrejada por um regime que se apoderou de um importante país.
    Talvez haja faltado na declaração da presidente eleita a observação de que a eventual mutação da forma de execução para enforcamento, sob a tardia acusação de outro crime, não elimina o barbarismo. Mas Dilma Rousseff terá, creio, oportunidade de fazer este acréscimo com a mesma ênfase de sua declaração de ontem.
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Este artigo foi publicado originalmente na Tribuna da Bahia desta quinta.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.