Terça, 3 de junho de 2014
Por Sérgio
Bruno Cabral Fernandes
Promotor
de Justiça do MPDFT
“Caminhei no corredor procurando a poltrona 15C. As minhas
vizinhas na 15A e na 15B eram uma bela mulher com a sua filha, deitada. Sentei
e perguntei o nome da menininha cujo travesseiro a minha perna escorava.
‘Anny’, respondeu a mãe. ‘Essa é a minha paixão”, disse, com ternura fazendo
cócegas na barriga da filha. ‘Olha que narizinho mais lindo!’ ‘Realmente, ela é
uma graça’, comentei, encarando Anny.
E a conversa fluiu até São Paulo. ‘Anny nasceu com uma
doença rara’, passou a me explicar a mãe, de forma natural. A síndrome CDKL5
causa convulsões diárias e afeta o sistema neurológico. Anny vinha evoluindo
lentamente e chegou a andar. Mas, quando completou 3 anos, regrediu
enormemente, perdendo o que havia conquistado. O mais dramático, porém, eram as
convulsões diárias que chegavam sem avisar. Anny chegou a ter mais de 80 crises
convulsivas numa semana. Os prognósticos médicos eram pessimistas. Nenhuma
droga no Brasil atenuaria tais efeitos. Nos Estados Unidos, contudo, havia o
CBD, remédio derivado da maconha.
Os pais de Anny, apostando todas as esperanças na droga
ilegal, decidiram ‘traficar’ o remédio. Com o CBD, as crises convulsivas
cessaram e Anny teve expressiva melhora na parte neurológica. O rosto perdido
de Anny retomou a expressão de antes, sendo possível interpretar sentimentos de
alegria, como um leve sorriso, ou de descontentamento, como um franzir de
testa. Anny voltou a se alimentar e a olhar os pais quando chamavam o seu nome.
Esses avanços contrariavam todos os prognósticos médicos recebidos até então. O
aumento da qualidade de vida de Anny após o remédio era incontestável. A
batalha e os riscos que eles corriam valiam muito a pena. Qual é a relação da
aprovação do CBD no Brasil com o tema descriminalização da maconha? Nenhuma. A
‘viagem’ de Anny é outra.
Anny e sua família lutam por saúde, buscam qualidade de
vida. Apenas isso. É preciso, portanto, separar os temas. O tratamento dado à
Cannabis sativa, enquanto componente medicinal, deve ser diverso do dado ao uso
recreativo da maconha. São enfoques diversos. No caso do CBD, discute-se o
tratamento de pessoas doentes: tem eficácia? É seguro? O consumo social da maconha,
por sua vez, é muito mais complexo e envolve outros aspectos, além de questões
sanitárias.
Uma lei da Holanda que autoriza o consumo indistinto da
maconha, certamente, não servirá para o Brasil. São realidades diferentes. Mas,
ora, por que um remédio bem-sucedido em diversos países de primeiro mundo, como
os EUA e o Canadá, não serviria para os pacientes brasileiros? A doença de Anny
é idêntica à de um americano portador de CDKL5. Negar o acesso dos brasileiros
a remédios como o CBD, tão somente pela presença do canabidiol em sua fórmula
segue a mesma lógica absurda de proibir o uso da morfina em razão da sua
relação com a heroína.
O preconceito é inimigo mortal da medicina. A inércia e a
burocracia kafkiana também podem ser letais aos pacientes com doenças graves. O
debate sobre o uso desses remédios é urgente e deve ser feito de forma
equilibrada. Sem euforia ideológica, tampouco a letargia conservadora que
costumam polarizar o debate.
A família Fischer estava indo a São Paulo para participar
de um seminário sobre o uso medicinal da cannabis sativa. O avião já vai
descer. Olho para o lado e as minhas vizinhas dormem. Senti vontade de dizer
que admiro a determinação daquela família, mas não queria acordar Anny. O dia
seguinte seria longo. Aproveito a oportunidade e faço-o agora: Katiele,
Fischer, Anny e Julia, o primeiro passo para quebrar um tabu e jogar luz sobre
ele é colocar o tema em debate, enfrentar as críticas e mostrar as
incoerências. E isso vocês têm feito com muita coragem.
Fonte: Site do MPDFT
Publicado originalmente no Correio Braziliense de 28/5/2014
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