Quarta, 18 de junho de 2014
Da Pública
Agência de Reportagem
e Jornalismo Investigativo
Inquérito policial
que deu origem ao processo contra 7 jovens baseia-se em apenas dois depoimentos
– de um policial e de um jornalista que esteve incógnito em reunião sindical;
acusados veem perseguição política
Cinco moradores de Porto Alegre, um de Pelotas e um de
Alvorada receberam em suas casas, na última semana, oficiais de Justiça com uma
mesma intimação: dez dias para apresentar um advogado para que tenha início um
processo contra eles. As acusações: constituição de milícia privada; dano
qualificado; emprego de artefato explosivo ou incendiário; lesão corporal; e
furto qualificado. Os nomes: Rodrigo Barcelos Brizola, Gilian Vinícius Cidade,
Matheus Pereira Gomes, Lucas Boni Maróstica, Alfeu da Silveira Neto, José
Vicente Mertz e Guilherme da Silveira Souza. Seis deles são integrantes com
participação ativa no Bloco de Luta pelo Transporte Público, movimento que
esteve à frente dos recentes protestos em Porto Alegre, que ganharam
notoriedade a partir de junho de 2013. Brizola e Alfeu são militantes da Frente
Autônoma e moradores da ocupação Utopia e Luta; Gilian e Matheus são do PSTU;
Lucas é do Juntos, coletivo de juventude ligado ao PSOL; e Vicente é militante
da anarquista Resistência Popular.
O inquérito para enquadrá-los foi aceito parcialmente pelo
juiz Sandro Luz Portal, virou processo e pode até mesmo resultar em pedidos de
prisão preventiva durante a Copa do Mundo.
O inquérito número 00121300450132, que reúne mais de
seiscentas páginas, teve início na madrugada de 27 para 28 de junho do ano
passado, após a prisão em flagrante de Guilherme – o único dos jovens que não
pertence a nenhuma organização – ao final de um protesto na Praça da Matriz, em
Porto Alegre. Naquele dia, Matheus, Lucas e outros ativistas se reuniram com o
governador Tarso Genro (PT), em nome do Bloco de Luta. O ato que se seguiu ao
encontro estava planejado para ser tranquilo, com carro de som e shows – algo
diferente das caminhadas saídas da frente da Prefeitura que caracterizavam as
manifestações anteriores. Mas, com gritos de “protesto não é festa”, grupos
reunidos na praça pediam outro tipo de ato, o que acabou acontecendo. Pedras e
garrafas voaram contra o policiamento diante do Palácio da Justiça. Bombas de
gás fizeram o caminho contrário. O confronto se espalhou pelo Centro e pela
Cidade Baixa, onde já havia policiamento ostensivo horas antes do protesto.
Foi nessa sequência de ações que se deu a prisão em
flagrante de Guilherme da Silveira Souza, que estaria saqueando uma loja. A
investigação se desenrola a partir da prisão dele e dos depoimentos de duas
testemunhas-chave: o policial Elso da Silva Teixeira e o jornalista,
funcionário da Rádio Gaúcha (Grupo RBS), Voltaire Santos.
A prisão de Guilherme
Todos os outros seis indiciados negam conhecer Guilherme da
Silveira Souza, preso dois dias antes de completar 22 anos. Segundo o inquérito,
Guilherme é negro, morador de Alvorada, e usou seu direito de não fazer
declarações e de não avisar ninguém no momento da prisão. Ele não foi
localizado pela reportagem. Foi acusado de liderar um grupo que teria cometido
crimes e de executar pessoalmente danos a veículos e estabelecimentos
comerciais, furtos nesses dois casos e, ainda, danos contra o Palácio da
Justiça. O responsável pela prisão de Guilherme foi o policial civil Mário
André Herbst Garcia. Foi ele quem disse ter identificado José Vicente Mertz
como alguém que “se reportava e acompanhava” Guilherme. Além da participação de
Guilherme no protesto na Praça da Matriz, o depoimento de Garcia é a ligação
entre o preso e um militante ferrenho do Bloco de Luta. Em entrevista, Vicente
negou conhecer Guilherme e criticou o inquérito: “A figura desse Guilherme faz
parte dessa trama que eles armaram. Precisavam de algum fato concreto para
justificar essa perseguição, então prendem esse sujeito num suposto flagrante
roubando secadores de cabelo e tentam ligar isso à nossa figura. Nem eu, nem
nenhum outro indiciado do Bloco, temos conhecimento de quem seja o Guilherme, e
este caso se caracteriza como uma montagem policial clássica”, garantiu a este
repórter.
Manifestação em Porto Alegre, Junho de 2013
O depoimento do policial Elso
Todos os outros indiciados nesse inquérito, com exceção de
Alfeu da Silveira Neto, foram apontados pelo policial militar Elso da Silva
Teixeira, que havia sido ferido em um dos olhos por uma pedra arremessada no
ato da Praça da Matriz. Elso prestou depoimento duas semanas depois, e disse
que “antes de ir para o trabalho daquele dia, todo o efetivo empregado na
operação teve uma palestra no 9º BPM, sobre como o grupo estava se portando nas
manifestações. Que este grupo de criminosos já estava organizado, cada um com
tarefas específicas, para praticar as depredações. Que existe um grupo de
segurança, um grupo que cuida do trânsito e um terceiro grupo que trata dos
vandalismos. Que quem confronta com a polícia são os ‘bondes’ e os ‘punks’. Que
foram informados, na palestra no 9º BPM, os nomes dos líderes dos possíveis
vândalos. Entre os nomes estavam ‘Brizola’ e um entre os anarquistas chamado
‘Mateus’”. Havia, naquele momento, uma clara confusão na classificação de
Matheus como anarquista. Da mesma forma, outras confusões e equívocos aparecem
no decorrer do inquérito.
Também é Elso quem cita pela primeira vez os nomes de Gilian
e Lucas. Ao pedido que “descrevesse um dos agitadores que participavam das
manifestações populares do dia 27/07/2013 (na verdade, 27 de junho)”, o
policial Teixeira, confrontado com fotografias, reconhece e descreve as ações
de “Gilian Vinicius Dias Cidade como um dos indivíduos de contumaz atividade de
agitação de massas mas não tem certeza de 100% sobre sua participação nesta
manifestação”; “Lucas Boni Maróstica como um dos indivíduos de contumaz
atividade de agitação de massas e uma das pessoas que efetivamente fazia frente
na manifestação, inclusive jogava pedras contra a guarnição da brigada
militar”; “José Vicente Mertz como um dos indivíduos de contumaz
atividade de agitação de massas e uma das pessoas que efetivamente fazia frente
na manifestação, inclusive jogava pedras contra a guarnição da brigada
Militar”; “Matheus Gomes como um dos indivíduos de contumaz atividade de
agitação de massas e uma das pessoas que efetivamente fazia frente na
manifestação, mas não viu este jogar pedras contra a guarnição da brigada
Militar”; e “Rodrigo Barcelos Brizola como um dos indivíduos de contumaz
atividade de agitação de massas e uma das pessoas que efetivamente fazia frente
na manifestação, e agitava uma bandeira e não viu este jogar pedras contra a
guarnição da brigada Militar”.
As conclusões que o responsável pelo inquérito tira do que
foi dito pelo militar, porém, diferem, no entanto, desse depoimento. Na página
104, por exe,mplo, o inquérito afirma que “foi oportunizado o reconhecimento
fotográfico para ELSO DA SILVA TEIXEIRA, a fim de identificar os autores dos
arremessos de pedras contra a linha de contenção da polícia militar que
culminou em sua lesão corporal, ocasião em que reconheceu como participantes do
grupo as pessoas chamadas GILIAN VINICIUS DIAS CIDADE, LUCAS BONI MARÓSTICA,
JOSÉ VICENTE MERTZ, MATHEUS GOMES e RODRIGO BARCELOS BRIZOLA”. Mas Elso não
identificou todos estes – apenas Lucas e Vicente – como “autores dos arremessos
de pedras”, o que depois seria negado por ambos por entrevistas: “Sequer passei
em frente ao Palácio da Justiça no momento da confusão, o que a polícia deve
saber, pois o local é rodeado de câmeras”, enfatizou Lucas. Vicente também foi
taxativo: “Eu, assim como outros membros mais ativos do Bloco, estava
concentrado na parte de cima da Praça da Matriz, junto ao caminhão de som, em
frente ao Palácio Piratini. Desconheço qualquer pedra jogada no Palácio da
Justiça, inclusive fiquei sabendo disso no inquérito”.
O primeiro volume do inquérito, encerrado ainda em 2013,
termina com um pedido de prisão preventiva de todos os indiciados pelas
acusações já descritas. São também anexadas fotografias de Rodrigo Brizola e de
Vicente Mertz em situações de confronto com a polícia em protestos anteriores.
Brizola tem uma taquara nas mãos, e a utiliza contra uma montaria da polícia.
Vicente entrega o mastro a outra pessoa. O inquérito ainda expõe sua
preocupação política: “Em outras palavras, o poder público não pode aceitar a
situação de determinado grupo que busca impor suas ideias mediante força sob
pena de afrontar a própria democracia”.
Casas revistadas
O volume II do Inquérito Policial, assinado pelo delegado
Marco Antônio Duarte de Souza, foi aberto no dia 16 de dezembro, e começa com o
relatório das buscas do dia 1º de outubro, quando a polícia esteve no centro
cultural anarquista Moinho Negro, nas casas de Lucas Maróstica, Matheus Gomes e
no prédio ocupado Utopia e Luta, onde moram Rodrigo Brizola e Alfeu Silveira.
Em junho a sede da Federação Anarquista Gaúcha (FAG) já havia sido revistada,
com apreensão de materiais de propaganda da organização.
De acordo com o relatório, as buscas foram feitas “em
localidades apontadas como prováveis locais de presença de criminosos,
componentes de quadrilhas que promoveram depredações e saques nos meses de
junho, julho, agosto e setembro”. A principal conclusão é a relação entre
símbolos encontrados nas casas e vistos anteriormente nos atos. Um exemplo é o
“A” símbolo do anarquismo. Na página 255, uma legenda: “Agora, mais visível,
verifica-se o símbolo da quadrilha (“A”) e outro componente do bando, chamado
Bloco de Lutas, que são os chamados Quilombolas”. E na página seguinte: “Já a
imagem que segue foi capturada no apartamento de RODRIGO BARCELOS BRIZOLA e
ALFEU COSTA SILVEIRA NETO e mostra exatamente os mesmos caracteres do bando”.
Os movimentos são sempre tratados como “bando” ou “quadrilha”. A partir de
outro depoimento, do guarda municipal Sandro Souza de Oliveira, Rodrigo Brizola
é acusado de ações violentas (arremessar objetos contra a polícia e dar
taquaradas em um cavalo) e de ser “elo entre os mascarados e os demais
manifestantes”.
A partir desse ponto, o inquérito passa a focar um segundo
depoimento chave: o do repórter da Rádio Gaúcha, do Grupo RBS, Voltaire Santos.
O depoimento foi prestado no dia 17 de janeiro de 2014, e teve como tema uma
reunião do Bloco de Luta à qual Voltaire havia comparecido em junho do ano
anterior na sede do Sindicato dos Trabalhadores em Empresa de Processamento de
Dados (SINDPPD/RS).
Voltaire conta que não se identificou como jornalista na
entrada do prédio nem no início do encontro, quando Gilian Dias Cidade, que
presidia a mesa, reiterou a exigência do movimento de que jornalistas se
identificassem o que seria relatado pelo próprio Voltaire ao citar o
pedido de Gilian: “pessoas ligadas a RBS, outros meios de comunicação, ou
jornalistas eram para acusar a presença e se retirarem imediatamente, senão
haveria represálias”, disse o repórter, que permaneceu incógnito.
Voltaire descreve como tenso o clima na reunião e destaca
“conversas paralelas” que, de acordo com ele, contrariavam o “romantismo” do
“discurso oficial”, mas não diz em detalhes o que teria ouvido. Afirma que “nos
bastidores foram articuladas ações de vandalismo com depredações e saques a
serem realizados durante as manifestações”, sem apresentar quaisquer evidências
concretas.
Gilian, o principal acusado no depoimento de Voltaire,
desmente categoricamente o que disse o repórter: “São acusações absurdas, e com
relação a mim não acho que devam haver provas, já que nunca fiz nada do que me
acusam. Não há apenas carência de informação correta no depoimento, mas certo
nível de imaginação que acaba levando a conclusões equivocadas. Se as únicas
provas que ele tem do que disse são as suas lembranças, diria que elas são bem
seletivas, e que não querem que as mobilizações continuem”.
Manifestação em Porto Alegre em junho de 2013
O relatório final
A linha de investigação é baseada fundamentalmente na
existência de “vínculos” entre os investigados. O inquérito destaca que os
investigados admitem conhecerem-se entre si, com exceção de Guilherme. O
relatório, então, conclui: “O estabelecimento dos vínculos entre os
investigados, de pronto, acaba por emprestar absoluta veracidade aos
reconhecimentos efetuados”. Segundo o relatório, “as testemunhas reconheceram
os investigados como autores dos crimes do dia 27 de julho de 2013, após
análise de um evento que envolveu cerca de 4000 (quatro mil) pessoas”.
A parte final do inquérito narra o transcorrer das
investigações, esclarecendo que “passou-se a investigar a participação de cada
um nos eventos narrados, bem como a possibilidade de vínculos anteriores que pudessem
esclarecer o ocorrido” após o reconhecimento fotográfico feito pelo policial
Elso da Silva Teixeira. Já o depoimento do jornalista Voltaire Santos,
constitui-se em ponto-chave da acusação de que os indiciados arquitetaram
crimes: “Finalizo enfatizando que, tão importante como a verificação dos atos
diretos de depredação, confrontos e saques por parte dos integrantes do BLOCO
DE LUTAS, foi a constatação cabal da idealização dos atos por parte dos
investigados. Conforme foi percebido, o grupo se reuniu anteriormente aos
ataques para discutir as ‘táticas’ que seriam utilizadas”. E mais: “Consoante
consta nos autos, RODRIGO BARCELOS BRIZOLA, GILIAN VINICIUS CIDADE, MATHEUS
PEREIRA GOMES, LUCAS BONI MARÓSTICA e ALFEU DA SILVEIRA NETO, em uma reunião, em
conjunto com outros componentes do GRUPO denominado BLOCO DE LUTAS,
articularam, combinaram, arquitetaram, planejaram e organizaram ataques a serem
efetuados contra alvos específicos”.
Processo político?
Lucas classifica o inquérito como “uma peça política de
perseguição aos movimentos sociais” e “nas palavras de importantes juristas que
tem acompanhado nosso caso, uma aberração, do ponto de vista jurídico. Sem
provas e fatos que nos liguem a qualquer prática de delito. Acusação de
formação de quadrilha por organizar manifestações nos faz lembrar do período da
ditadura, em que a livre manifestação era proibida. Se a tentativa é nos
intimidar, não vão conseguir”, afirma.
Brizola pensa de forma semelhante: “A resposta dos
governantes de plantão (aos protestos) foi um grande aparato policial
para reprimir os protestos: abusos policiais, intimidações, monitoramento,
repressão, foram os mecanismos encontrados pelo estado para atender as demandas
populares. A criminalização das manifestações é um processo sistemático de
silenciar as vozes insatisfeitas”, diz.
Vicente também considera frágil a peça da acusação: “o
conteúdo político do inquérito está claro. As provas que a acusação afirma ter
contra mim e os outros indiciados são fotos portando megafones ou bandeiras.
Durante as intimações, todas as perguntas que faziam tinham este conteúdo
ideológico, como “Você crê na violência como uma forma legitima de mudar a
sociedade” e outras perguntas do tipo. Ou seja, está claro que não estão
acusando fatos concretos, e sim ideias”. Uma visão semelhante a de Gilian:
“Somado à proximidade da Copa e ao conjunto de ativistas no país que vêm sendo
criminalizados, fica evidente o objetivo político de coagir as manifestações”.
Para Matheus, a forma como vem sendo conduzida o inquérito
desperta preocupações: “O ataque às liberdades democráticas é muito grave, e se
essas legislações se consolidam…é um debate que vamos fazer, se vai só até o
final de 2014, no período da Copa, ou qual vai ser o legado que vamos ter, se
essas legislações vão continuar vigorando ou não. Seria um retrocesso
gigantesco na nossa democracia, mas só o que está acontecendo agora já
significa um atraso muito grande, porque está no marco de um cerceamento que
não vemos desde a década de 1980”.
O juiz responsável acolheu parcialmente o inquérito, que se
transformou em processo, embora tenham sido retiradas dali algumas acusações de
depredações e saques, já que as testemunhas e proprietários não apareceram para
prestar depoimento. Na primeira semana de junho os indiciados foram informados
do transcorrer do processo e intimados a nomear advogados para que a ação siga
adiante.