Fausto Salvadori Filho — 18/07/14
O fotógrafo Alex Silveira, mutilado no olho por uma bala de borracha da PM há 14 anos, encontra o colega Sérgio Silva, vítima da mesma violência em 2013. Os dois lutam diante de uma Justiça que parece mais cega do que eles
O tempo deu pau na tarde de 18 de julho de 2000, quando Alex Silveira
foi baleado. Dias, meses e anos couberam dentro dos segundos que passou
caído na avenida Paulista, até ser socorrido pelos colegas e levado ao
Hospital das Clínicas. Com a vista apagada, só conseguia enxergar o
filme da sua vida passando sem cortes dentro da sua cabeça. Viu os seis
anos que passou em Nova York, trabalhando como engraxate e carregador de
mudanças para bancar um curso técnico de cinema na School of Visual
Arts. Viu o sonho realizado de trabalhar como fotojornalista. Depois, só
viu o escuro. “Eu pensava: passei por tudo isso para no final acabar
assim, com um tiro de borracha no meu olho”, conta.
Na época, Alex, então com 29 anos, trabalhava como fotógrafo do Agora
SP, jornal do grupo Folha de S. Paulo, naquele que viria a ser o seu
primeiro e último emprego de fotógrafo com carteira assinada. Quando foi
baleado, estava fotografando o confronto entre a Tropa de Choque da Polícia Militar
e uma passeata de professores da rede estadual que reivindicavam
melhores salários. Ainda sangrando no asfalto da Paulista, Alex percebeu
que o pior havia acontecido. Nascido com uma deficiência no olho
esquerdo, sempre dependera do direito (até então perfeito) para
enxergar. E era ali que o projétil disparado pela Polícia Militar do
Estado de São Paulo havia acertado. Em seu olho bom.
Hoje, Alex enxerga com 20% da visão que tinha antes de ser baleado
“Comigo foi a mesma sensação”, lembra Sérgio Silva, 32 anos, também
fotógrafo, e também atingido no olho esquerdo por uma bala de borracha
da PM. “Eu via a minha vida toda passar pela minha cabeça, e pensava
como eu ia conseguir trabalhar, como ia sustentar minha filha, agora que
a polícia tinha baleado meu olho”, comenta com Alex. Sérgio foi baleado
na Rua da Consolação, na região central de São Paulo, em 13 de junho de
2013, quando cobria uma manifestação do Movimento Passe Livre como
freelancer, para a agência Futura Press.
“Eu olho para você e vejo a minha história”, Sérgio fala para Alex,
durante um encontro dos dois, promovido na semana passada pela Ponte.
Hoje, Alex enxerga com 20% da visão que tinha antes de ser baleado, e
Sérgio perdeu o olho esquerdo – no lugar dele, usa uma prótese. Eles se
abraçam, riem, choram. Mesmo sendo a primeira vez em que se encontram,
Alex e Sérgio se tratam como dois velhos amigos, que compartilham a
intimidade de terem sofrido uma violência muito parecida.
Culpa da vítima
Além de terem sido mutilados pelo Estado nos olhos com que ganhavam a
vida, Alex e Sérgio compartilham a dor de lutar por reparação diante de
uma polícia e de uma Justiça que parecem mais cegas do que eles.
“Eu depus no batalhão do Choque, na Corregedoria, no 78º DP
(Jardins), e nunca mais ouvi falar da investigação. Não deu em nada”,
afirma Alex. Procurada, as assessorias de imprensa da Secretaria da Segurança Pública
e da Polícia Militar recusaram-se a informar se algum PM foi punido
pelos ferimentos em Alex. “Informações adicionais devem ser pesquisadas
junto à Justiça, para onde o inquérito foi encaminhado”, afirmou a
assessoria da SSP. No Tribunal de Justiça de São Paulo, o único processo
ligado ao nome de Alex é a ação cível que ele move contra o Estado.
Na ação, a defesa de Alex pede uma pensão vitalícia mensal de R$
1.783 (o valor do salário que recebia no jornal quando foi baleado), o
pagamento de todas as despesas médicas e uma indenização por danos
morais no valor de 2.000 salários mínimos, além de uma indenização por
danos materiais.
“O Estado evita produzir provas contra si mesmo”
Em sua defesa, a Fazenda de São Paulo alega que a “perda visual” do
fotógrafo já existia antes do tiro e culpa o próprio Alex pelo
ferimento, dizendo que, ao cobrir a manifestação, “concorreu com o ato
danoso, assumindo o risco de ferir-se”. O governo também afirma que Alex
“não provou ter se ferido por ato praticado por policial militar” e
sugere que a lesão no olho poderia ter sido provocada por objetos
disparados pela multidão.
“As provas precisam ser construídas, porque o Estado evita produzir
provas contra si mesmo”, afirma a advogada Virginia Veridiana Barbosa
Garcia, que representa Alex na ação. Na falta de provas levantadas pela
investigação da polícia, a defesa teve de levantar as provas ela
própria, com base em testemunhas, laudos e fotos.
As provas levantadas pela advogada convenceram o juiz Emerson Norio
Chinen, da 5ª Vara da Fazenda Pública de SP, que emitiu a primeira
sentença do caso, em 2008. Porém, mesmo reconhecendo que Alex foi vítima
da PM, o juiz aceitou o argumento de que o fotógrafo “contribuiu para o
infortúnio ao se colocar em situação de risco na cobertura da
manifestação popular e do confronto policial”. No fim das contas, o juiz
recusou a concessão de pensão vitalícia e o pagamento por danos
materiais, condenando o Estado a pagar somente as despesas médicas e uma
indenização no valor de 100 salários mínimos – mais do que isso, para o
juiz, seria “enriquecimento ilícito”.
Tanto a defesa de Alex quanto o governo recorreram da decisão. O processo se arrasta até hoje, agora em segunda instância.
“Isso mostra como somos indefesos”, desabafo o fotógrafo. “Podem
fazer o que quiserem com a gente e nada acontece. Ninguém responde por
nada.” As únicas consequências ficaram para Alex, que terá de olhar para
elas até o fim da vida.
Justiça cega
Até agora, Sérgio não teve melhor sorte do que Alex na sua ação, em
que pede indenização de R$ 800 mil por danos morais e R$ 400 mil pelos
danos materiais, além do pagamento das despesas médicas, hoje no valor
de R$ 3.894,67. Os gastos com o hospital são uma questão urgente para
Sérgio, já que, como fotógrafo freelancer, é obrigado a pagar essa
dívida do próprio bolso. A defesa do fotógrafo entrou com um pedido de
antecipação de tutela, na tentativa de obter do Estado o pagamento
imediato das dívidas contraídas por Sérgio antes do julgamento do
mérito.
O pedido de Sérgio acabou negado em duas instâncias. Para o
desembargador Rebouças de Carvalho, ainda falta apurar o “nexo de
causalidade entre o evento danoso e a alegada responsabilidade do
Estado”.
“Me senti agredido de novo com essa decisão. Foi a segunda violência do Estado praticada contra mim”, diz Sérgio.
Sobre o caso de Sérgio, a Secretaria da Segurança Pública afirmou que
a investigação estaria parada por falta de interesse da própria vítima.
“A Polícia Civil informa que o fotógrafo Sérgio Andrade da Silva não
registrou queixa e que a autoridade policial do 4ºDP (Consolação)
instaurou inquérito por lesão corporal culposa, mesmo sem representação,
com base em informações veiculadas pela imprensa. O inquérito do caso
está no Fórum Criminal, no aguardo de manifestação da vítima”, afirmou a
assessoria de imprensa.
“Como procurar a mesma polícia que o agrediu e não lhe deu socorro?”
Sérgio disse que não registrou queixa por não acreditar que a polícia
tenha interesse em investigar seu caso a sério. “É um procedimento
burocrático para a instituição fingir que está ouvindo você e não fazer
nada”, afirma. Seu advogado, Maurício Vasques, apoiou a decisão. “O
delegado não precisa da queixa da vítima para abrir inquérito, por ser
um crime de ação pública. E como querem que o Sérgio vá procurar a
polícia, se foi quem o agrediu e não lhe deu socorro?”, afirma.
A falta de confiança de Sérgio na apuração da polícia tem apoio nos
fatos. Como ocorreu no ataque a Alex Silveira, em 2000, os abusos de 13
de junho também permanecem sem punição. Segundo um levantamento feito pela BBC Brasil, com base na Lei de Acesso à Informação, nenhum policial foi punido pelas violências cometidas naquele dia.
Menos letais
Se algo mudou em relação à época em que Alex foi baleado na Paulista,
foi a disseminação do uso das armas que as autoridades chamam de “não
letais”, mas que estudiosos e militantes preferem chamar de “menos
letais”, já que são capazes, sim, de provocar mortes. Além das balas de
borracha, a categoria inclui arfefatos como bombas de gás lacrimogêneo e
de efeito moral, sprays de pimenta, jatos de água, armas de choque.
Segundo Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais em
São Paulo, o uso do armamento menos letais se disseminou a partir de
2010, quando o Ministério da Justiça e a Secretaria de Direitos Humanos
publicaram a portaria 4226, que autoriza “todo agente de segurança pública” a portar “no mínimo dois instrumentos de menor potencial ofensivo”.
“Depois disso, o emprego dessas armas se banalizou”, afirma Marcelo
Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais em São Paulo. Armas
como spray de pimenta e de choque caíram nas graças não só das polícias,
como também das empresas particulares de segurança. Segundo Zelic, em
vez de serem usadas como uma alternativa para reprimir comportamentos
violentos sem o uso de armas que podem matar, as menos letais passaram a
ser usadas como instrumentos de tortura. “Distribuídos em massa, esses
armamentos são usados como um kit tortura, tanto por policiais como
seguranças particulares”, diz.
A partir das manifestações de junho de 2013, o uso das balas de
borracha e outros armas menos letais ganhou força. Na noite de 13 de
junho, a mesma em que Sérgio teve o olho arrancado na Rua da Consolação,
a PM utilizou 506 balas de borracha, conforme informação obtida por
Pablo Ortellado, professor de política públicas da USP, também por meio
da Lei de Acesso à Informação.
A repressão da PM em 13 de junho também feriu dezenas de militantes,
jornalistas e pessoas que apenas passavam pela rua. A repórter Giuliana
Vallone, da TV Folha, também foi atingida no olho por uma bala de
borracha, e só escapou de sofrer danos permanentes porque estava de
óculos.
Para a ONG Conectas, os abusos daquela noite não foram excessos de
alguns policiais, mas uma emboscada, fruto de uma ação planejada. A
partir do depoimento de dez testemunhas, entre elas Sérgio Silva, a ONG concluiu que,
“em vez de direcionar a marcha num suposto sentido de dispersão, os
policiais encurralaram milhares de pessoas num circuito de tiro com
balas de borracha, saturado com bombas de gás e granadas de luz e som,
ao longo de várias ruas da região central”.
Quatro dias após a repressão na Consolação, o governador Geraldo
Alckmin (PSDB) anunciou que a polícia deixaria de usar balas de borracha
contra manifestações. O governo voltou atrás em 8 de outubro, quando o
secretário da Segurança Pública, Fernando Grella, anunciou que a PM
voltaria a usar o armamento contra “vândalos” e “baderneiros”.
A decisão do secretário levou à agressão de mais inocentes, como a professora Patrícia Paulo Rodsenko, atingida por uma bala de borracha
em 15 de maio. Ela não estava nem vandalizando, nem badernando. Quando
foi baleada pela PM, apenas esperava a abertura de uma estação de metrô,
fechada por uma manifestação. A bala quebrou o nariz e um dos ossos da
face da professora.
No Brasil, faltam normas para disciplinar quando as armas menos
letais podem ser empregadas e como a a sociedade pode fiscalizar o seu
uso. Sobre isso, o texto da Portaria 4226 diz pouca coisa. Só afirma que
o uso da força por agentes de segurança pública deverá obedecer aos
princípios da “legalidade, necessidade, proporcionalidade, moderação e
conveniência”.
No ano passado, o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana
instalou um grupo de trabalho para regulamentar o uso de armas menos
letais, com a participação da Secretaria Nacional de Direitos Humanos da
Presidência da República, do Ministério da Justiça, do Ministério
Público e outras entidades, entre elas a Fiocruz, convidada a fazer um
estudo sobre os impactos reais dessas armas na saúde.
“O governo federal é responsável por liberar essas armas sem uma regulamentação que defenda o cidadão.”
Por enquanto, o grupo ainda não produziu resultados. Autor do pedido
que levou à criação do grupo de trabalho, Marcelo Zelic afirma que o
trabalho foi atropelado pela criação de um outro grupo, com os mesmos
objetivos, feita pelo Ministério da Justiça. Segundo Zelic, o grupo de
trabalho paralelo criado pelo Ministério reuniu apenas as forças de
segurança, excluindo representantes da sociedade civil e do Ministério
Público. Mesmo assim, o grupo teria produzido diretrizes que já serviram
de base para a atuação das forças de segurança durante a Copa do Mundo.
“O Ministério da Justiça atropelou a competência da CCDPH nessa
questão”, afirma. “O governo federal acaba sendo responsável por liberar
o uso dessas armas sem uma regulamentação que possa defender os
direitos do cidadão.”
Procurada pela Ponte, a assessoria de imprensa do
Ministério da Justiça não confirmou a criação de um grupo de trabalho
paralelo sobre o uso de armas não letais, limitando-se a mencionar a
publicação da Portaria 4226, há quatro anos. “A Secretaria Nacional de
Segurança Pública do MJ mantém permanente diálogo e contribuição com os
governos estaduais e outros órgãos ligados à segurança pública e à
defesa social no país para discutir e aperfeiçoar procedimentos e
programas, além de promover e fomentar de forma perene a capacitação de
profissionais federais, estaduais e municipais”, afirma a assessoria.
Recomeços
As balas de borracha mudaram o rumo da vida de Alex e Sérgio. De
volta à redação do Agora SP, Alex descobriu que a empresa havia decidido
que ele faria apenas pautas amenas, que não o colocassem em risco.
(Trabalhei no jornal durante esta época, e a única pauta que me lembro
de ter feito com Alex era um dia na vida de um Papai Noel no Shopping
Center Norte.) “Era uma atitude extremamente sensata do empregador, mas
eu não aguentei, porque já tinha pegado gosto de fazer coisas mais
movimentadas”, lembra. “Entrei numa depressão foda.”
Alex abandonou a fotografia por não poder dirigir.
Após três anos, pediu demissão e foi atrás do risco. Morou no
Maranhão durante um ano e no Amapá por mais sete. Adeus, papai nóeis de
shopping: Alex agora fotografava a cultura e a natureza da Amazônia,
para clientes como National Geographic e WWF (World Wide Fund).
Há cinco anos, trocou a Amazônia pelo Rio de Janeiro. Ali, as
entrevistas de emprego revelaram que, apesar do seu portfólio
deslumbrante, nenhuma empresa estava disposta a contratar um fotógrafo
mutilado por uma bala de borracha. “Depois que levei o tiro, nunca mais
fui contratado”, revela.
Foi aí que abandonou a fotografia. Não teria como trabalhar como
freelancer na cidade grande sem poder dirigir um automóvel, algo que o
ferimento no olho tornou impraticável. “Na Amazônia ainda dava. Mas no
Rio eu não poderia andar por aí com R$ 20 mil de equipamento sem um
carro”, diz.
Hoje, Alex estuda arquitetura na Universidade Estácio de Sá e
trabalha com direção de fotografia e criação de maquetes virtuais, para
produtoras independentes e escritórios de arquitetura. Para fazer seus
trabalhos, tem de ampliar várias vezes as imagens na tela e colar o
rosto dos monitores, que nunca medem menos de 20 polegadas.
Andar sem tropeçar
Passado um ano, Sérgio ainda está aprendendo a ver a vida com um olho
só. “A falta de um olho tira a noção de profundidade. Ainda é difícil
andar sem tropeçar”, conta. Ele se tornou um militante contra a
violência policial. Um abaixo-assinado que criou pedindo o fim das balas
de borracha reuniu 45.620 assinaturas. Um abaixo-assinado que criou
pedindo o fim das balas de borracha reuniu 45.620 assinaturas. Em 3 de
setembro, quando a Câmara Municipal de São Paulo aprovou um decreto
legislativo do vereador Coronel Telhada (PSDB) que homenageava a Rota
(Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), Sérgio protestou diante dos
vereadores com um pôster que exibia uma foto do seu próprio rosto
marcado pelo tiro.
Nos últimos meses, o militante se aliou ao fotógrafo em busca de um
jeito de protestar que fosse ao mesmo tempo bem humorado e contundente.
Foi assim que criou a exposição Piratas urbanos, uma série com mais de 70 retratos de pessoas usando um tapa-olho de pirata sobre o olho esquerdo.
E foi com um desses tapa-olho que Sérgio fotografou Alex, ao final
do encontro da semana passada. “É difícil fotografar você, cara. A
carga emocional…”, soltou Sérgio. Os dois fotógrafos, cada um do seu
lado da lente, choraram. Como no poema de Ferreira Gullar, são feito dois irmãos, não por terem o mesmo sangue, mas por terem derramado esse sangue do mesmo modo.
