Sábado, 16 de agosto de 2014
Ontem
foi domingo e me droguei muito
Do site www.gerivaldoneiva.com
Gerivaldo Neiva *
Ontem
foi domingo e me droguei muito. Comecei por volta das 13h e só fui parar depois
das 22h. Éramos uns poucos amigos e amigas, casais amigos, e quase todos se
drogaram também. Uns mais e outros menos. Petiscamos durante o dia e só no
final da festa é que resolvemos comer algo mais consistente. Sorrimos muito e
também tivemos momentos de conversa séria. Eu, por exemplo, quando me drogo,
tenho momentos de euforia e de silêncio. Passo horas ouvindo as pessoas e
outras horas com o olhar perdido. Depois, peço desculpas e retorno à euforia e
boas risadas.
Um
desses meus amigos gosta muito de misturar e reclama que não está sentindo
nada, embora todos os demais percebam seu visível estado de euforia. Outro
amigo tem sempre um copo de água ao lado, mas poucas vezes bebe a água. Outro
tem o ciclo bem rápido e em poucas horas passa da sobriedade para a euforia,
silêncio e sono; depois, quando os demais ainda estão na fase da euforia, ele
já está completamente recuperado e começa do zero. Outro não come nada e
justifica que se comer não consegue continuar se drogando e sente muito sono.
Outro, ao contrário, tem sempre um prato de petiscos ao lado e justifica que
não consegue se drogar sem comer. Outro, talvez só eu saiba disso, provoca
vômito cada vez que vai ao sanitário para continuar se drogando e parecer
sóbrio.
Drogas
são drogas e ponto final. Todas elas alteram nossa percepção sensorial e, em
consequência, a forma de ver o mundo. Esta relação das drogas com cada pessoa é
única. Drogas é uma coisa e o efeito delas é algo absolutamente pessoal.
Busca-se, portanto, algo entre a pessoa e a droga. Este algo é único e
individual e reflete exatamente a história da pessoa com os efeitos da droga. Então,
como cada um tem sua própria história, a relação dessa história com a droga
também será uma história própria. Por causa disso, uns usam drogas apenas uma
vez e não gostam, outros conseguem usar por muitos anos e não se tornam
dependentes e outros não conseguem mais parar de usar depois da primeira
experiência, tornando-se um usuário dependente.
Independentemente
do caráter de legal ou ilegal, lícita ou ilícita, todas as drogas são drogas e
estabelecem as mesmas relações com o usuário, pois não sabem se são permitidas
ou não. Assim, o uso do tabaco pode causar um profundo bem estar ao fumante,
embora possa causar inúmeros tipos de câncer. Da mesma forma, o álcool pode
oferecer alegria e euforia e, ao mesmo tempo, causar uma infinidade de
problemas à saúde de quem ingere álcool. Adentrando às drogas consideradas
ilícitas, a cocaína pode causar sensação de autoconfiança e poder, mas pode
também comprometer a saúde de quem cheira ou injeta. Também a maconha pode
relaxar e proporcionar viagens leves e lentas, mas também pode causar mal à
saúde de quem fuma. O ponto comum é que todas as drogas podem causar a
dependência e se tornar um problema para o usuário, seus familiares e
comunidade. No fim, o problema a ser enfrentado e discutido é por que alguns
usuários se tornam dependentes e problemáticos e outros não. Sendo assim, como
jamais conseguiremos acabar com as substâncias que alteram nossa percepção
sensorial, interessa muito mais entender a mente humana, as tragédias pessoais
e a desigualdade social do que proibir e criminalizar as drogas.
Pensando
assim, fico a me perguntar, qual o fundamento jurídico, legal, histórico,
filosófico, moral, religioso ou de qualquer outra natureza para considerar
marginais e bandidos pessoas que usam algum tipo de droga? E mais, também me
pergunto, por que as drogas fabricadas pela indústria capitalista, a exemplo do
tabaco, álcool, ansiolíticos e antidepressivos, são consideradas lícitas e,
inexplicavelmente, as drogas que não passam pela indústria capitalista são
consideradas ilícitas, a exemplo da maconha e cocaína? Será, por fim, que o
detalhe em comum seja exatamente este: a indústria capitalista?
Voltando
ao começo, ontem fiz um churrasquinho em casa e convidei os amigos para matar a
saudade, jogar conversa fora, comentar os jogos da Copa no Brasil e as
consequências na campanha política, lembrar das aventuras passadas, dos tempos
difíceis, empanturrar de carnes e, principalmente, tomar muitas cervejas.
Abasteci o freezer com algumas caixas de cerveja, preparei costelinhas de porco
e carneiro com toque final de alecrim; coração de frango, coxinhas da asa de
frango, costela de boi ao forno com papel alumínio, calabresa mista apimentada
(uma delícia!) e, como não poderia deixar de ser, saborosas picanhas com dois
dedinhos de gordura. Na manhã seguinte, como sou de carne e osso, tinha as mãos
trêmulas, boca seca, dificuldade de raciocinar e uma sede insaciável, ou seja,
estava de ressaca.
Sei,
por fim, que no mesmo domingo milhões de pessoas fizeram a mesma coisa e outros
milhões usaram drogas consideradas ilícitas. Muitos, como eu, trabalharam
normalmente no dia seguinte e outros, não tenho dúvidas, por conta exatamente
de sua relação com as drogas, continuaram usando abusivamente e causando
problemas à sua família e comunidade.
No
mais, é muito provável que muitos policiais militares, que poderiam estar
presentes em algum churrasco e provavelmente também de ressaca, resultado das
cervejinhas do domingo, irão prender em flagrante jovens pobres, negros,
periféricos e excluídos com pequenas porções de maconha ou crack, conduzindo-os
a algum delegado, também de ressaca, que irá indiciá-lo, mais pela cor da pele
e condição social, como traficante de drogas. Em seguida, algum
representante do Ministério Público, também participante do churrasquinho do
domingo, irá representar pela prisão preventiva com fundamento puro e simples
na “garantia da ordem pública” e, por fim, seu destino será escrito
indelevelmente como acusado por tráfico de drogas quando as mãos trêmulas e
boca sedenta de algum juiz de direito lhe decretar a prisão preventiva e lhe
esquecer na prisão.
Domingo
que vem tem mais churrasco com os amigos, muita cerveja e ressaca na
segunda-feira, mas também terá muita galera fumando maconha, cheirando cocaína
e fumando pedras de crack. A diferença é que uns, por conta da droga usada, cor
da pele e condição social, serão presos e condenados e outros, enquanto
cidadãos respeitáveis, tomarão um engov ou epocler e assinarão mandados de
prisão.
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação
Juízes para a Democracia (AJD), membro da Comissão de Direitos Humanos da
Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Porta-Voz no Brasil do movimento
Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil)
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