Sábado, 14 de outubro de 2017
Do Blog O Real Não se Vê
Por Nildo Ouriques*
O general falou na maçonaria mas queria mesmo mandar um recado pro Brasil. Foi orwelliano ao afirmar que quando necessário
o exército não faltará com seu dever, promovendo uma “intervenção”; em bom português, estabeleceu o horizonte da ditadura.
A gritaria foi generalizada. Longe
dela, após a febre feicibuquiana ceder, assisti a conferência do
general.
Recomendo à todos, especialmente àqueles que defendemos a Revolução
Brasileira. A condenação
moral e mesmo a repulsa ao discurso do militar é tao fácil quanto
justificada, mas, como bem sabemos, não
move moinho. A indignação – alertou Marx – é a impotência em ação.
Àqueles que pensam diferente e seguem jogando palavras ao ar contra o
discurso, deveriam indicar com quantos homens e tanques estão dispostos a
disciplinar o general Mourão. Enfim,
política é força.
Os liberais e as ditaduras
Em “tese”, ninguém quer uma
ditadura, incluindo os liberais, eternos beneficiários do regime; mas
não podemos esquecer que as
ditaduras somente emergem quando as classes dominantes decidem que são
necessárias porque
seu monopólio do poder e da riqueza estão ameaçados pelas classes
subalternas. O protesto moral diante do discurso do general numa rede
social é incapaz de matar na origem a ameaça. Na verdade, muitas pessoas
simplesmente não
sabem o que fazer em relação às forças armadas. Neste caso, predomina a
consciência
ingênua: os militares devem permanecer na caserna – limitam-se a dizer –
e deixar a
política para nós, os civis. No entanto, na América Latina a defesa
deste
postulado é inútil, pois sempre que as classes dominantes sentiram seus
interesses ameaçados, não vacilaram em conspirar contra a ordem
constitucional em defesa da ditadura. Uma ditadura contra nosso povo.
Na esquerda, observo dois comportamentos. Há, é verdade, aquela esquerda
que de fato estuda os militares e atua no sentido de
dota-los de instrumentos analíticos e consciência revolucionária. É
tendência minoritária. Por outro lado existe aquela esquerda que prefere
não tocar no tema como se, de fato, os militares não existissem e
tampouco fossem um “fator de poder”. No episódio aqui considerado, os
mais
inocentes se limitaram à denuncia moral do general. Inútil, repito.
O que podemos concluir do pronunciamento feito por Mourão naqueles 54
minutos? Quatro linhas merecem atenção. Antes, porém, uma advertência de
caráter geral.
O pendulo de Washington
A conferência do general para auditório maçônico é peça importante de uma tendência no exercito. Ele é um militar claramente formado na doutrina de segurança nacional a serviço de Washington. Por isso, as referências teóricas exibidas não passam de Joseph Nye Jr e o inesquecível Secretário de Estado, John Foster Dulles, um sujeito que levou a política estadunidense do terrorismo de estado as últimas consequências. No Brasil, suas indicações intelectuais estão limitadas a Roberto Campos e, ligeiramente, a Osório. Enfim, uma peça do liberalismo útil aos interesses dos Estados Unidos no Brasil.
Neste contexto, Mourão figura como discípulo das doutrinas emanadas da Escola das Américas, notável em décadas passadas por treinar assassinos e implantar técnicas de terrorismo de estado em toda a América Latina. Em 1962, o presidente democrata John F. Kennedy definiu que a função dos exércitos latino-americanos já não era a da "segurança hemisférica" mas, ao contrário, deveria se orientar para a "segurança interna". O giro estratégico significava, em bom português, guerra contra nosso povo, agora definido como potencial "inimigo interno". É claro que a estratégia jamais foi apresentada friamente, pois tudo foi realizado em nome do combate ao "comunismo e em defesa dos valores ocidentais". No entanto, um atento observador da política externa estadunidense - Noam Chomsky - anotou que ninguém menos que "Charles Maechling Jr., diretor do Departamento de Estado para a Defesa Interna dos EUA e chefe do Grupo Especial de contrainsurgência e o planejamento da defesa dos Estados Unidos de 1961 a 1966, descreve as previsíveis consequências da decisão de 1962 como uma mudança, da tolerância "à rapacidade e à crueldade das Forças Armadas latino-americanos" para a "crueldade direta" em seus crimes ao apoio dado pelos norte-americanos aos "métodos dos esquadrões de extermínio de Heirich Himmler". (Noam Chomsky, Quem manda no mundo, 2017).
Em 2001 a antiga Escola do terror foi renomeada como Instituto de Cooperação e Segurança do Hemisfério Ocidental (Western Hemisphere Institute for Security Cooperation). No pêndulo entre a "segurança hemisférica" e a necessária vigilância sobre o "inimigo interno", devemos ter claro que em qualquer direção a oscilação sempre favoreceu os interesses de Washington e, no fundo, dependem da força destrutiva da crise econômica e da falta de legitimidade do sistema político. Na ausência de uma ameaça à segurança hemisférica dos Estados Unidos, a linha mais relevante no momento volta-se, por razoes óbvias, contra o inimigo interno e, parte de nossas forças armadas, segue a cartilha estadunidense.
O bloco americano
O general anuncia que nosso mundo é perigoso, como se Guimarães Rosa jamais tivesse publicado. Neste contexto turbulento, sempre instável, Mourão não vacila no essencial: nós, brasileiros, pertencentes ao continente sul americano, estaremos sempre alinhados com aquilo que ideologicamente chamou de o “bloco americano”. Apoiado num "power point" que reforça aparente confusão didática, o roteiro de sua conferência é, no entanto, bem conhecido, pois a pauta do general Mourão é orientada pela política externa de Washington. As drogas, por exemplo, constituem uma ameaça à nossa segurança. Na verdade, não é a segurança e estabilidade do Brasil que o preocupa, mas a estabilidade do imperialismo estadunidense apresentada por seus teóricos como "segurança hemisférica". Neste contexto, pouco importa se Mourão dourou seu discurso com repetidos e genéricos apelos ao interesse nacional brasileiro. A filiação do Brasil no "bloco americano" defendida por Mourão obedece, portanto, ao principio da "segurança hemisférica" praticada pelo Império em tempos de crise ou normalidade.
Adesão ao liberalismo extremo
No terreno econômico, Mourão professa inabalável fé ao liberalismo
extremo. A ausência de diagnóstico sobre a natureza especifica da crise
econômica atual é compensada em sua crença e consequente defesa do
programa econômico liberal, fato que torna sua exposição simplória,
doutrinária e, obviamente, pra lá de
precária. Mas não nos enganemos, a defesa da republica rentista orienta
seu prescrição: disciplina fiscal, reforma tributária,
liberalização financeira e comercial, abertura completa para o capital
externo
e privatizações. É fácil concluir que a aplicação radical de um programa
desta
natureza nas condições atuais do capitalismo mundial requer,
necessariamente,
um regime de força. Basta pensar no Chile de Pinochet ou na Argentina
dos generais para entender que as regras do "livre mercado" somente
podem ser implementadas com requintes de violência, violação sistemática
dos direitos humanos e crimes de lesa humanidade contra nosso povo.
Qualquer um pode imaginar o caráter do regime necessário para
implementar tal modalidade de política econômica em nosso país.
A reforma moral e cultural
Na cultura, o general tampouco alimenta ilusões. Sem cerimonia, alerta
que devemos romper com a nossa triple
herança cultural: apoiado em 46 anos de vida militar, Mourão pretende
extirpar a
“herança cultural ibérica” segundo ele marcada pelo “privilégio e a
sinecura”; abandonar a herança cultural indígena, orientada pela
“indolência”; e, finalmente,
superar a herança cultural africana, tributária da “magia”. A formação
de nossos oficiais precisa incorporar com urgência a antropologia de
Darcy Ribeiro como antídoto à ignorância e ao preconceito! As
recomendações constituem surrada peça
do eurocentrismo anglo-saxônico que encontrou até entre os acadêmicos
certa
sustentação ingênua a partir do tão famoso quanto precário livro de Max
Weber (A ética protestante e o espirito do
capitalismo). No entanto, hoje, mesmo declarados liberais tomam
cautela na defesa do eurocentrismo e não arriscam alinhamento dogmático
feito o
general. No vale tudo intelectual atual, é norma nos salões professar
apreço ao pluralismo, sempre que em sua defesa o bom-mocismo assegure a
dominação classista e imperialista. Enfim, o
general defende uma sorte de “reforma moral” da sociedade brasileira,
muito
semelhante àquela verificada no Chile após Pinochet, que apenas agora
começa
desmoronar: no lugar da coesão social e da solidariedade, a fé nos
benefícios da
concorrência e do mérito. Ora, nos países centrais a defesa do mérito -
necessariamente individualista - é mera ideologia legitimadora, enquanto
numa sociedade dependente e subdesenvolvida o bordão não passa de
rasteira defesa do escancarado privilégio classista, pois a ordem social
não assegura
condições mínimas para a livre concorrência entre todos. Enfim, o
general pretende uma reforma moral de nosso povo e de nossa historia.
Não é pouco, convenhamos.
O revisionismo histórico
Por último, o general reivindica perverso revisionismo histórico pois,
segundo ele, a geração a qual pertence, ficou marcada pelos ataques
“covardes” que os militares receberam, pois, segundo conveniente
interpretação da ditadura, “nós buscamos fazer o melhor e levamos
pedradas de todas as formas”. O
espírito de conciliação e o fim do “revanchismo” que orientou a
impunidade de
militares e autoridades civis responsáveis por crimes terríveis contra
nosso
povo durante a ditadura militar (1964-1985) recebe agora seu veredito:
de uma
ditadura nunca sairemos ilesos. A campanha pela anistia jamais pretendeu
perdão
para crimes de estado, mas toda tentativa de passar a limpo aquele
terrível período histórico foi, imediatamente, interditada pelo espirito
de conciliação
dos liberais e também pelo alerta dos militares orientados pelo “fim do
revanchismo”, como se lutar por justiça representasse, de fato,
revanchismo e não
reparação e verdade. Enfim, estamos diante de uma demonstração clara de
que o “espirito
de conciliação” nunca terá aceitação por parte das classes dominantes.
Esquecer
o passado é sempre muito perigoso.
Epílogo: a lei da selva como lei da vida
A guerra de classes inaugurada por Dilma no primeiro ano de seu segundo
mandato e aprofundada por Temer contra direitos elementares requeridos
por uma sociedade civilizada necessitará, em algum momento, um regime
capaz de reprimir com doses de violência muito mais elevadas do que
aquele que atualmente sofremos. Um regime militar, talvez. Por enquanto,
na medida em que a luta dos trabalhadores não ameaça a ordem dominante
eles exibem apenas amostra grátis do futuro (o deputado Bolsonaro, por
exemplo) ou gente de classe média clamando pela ditadura por um Brasil
sem corrupção, como se crimes deste tipo não existissem nos anos de
chumbo.
De resto, num mundo orientado pelas reformas liberais emanadas de Washingtom, temos que considerar o recado final de Mourão, pois é espécie de transplantação para a sociedade de uma lei militar praticada na selva: “suportar desconforto e fadiga, sem queixa e sermos moderados nas necessidades”, diz o general. Não há duvidas sobre o sentido perverso da ordem militar quando transformada em ordenamento social. Creio que é um mandamento destinado a suportar a austeridade permanente, um mandamento destinado à aceitação da miséria e do sofrimento num reino de mil anos.
De resto, num mundo orientado pelas reformas liberais emanadas de Washingtom, temos que considerar o recado final de Mourão, pois é espécie de transplantação para a sociedade de uma lei militar praticada na selva: “suportar desconforto e fadiga, sem queixa e sermos moderados nas necessidades”, diz o general. Não há duvidas sobre o sentido perverso da ordem militar quando transformada em ordenamento social. Creio que é um mandamento destinado a suportar a austeridade permanente, um mandamento destinado à aceitação da miséria e do sofrimento num reino de mil anos.
*Nildo Ouriques é Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais,
Presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA) da
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina.