Quinta, 6 de fevereiro de 2020
Em uma noite de sexta-feira, início do Shabat*, ou o dia sagrado da religião judaica, Freddy Siegfried Glatt reúne-se com sua família em seu apartamento no Rio de Janeiro, onde faz suas rezas ao lado de filhos, netos e bisnetos.
Prestes a completar 92 anos, ele se curva diante da mesa de jantar repleta de taças de vinho e pedaços de pão, e realiza o Hadlakat Nerot — o ritual judaico de acendimento das velas ao anoitecer.
“Eu sou muito grato ao Brasil. Tenho netos e bisnetos brasileiros. (…) No Shabat, essa mesa fica cheia de gente. E as crianças pequenas ficam correndo pela casa fazendo bagunça”, disse. Leia reportagem do Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil (UNIC Rio).
Freddy e Betty Glatt reúne-se durante o Shabat. Foto: UNIC Rio/Reprodução
Filho de poloneses, Glatt nasceu em Berlim em 1928, de onde teve de fugir meses depois da ascensão de Hitler, em 1933, após a loja de aviamentos de seus pais ser atacada a pedradas por membros da juventude hitlerista.
Sua vida foi marcada por repetidos deslocamentos forçados. Aos 5 anos, se tornaria um refugiado ao lado de seus pais e de seus dois irmãos mais velhos, Bubbi e Heinz. A família se estabeleceria inicialmente em Antuérpia, na Bélgica, onde já viviam seus avós maternos.
Com a intensificação da Segunda Guerra Mundial, em 1940, a Antuérpia também passaria a ser alvo de bombardeios por parte das tropas alemãs. A família teria que se mudar novamente, desta vez, com destino à França.
“Da Bélgica, eu fugi para a França. Da França, eu voltei para a Bélgica, só que para outro lugar (Bruxelas). Eu adotei um nome falso: Freddy Van Damme, um nome flamengo. E assim me salvei”, contou Glatt.
Em Bruxelas, uma diretriz obrigava os judeus a costurar na roupa uma Estrela de Davi com a inscrição: “judeu”. Glatt se recusou a usá-la. “Eu a arranquei e joguei fora. Não era um animal para ser marcado. Não queria que todo mundo na rua visse que eu era judeu, eu sentia muito medo”, lembrou.
Em 1942, jovens judeus que viviam na Bélgica ocupada eram convocados a se apresentar para trabalhos de construção. Uma das convocações das autoridades alemãs listava o nome dos dois irmãos mais velhos de Glatt, que àquela altura tinham 19 e 21 anos.
A convocação para o trabalho era apenas uma armadilha. Glatt soube posteriormente que seus irmãos foram levados a Auschwitz-Birkenau, o maior campo de concentração e extermínio da Alemanha nazista, localizado na Polônia ocupada. Pouco tempo depois, os avós de Glatt também seriam deportados para lá.
“Eles mataram meus irmãos, meus avós. Mataram todos os meus colegas de colégio. Eu estou aqui hoje porque tive muita sorte. Eu sou um sortudo”, disse Glatt.
Em questão de semanas, a família havia sido reduzida de seis indivíduos — os pais de Glatt já estavam divorciados — para apenas dois, Glatt e sua mãe. A ocupação alemã se ampliava na Bélgica e logo a família receberia um aviso de um vizinho sobre a visita de membros da Gestapo, que logo voltariam em busca de judeus.
Glatt e sua mãe tiveram que se mudar novamente para outro apartamento em Bruxelas e evitavam sair às ruas. Venderam seus pertences para conseguir algum alimento e viviam em estado de pavor constante. “Fiquei várias vezes sem comida. Oito dias sem comer, só bebendo água gelada da torneira”, contou.
Em 1943, a mãe de Glatt entra em contato com o rabino-chefe da Bélgica, que resgatava jovens e crianças judias para abrigá-las em orfanatos e seminários católicos. Glatt ficou no Chateau de Schaltin, mantido pela Jeunesse Ouvrière Chrètiene (Juventude Operária Cristã) até o fim da ocupação, em 1944. Sua mãe continuou vivendo escondida no antigo apartamento da família.
O reencontro de Glatt com sua mãe ocorreu após a chegada dos Aliados, sinalizando o fim da guerra. Mesmo com a sobrevivência, a família continuou enfrentando dificuldades, uma vez que a Bélgica, assim como toda a Europa Ocidental, passava por uma crise econômica sem precedentes. Era a hora de fazer novamente as malas, desta vez, com destino ao Brasil, onde o pai de Glatt já vivia.
“Para mim, o Rio de Janeiro era uma aventura nova. Imagina, ter uma praia! Eu fui logo no primeiro fim de semana”, contou Glatt, que tinha 19 anos quando chegou ao país. Após 12 anos separados, seus pais se casaram novamente. Glatt logo conseguiu um emprego em uma fábrica e, em 1951, conheceu sua esposa, Betty Glatt, com quem vive até hoje.
Em 2013, aos 85 anos, Glatt pôde finalmente fazer seu Bar-Mitzvá**. “Eu fiz com um rabino muito meu amigo que já saiu do Brasil, foi para Israel. Foi muito emocionante”, declarou.
Atual presidente da Associação dos Sobreviventes do Holocausto do Rio de Janeiro, Glatt já relatou em centenas de palestras como superou as barbáries do nazismo e sua tentativa de destruir a vida, a cultura e as tradições judaicas. Em 2018, lançou o livro “Roubaram minha infância”, organizado por Sofia Débora Levy, professora e pesquisadora do Holocausto.
“Eu acho muito importante as pessoas saberem o que aconteceu. As injustiças que foram feitas”, disse, lembrando que com as palestras também pretende alertar os mais jovens sobre os perigos do antissemitismo.
Ele tem três filhos, duas meninas e um menino, seis netos e dois bisnetos. “O Brasil me recebeu bem”, contou. “Eu tive oportunidades, logo me naturalizei (brasileiro). Sou brasileiro há muitos anos. Me sinto bem como brasileiro, tenho orgulho”, concluiu.
Glatt é um dos muitos sobreviventes do Holocausto que conseguiram abrigo no Brasil. Eles foram homenageados em 28 de janeiro, na ocasião do Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto, em cerimônia organizada pelo Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil (UNIC Rio), na capital fluminense.
O evento também foi a ocasião do lançamento da exposição “Alguns eram vizinhos: escolha, comportamento humano e o Holocausto”, que fica em cartaz até 20 de fevereiro no Centro Cultural da Justiça Federal. A mostra traz reflexões sobre o que as pessoas fizeram — ou deixaram de fazer — durante a Segunda Guerra Mundial, em atitudes que ajudaram — ou não — vítimas do antissemitismo e do nazismo.
“Quando pensamos no Holocausto, a primeira pessoa em quem pensamos é Hitler e a responsabilidade do governo nazista. Mas esta exposição nos inspira a pensar como os nazistas conseguiram ter tanto apoio de pessoas comuns. Levanta a questão sobre as razões que levaram algumas pessoas a ajudar os nazistas durante o Holocausto, enquanto outras decidiram ajudar os judeus”, explicou a diretora do UNIC Rio, Kimberly Mann.
A mostra é produzida em parceria com o Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos e o Programa Educacional da ONU sobre o Holocausto.
*O Shabat começa no anoitecer das sextas-feiras e termina ao pôr do sol do sábado. Pela tradição judaica, o Shabat deve ser dedicado exclusivamente às orações, estudos e ao descanso.
**Cerimônia que insere o jovem judeu, em seu aniversário de 13 anos, como um membro maduro da comunidade judaica.
Em uma noite de sexta-feira, início do Shabat*, ou o dia sagrado da religião judaica, Freddy Siegfried Glatt reúne-se com sua família em seu apartamento no Rio de Janeiro, onde faz suas rezas ao lado de filhos, netos e bisnetos.
Prestes a completar 92 anos, ele se curva diante da mesa de jantar repleta de taças de vinho e pedaços de pão, e realiza o Hadlakat Nerot — o ritual judaico de acendimento das velas ao anoitecer.
“Eu sou muito grato ao Brasil. Tenho netos e bisnetos brasileiros. (…) No Shabat, essa mesa fica cheia de gente. E as crianças pequenas ficam correndo pela casa fazendo bagunça”, disse. Leia reportagem do Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil (UNIC Rio).
Freddy e Betty Glatt reúne-se durante o Shabat. Foto: UNIC Rio/Reprodução
Filho de poloneses, Glatt nasceu em Berlim em 1928, de onde teve de fugir meses depois da ascensão de Hitler, em 1933, após a loja de aviamentos de seus pais ser atacada a pedradas por membros da juventude hitlerista.
Sua vida foi marcada por repetidos deslocamentos forçados. Aos 5 anos, se tornaria um refugiado ao lado de seus pais e de seus dois irmãos mais velhos, Bubbi e Heinz. A família se estabeleceria inicialmente em Antuérpia, na Bélgica, onde já viviam seus avós maternos.
Com a intensificação da Segunda Guerra Mundial, em 1940, a Antuérpia também passaria a ser alvo de bombardeios por parte das tropas alemãs. A família teria que se mudar novamente, desta vez, com destino à França.
“Da Bélgica, eu fugi para a França. Da França, eu voltei para a Bélgica, só que para outro lugar (Bruxelas). Eu adotei um nome falso: Freddy Van Damme, um nome flamengo. E assim me salvei”, contou Glatt.
Em Bruxelas, uma diretriz obrigava os judeus a costurar na roupa uma Estrela de Davi com a inscrição: “judeu”. Glatt se recusou a usá-la. “Eu a arranquei e joguei fora. Não era um animal para ser marcado. Não queria que todo mundo na rua visse que eu era judeu, eu sentia muito medo”, lembrou.
Em 1942, jovens judeus que viviam na Bélgica ocupada eram convocados a se apresentar para trabalhos de construção. Uma das convocações das autoridades alemãs listava o nome dos dois irmãos mais velhos de Glatt, que àquela altura tinham 19 e 21 anos.
A convocação para o trabalho era apenas uma armadilha. Glatt soube posteriormente que seus irmãos foram levados a Auschwitz-Birkenau, o maior campo de concentração e extermínio da Alemanha nazista, localizado na Polônia ocupada. Pouco tempo depois, os avós de Glatt também seriam deportados para lá.
“Eles mataram meus irmãos, meus avós. Mataram todos os meus colegas de colégio. Eu estou aqui hoje porque tive muita sorte. Eu sou um sortudo”, disse Glatt.
Em questão de semanas, a família havia sido reduzida de seis indivíduos — os pais de Glatt já estavam divorciados — para apenas dois, Glatt e sua mãe. A ocupação alemã se ampliava na Bélgica e logo a família receberia um aviso de um vizinho sobre a visita de membros da Gestapo, que logo voltariam em busca de judeus.
Glatt e sua mãe tiveram que se mudar novamente para outro apartamento em Bruxelas e evitavam sair às ruas. Venderam seus pertences para conseguir algum alimento e viviam em estado de pavor constante. “Fiquei várias vezes sem comida. Oito dias sem comer, só bebendo água gelada da torneira”, contou.
Freddy recém-nascido no colo de sua mãe, em Berlim. Foto: Acervo Pessoal
Em 1943, a mãe de Glatt entra em contato com o rabino-chefe da Bélgica, que resgatava jovens e crianças judias para abrigá-las em orfanatos e seminários católicos. Glatt ficou no Chateau de Schaltin, mantido pela Jeunesse Ouvrière Chrètiene (Juventude Operária Cristã) até o fim da ocupação, em 1944. Sua mãe continuou vivendo escondida no antigo apartamento da família.
O reencontro de Glatt com sua mãe ocorreu após a chegada dos Aliados, sinalizando o fim da guerra. Mesmo com a sobrevivência, a família continuou enfrentando dificuldades, uma vez que a Bélgica, assim como toda a Europa Ocidental, passava por uma crise econômica sem precedentes. Era a hora de fazer novamente as malas, desta vez, com destino ao Brasil, onde o pai de Glatt já vivia.
“Para mim, o Rio de Janeiro era uma aventura nova. Imagina, ter uma praia! Eu fui logo no primeiro fim de semana”, contou Glatt, que tinha 19 anos quando chegou ao país. Após 12 anos separados, seus pais se casaram novamente. Glatt logo conseguiu um emprego em uma fábrica e, em 1951, conheceu sua esposa, Betty Glatt, com quem vive até hoje.
Em 2013, aos 85 anos, Glatt pôde finalmente fazer seu Bar-Mitzvá**. “Eu fiz com um rabino muito meu amigo que já saiu do Brasil, foi para Israel. Foi muito emocionante”, declarou.
Atual presidente da Associação dos Sobreviventes do Holocausto do Rio de Janeiro, Glatt já relatou em centenas de palestras como superou as barbáries do nazismo e sua tentativa de destruir a vida, a cultura e as tradições judaicas. Em 2018, lançou o livro “Roubaram minha infância”, organizado por Sofia Débora Levy, professora e pesquisadora do Holocausto.
“Eu acho muito importante as pessoas saberem o que aconteceu. As injustiças que foram feitas”, disse, lembrando que com as palestras também pretende alertar os mais jovens sobre os perigos do antissemitismo.
Ele tem três filhos, duas meninas e um menino, seis netos e dois bisnetos. “O Brasil me recebeu bem”, contou. “Eu tive oportunidades, logo me naturalizei (brasileiro). Sou brasileiro há muitos anos. Me sinto bem como brasileiro, tenho orgulho”, concluiu.
Glatt é um dos muitos sobreviventes do Holocausto que conseguiram abrigo no Brasil. Eles foram homenageados em 28 de janeiro, na ocasião do Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto, em cerimônia organizada pelo Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil (UNIC Rio), na capital fluminense.
O evento também foi a ocasião do lançamento da exposição “Alguns eram vizinhos: escolha, comportamento humano e o Holocausto”, que fica em cartaz até 20 de fevereiro no Centro Cultural da Justiça Federal. A mostra traz reflexões sobre o que as pessoas fizeram — ou deixaram de fazer — durante a Segunda Guerra Mundial, em atitudes que ajudaram — ou não — vítimas do antissemitismo e do nazismo.
“Quando pensamos no Holocausto, a primeira pessoa em quem pensamos é Hitler e a responsabilidade do governo nazista. Mas esta exposição nos inspira a pensar como os nazistas conseguiram ter tanto apoio de pessoas comuns. Levanta a questão sobre as razões que levaram algumas pessoas a ajudar os nazistas durante o Holocausto, enquanto outras decidiram ajudar os judeus”, explicou a diretora do UNIC Rio, Kimberly Mann.
A mostra é produzida em parceria com o Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos e o Programa Educacional da ONU sobre o Holocausto.
*O Shabat começa no anoitecer das sextas-feiras e termina ao pôr do sol do sábado. Pela tradição judaica, o Shabat deve ser dedicado exclusivamente às orações, estudos e ao descanso.
**Cerimônia que insere o jovem judeu, em seu aniversário de 13 anos, como um membro maduro da comunidade judaica.