Domingo, 16 de fevereiro de 2020
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Muitas vezes, na análise do fato social, somos levados a tomar a aparência pela realidade. Trata-se, porém, de desvio de perspectiva que, em regra, leva o observador a mover uma guerra irremediavelmente perdida contra as sombras. O dramático, por força de suas consequências, se apresenta quando esse desvio é cometido por quem tem a responsabilidade de atuar como sujeito do processo político, porque, não raramente, o dirigente partidário, pressionado pela necessidade do agir, é levado a condenar a plano secundário a precaução da análise reflexiva. No caso concreto da circunstância histórica de hoje – uma superação de ciclo sem sucessão delineada –, a dificuldade de determinar a natureza do processo tem implicado, ipso fato, a dificuldade de organizar a ação objetiva adequada.
Há consenso em face da evidência da crise política, mas não há clareza sobre a morfologia e a dinâmica do processo que a engendrou, aquelas movimentações de verdadeiras e silenciosas placas tectônicas que alteram a aparência dos fenômenos, os quais apenas são vistos quando afloram à luz do dia. Vemos o processo social se desenvolvendo em ondas, mas não dominamos sua dinâmica, e nos esquecemos de que nenhuma vaga é fenômeno autônomo.
O dado objetivo é que não tivemos nem olhos nem ouvidos para conhecer, ainda em seu nascedouro, como o ovo da serpente, a formação de uma nova aliança de classes de que resultou a emergência de uma extrema-direita com claro apoio popular, fato inédito em nossa História.
Tomando como realidade o “mar de lama” que correria nos porões do Catete – tese da direita brasileira – o Partido Comunista terminou aliando-se à onda golpista que em 1954 levou à deposição e suicídio do presidente Getúlio Vargas.
Presa à aparência de “legalismo” das forças armadas – mito que ainda viceja entre nós –, a esquerda brasileira em seus variados matizes, e as forças progressistas de então, não tiveram olhos para ver a preparação do golpe de 1964. Por desvio de avaliação, não se prepararam para evitá-lo, ou oferecer-lhe resistência, nem mesmo para garantir uma retirada em ordem.
No dia 17 de março daquele fatídico 1964, em conferência para um auditório de camaradas, o secretário-geral do PCB afirmava que as forças armadas brasileiras eram nacionalistas (outra visagem que a realidade desmente), legalistas e democráticas, pelo que “não havia a menor possibilidade de golpe militar no Brasil”. Poucos dias passados, em 31 daquele março, as tropas do general Olímpio Mourão marchavam, sem encontrar resistência de qualquer natureza, em direção ao Rio de Janeiro. João Goulart seria deposto e se instalaria uma ditadura militar cuja doutrina autoritária, no seu fundamental, tenta sobreviver no que hoje conhecemos como bolsonarismo.
Nos anos 30 do século passado, os comunistas alemães, convencidos de que o inimigo a ser abatido era a socialdemocracia, viram na ascensão nazista a promessa de derrota do adversário do mesmo campo, abrindo caminho para a chegada dos trabalhadores ao paraíso. Já os socialdemocratas italianos, igualmente presos às aparências, viram no advento do fascismo a oportunidade de derrota dos comunistas, com os quais disputavam o poder. Sabemos no que deram ambos os erros.
Nada obstante as advertências do processo social – como a irrupção de 2013 –, não tivemos condições de compreender o real significado dos anos do lulismo, terminando por confundi-los com a prometida emergência das grandes massas, vencendo o império da casa grande. A força popular do lulismo (então percorrendo terreno muito mais extenso que o petismo e ainda mais largo que os limites das esquerdas) foi vista como testemunho de politização. Ofuscados pelo brilho das aparências, não vimos o mundo real de um processo social que fermentava quase na superfície. Só assim o dramático pleito de 2014, caminhando por desvios, chegaria à luz do dia como a quebra de um encantamento, pois víamos de forma congelada um processo social por definição dinâmico.
O preço é consabido.
Confundir a aparência com a realidade é identificar a deposição de Dilma Rousseff como um simples “golpe parlamentar”, engendrado por figuras menores como Michel Temer e Eduardo Cunha (e facilitado por tropeços iniciados antes da posse da presidente. A leitura superficial deixou de ver a articulação mobilizada pelo capital financeiro nacional e internacional, e muito menos a profundidade das transformações políticas que a partir daí seriam maquinadas, arando o terreno para a semeadura do experimento neoliberal-autoritário que tomaria vulto com a eleição e o governo do capitão Bolsonaro.
Confundir a aparência com a realidade é ver como pautas distintas o projeto político do capitão e a agenda econômica empunhada por Paulo Guedes e Rodrigo Maia, levada a cabo com o apoio unânime da grande imprensa, a serviço dos interesses do dito “mercado”.
Reduzir a eleição de Bolsonaro a circunstâncias fortuitas, a erros ou êxitos de uma ou de outra campanha, a fake news e artimanhas normais ou não do degenerado marketing político brasileiro, é perder-se, uma vez mais, nas aparências. Um pouco de reflexão mostraria ao observador atento a formação, talvez silenciosa mas de toda sorte sob nossos olhos, de uma direita com raízes populares, fruto da aliança da classe-média com o grande capital, uma aliança que se projeta para além do processo eleitoral e se consolida na sustentação do governo.
A extrema-direita, além de instalar-se no poder e de exercê-lo em plenitude, inclusive com respaldo militar, conta, hoje – e eis o grande fato novo da História republicana –, com um líder popular que, ademais, ocupa o terceiro andar do Palácio do Planalto. E breve terá ao seu dispor, para o que der e vier, um partido de massas de que jamais dispôs a extrema-direita brasileira, pois organizado nacionalmente, com passagem pelos mais diversos setores da sociedade, o que inclui, além da institucionalidade, como significativos segmentos do poder judiciário e do ministério público, vínculos com o aparelho da repressão. Esses são os vínculos notórios, aos quais, porém, não se limita, pois são estreitas as relações da família presidencial com as milícias que controlam o crime organizado.
Na base de apoio ao partido do bolsonarismo, que flerta com formações paramilitares, encontram-se também, além de católicos e seitas religiosas variadas, camadas significativas do neopentecostalismo, o que pode fazer do futuro Aliança o primeiro partido confessional brasileiro.
A confusão entre o confessional e o político, a partidarização religiosa, a transformação de templos em comitês político-eleitorais devem ser enfrentados como vícios que afetam toda e qualquer concepção de Estado laico e republicano. Outra coisa é simplesmente demonizar o pentecostalismo e seus fiéis tratando todos como uma malta de reacionários irrecuperáveis. Cabe ao pensamento e à ação de esquerda, em condições de cavar até às raízes do fenômeno religioso, disputar com a direita, sem preconceitos, corações e mentes do pentecostalismo.
O fenômeno que nos desafia como a esfinge de Tebas reclama reflexão, uma intervenção analítica sobre o ser da política brasileira de nossos dias, cuja especificidade diz que estamos em face de um processo político-social não concluído. As mudanças de qualidade, porém, já são operadas, o fenômeno caminha com velocidade própria, pondo em questão muitos dos axiomas que até aqui nos serviram como instrumentos preciosos de interpretação histórica. Agora descobrimos que muito do que supúnhamos ser a realidade, na qual trabalhávamos, não passava de mera aparência.
Para além da mera oposição ao que aí está, o papel da esquerda é preparar-se para disputar poder, o que requer engenho e arte na construção de uma frente ampla, popular, democrática e progressista.
Não é gafe, é projeto: para quem se viu surpreendido com a declaração abjeta de Guedes sobre as empregas domésticas, vale lembrar que seu chefe (cujas características como homem público são notórias) já declarou com orgulho haver votado contra a mudança legislativa que finalmente reconhecia os direitos dessas trabalhadoras.
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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia