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Autoritarismo político e neoliberalismo, duas faces de uma mesma e péssima moeda (afinal, só uma ditadura pode reduzir os direitos trabalhistas, promover o fim da estabilidade dos servidores e achatar salários), são a base ideológica do desmonte da economia, que avança, sem encontrar resistência. Aliás, essa política não deu certo em nenhum país do mundo. A “joia da Coroa”, o Chile, acaba de explodir, e nenhum dos admirados Tigres Asiáticos, sucessos em desenvolvimento econômico relativamente rápido e continuado, adotou o catecismo da escola de Chicago.
Guedes-Maia, uma sociedade até aqui bem sucedida, cuidam da desmontagem do Estado nacional, enquanto o bolsonarismo de raiz cuida da implantação do autoritarismo (por seu turno o garante do neoliberalismo e do entreguismo) que hoje pervade todos os escaninhos da sociedade brasileira: o avanço das milícias, sob os cuidados da família presidencial, e os motins das polícias militares, são dois indicadores, mas não os únicos das graves ameaças que pesam sobre a democracia brasileira, pois se amiúdam e aprofundam, açulados por um presidente perdidamente obsceno, os ataques ao Congresso (que ainda simboliza a soberania popular), ao STF e à imprensa, nada obstante o primeiro haver homologado as invenções mais antipopulares e antinacionais da “pauta Guedes” e os jornalões e tevês ainda hoje defenderem uma política econômica que está levando o país à estagnação e seu povo à miserabilidade.
Não se pejam os jornais de mentir; mentem hoje, na defesa da atual política econômica, como mentiram sistematicamente na preparação do golpe que redundou na posse de Michel Temer, peça fundamental na construção da candidatura e eleição do capitão. O bolsonarismo muito deve à mídia brasileira. O capitão foi ingrato quando agradeceu apenas aos préstimos do comandante do Exército (Villas-Bôas), a quem creditou a vitória.
Todas as promessas e metas do bolsonarismo, exceção ao avanço do autoritarismo mirando a ditadura franca, se desmancham como bolha de sabão, a começar pelo desastre do PIB, indicador de nosso empobrecimento absoluto e relativo. O IBC-Br (mediante o qual o Banco Central que antecipa a previsão da taxa de crescimento do PIB) estimou em 0,8% a variação 2018/2019, contra os já lastimáveis 1,0% do ano passado. Considerando que a população cresce a 1% ao ano, fica claro que se trata de um “crescimento” vegetativo. O Boletim FOCUS, do mesmo BC, repercutindo os humores do dito “mercado”, prevê em 2,23% a taxa de crescimento do PIB para o próximo ano, indicador desastroso para país com a nossa desigualdade social obscena. Esses números já indicam regressão anunciando mais uma década perdida, e seu nível pode ser avaliado quando os comparamos, seja com as taxas mundiais, seja com os indicadores de países como o Vietnã e a Coreia do Sul, até há pouco economias agrárias e países devastados por guerras. Pois o Vietnã, virtualmente destruído por uma guerra de invasão que durou de 1959 a 1975, cresce hoje a 7% ao ano, e já ultrapassou o Brasil entre os maiores exportadores do mundo. Esse Vietnã que nos dá lições é um pequeno país, 66 vezes menor do que o Brasil, e tem a metade de nossa população. Lá, porém, o neoliberalismo não vicejou.
Mas os jornais e os telejornais afirmam que aumentou a confiança dos empresários nos rumos da economia, animados, todos, com o desmonte do Estado e a precarização do trabalho.
Entende-se a confiança deles, dos rentistas: apostam nas oportunidades abertas pela privatização do Estado e redução dos “custos” trabalhistas. Por que CNI, FIRJAN, FIESP etc. aplaudem o esvaziamento do BNDES, em tese seu aliado estratégico? Nossos empresários, semiletrados, evidentemente não leram Marx, portanto, ignoram que, no longo prazo, a redução de custos, que beneficia empresários individualmente, garantindo seus lucros, leva a uma crise estrutural.
Não há, na história do capitalismo, o registro de um só país que se tenha desenvolvido sem o concurso do Estado (como o demonstra o sucesso dos Tigres Asiáticos capitaneados pela China, e como demonstram os EUA), seja como agente regulador das forças de produção e do mercado, seja como vetor de investimento, pois se não há investimento público muitos menos haverá investimento privado, visto que este depende daquele, e das seguranças oferecidas pelas agências estatais. No mesmo sentido, o banqueiro Paulo Guedes não conseguirá indicar um só exemplo de país com as características brasileiras que se tenha desenvolvido sem a construção de um parque industrial na medida de suas necessidades, e não há nada, nem indústria nem desenvolvimento, se a economia nacional não tem como sustentáculo um mercado interno vigoroso.
Mas o bolsonarismo se aplica com denodo no desinvestimento e na desindustrialização, e o único instrumento de que se vale na administração monetária, via BC, é a redução da taxa Selic, que, se serve para diminuir os juros da dívida pública, pouco influi no Mercado, pois são outras, altas e altíssimas as taxas dos empréstimos bancários que contribuem para elevar os lucros dos bancos a níveis estratosféricos. O país se desindustrializa, nossa pauta de exportação regride aos anos 30, mas o bancos fazem a festa. O lucro do Santander subiu 17,4% em 2019, chegando a R$ 14,5 bilhões. E não se trata de fato isolado. No primeiro ano do capitão o lucro do Itaú cresceu 10,2%, alcançando a perturbadora cifra de R$ 28,4 bilhões. O lucro do Bradesco subiu 20%, atingindo o recorde de R$ 25,9 bilhões.
Isso ainda não é tudo, pois esses números não revelam lucros ainda maiores encobertos sob a forma de provisões pelo BC.
A outra ponta desse absurdo é a desindustrialização. A indústria brasileira encolheu 1,1%, e em face desse péssimo desempenho economistas não nominados ouvidos pelo Estadão passam a prever/defender nova queda de juros em março próximo, quando a alternativa seria a aplicação de maciços investimentos em infraestrutura, tecnologia e inovação, sem o que não teremos condições de competitividade em face dos concorrentes asiáticos ou europeus. O fato objetivo é que a participação da indústria nacional na formação do PIB, que já foi de 31% (em 1980) não passa hoje de 11,3%. E a FIESP, dirigida por arrivistas, é um dos sustentáculos da pauta Guedes-Maia!
O desempenho do comércio minguou em dezembro, mês das compras de Natal: caiu 0,8% no varejo ampliado, que inclui materiais de construção e veículos, linhas multiplicadoras de investimentos, emprego e renda. O setor de serviços, 75,8% do PIB, recuou em dezembro 0,8% na comparação com novembro. É sua segunda queda consecutiva.
O endividamento das famílias brasileiras aumentou 65,6% em dezembro e o total de consumidores endividados subiu 59% em relação a dezembro de 2018 (CNC).
E a grande mídia diz que a economia vai bem e que a “pauta Guedes” precisa ser aprofundada com mais ‘reformas’ e mais privatizações, porque o inimigo é o Estado desenvolvimentista.
O bolsonarismo, em sua subalternidade abjeta, escancara o país ao capital internacional e trombeteia aqui dentro a expectativa de grandes investimentos estrangeiros. A resposta à abertura unilateral e sem estratégia da economia tem sido a fuga recorde de dólares, que chegou a US$ 44,8 bilhões em 2019! O montante é o maior da História.
A soma de tanto desacerto dá como resultado mais informalidade e a expansão de precárias ocupações por conta própria – a luta improvisada pela sobrevivência, que os cínicos ousam chamar de empreendedorismo. O proletariado é substituído pelo precariado. O resultado está à vista de todos nas grandes cidades abarrotadas de sem-teto, adultos (na sua grande maioria ex-empregados, cada vez mais afastados da empregabilidade) e crianças entregues à barbárie do deus-dará. Pois neste país, assim miserabilizado, o bolsonarismo ainda impõe cortes ao programa Bolsa Família. Seu orçamento para 2020 terá R$ 3 bilhões a menos que em 2019, quando foi registrado o menor número de beneficiados, em oito anos. Segundo a FGV, nesse mesmo 2019 foram desligadas 900 mil famílias, enquanto permanecem na fila 3,5 milhões de desassistidos (Exame). À perversidade soma-se a burrice, pois, cada R$ 1,0 gasto com o Bolsa Família rende R$ 1,78 para a economia como um todo.
É preciso cuidar para não tomar a aparência pela realidade. Volto ao tema. Com isso quero pôr de manifesto o risco de nos iludirmos com certa cantilena de círculos liberais que intentam ver, no bolsonarismo, uma dicotomia entre o projeto autoritário e o neoliberalismo econômico arcaico, como se este, que afinal apoiam, pudesse sobreviver sem aquele, tanto quanto é essa política econômica (da qual Guedes e Maia são fiadores) que assegura o apoio do grande capital ao projeto protofascista. São vasos comunicantes, interdependentes, como ensina a lição chilena onde Paulo Guedes foi estudar como Chicago boy, e por isso mesmo é defendida pela unanimidade do que se chama a grande mídia brasileira, correia de transmissão dos interesses do grande capital nacional e forâneo.
Nem sectarismo, nem ingenuidade: é hora de ampliar a oposição ao bolsonarismo e todos os que a ele resistem frequentam o mesmo campo de luta, mas nenhuma oposição será consequente se ensarilhar armas diante do projeto de desconstrução da economia e do país, e de aprofundamento da pobreza e das desigualdades sociais.
Golpe no golpe – Está à vista a maquinação de um golpe de Estado dentro do golpe que impôs o bolsonarismo; seu objetivo é transformar o autoritarismo de hoje em uma ditadura franca de índole protofascista. O ‘Duce’, já foi escalado. E já se anunciam as marchas. Brasília poderá ser a nossa Roma, se as instituições permanecerem acovardadas. Os dados estão na mesa: ou impeachment, ou democracia. A unidade das forças democráticas é um imperativo histórico.
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Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia