Sexta, 21 de janeiro de 2020
Da
21/02/20 por Maria Teresa Cruz
Catarina de Almeida Santos afirma que militarização é a exacerbação do “escola sem partido” e desrespeita identidade dos estudantes, além de proibir o diálogo
Não é exatamente uma novidade a discussão de militarização das escolas no país. Mas é inegável que o assunto passou a chamar mais atenção depois que Jair Bolsonaro chegou à Presidência e adotou o tema como política nacional na área da educação, criando até mesmo a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares do Ministério da Educação.
Para Catarina de Almeida Santos, professora e pesquisadora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasilia, e coordenadora do Comitê-DF da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE), o processo de militarização já presente em muitas escolas do país é a concretização do projeto “escola sem partido“, porque despreza o debate, a individualidade e subjetividade dos jovens.
“A militarização da escola é o ato último e mais efetivo de apagamento da escola, de imposição do processo do patriarcado, do machismo, da naturalização do racismo. É a exacerbação do ‘escola sem partido’, que é a negação da escola, que, por definição, deveria ser um espaço de diálogo”, avalia Catarina, que pesquisa o tema de militarização da educação e afirma que é preciso questionar a constitucionalidade desse modelo.
Catarina afirma que educação e segurança são direitos sociais, mas que não podem ser confundidos. “Lugar de PM não é na escola. Nem ensinando, a menos que seja um policial com licenciatura, nem agindo de forma violenta na resolução de conflitos”, pondera. A pesquisadora se refere ao vídeo que mostra PMs intervindo dentro de uma escola pública em São Paulo, usando spray de pimenta e tirando dois estudantes a socos e pontapés de dentro da instituição.
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O caso aconteceu na última terça-feira (18/2), na Escola Estadual Professor Emydgio de Barros, no Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo, quando um aluno que não estava com o nome da lista de matriculados do período noturno se negou a sair da escola. A PM foi acionada pela diretora da escola, que foi afastada do cargo.
“Isso não é motivo para acionar a polícia. A não ser que o estudante puxasse uma arma, coisa que não aconteceu, ou que ele passasse a agredir alguém e a escola não conseguisse contê-lo. A arma mais poderosa que a escola tem será sempre o diálogo”, pontua Catarina.
A ideia de que a Polícia Militar é solução para a educação tem apoio popular e do governo federal, que pega carona nessa política populista justamente pela falta de compreensão do que realmente está em jogo.
“A polícia dentro da escola vai apagar o sujeito, apagar identidades, porque as escolas militarizadas impõem a regra do quartel, apaga a identidade da juventude, sobretudo da juventude negra, apaga a questão das mulheres trans, das lésbicas, dos gays. Não há espaço para isso”, explica.
Confira a entrevista:
Ponte – Lugar de PM é na escola?
Catarina de Almeida Santos – Nunca foi e não é por diferentes motivos. Primeiro, a gente precisa olhar a nossa polícia que é militar e militarizada, que tem vários problemas no desempenho da sua função. Educação e segurança são dois direitos sociais garantidos na nossa Constituição de 1988. E nós temos as bases legais que definem quem garante segurança e quem garante educação, dois direitos que a gente nunca garantiu de fato. Se formos olhar os problemas de segurança, eles aparecem muito mais no Brasil. A lógica da nossa PM, a forma com que atua, para quem ela é formada, é uma polícia que não dá conta de resolver aquilo para o que ela foi formada, e que não tem nada a ver com a escola. Nossa polícia sempre está agindo na reatividade. Ela é formada para tratar o cidadão, sobretudo determinados grupos de cidadãos, como inimigos. Quando você imagina que eu estou mandando para dentro da escola profissionais que são forjados para tratar esses cidadãos como inimigos, eu posso dizer que nossos inimigos são nossas crianças, jovens, adolescentes e que, por isso, a polícia precisa estar dentro da escola. A nossa polícia não tem formação e nem condições de trabalho, e essa é uma questão que não pode ser deixada de lado, porque a tropa é mal remunerada, mal equipada, há policiais que acabam adoecendo, basta ver os índices de suicídio entre policiais. Ou seja, não estão preparados para atuar dentro da escola.
Ponte – E como você avalia o vídeo gravada na escola em SP?
Catarina – Obviamente a forma com que a PM age não condiz com o papel que deveria exercer. Por exemplo, se um adolescente estivesse fazendo algo que colocasse em risco a vida dos demais, a polícia deveria estar preparado para imobilizar, impedir que esse adolescente colocasse os outros em perigo. O que ela faz? Coloca ele e os demais em perigo, inclusive apontando arma. Dentro de uma escola um policial jamais poderia usar uma arma. Fico pensando se aparecesse alguém armado e entrasse em confronto, começasse a atirar… O papel da polícia é o inverso. É impedir que isso aconteça. A polícia se mostrou despreparada para atender, se é que foi, uma chamada da escola. Se ela nem foi chamada dentro da escola, pior ainda. Mas ainda que seja chamada, ela precisa estar preparada porque está lidando com adolescentes, crianças, em um espaço fechado.
Ponte – No caso, a diretora chamou a PM porque um dos estudantes, que aparece no vídeo, não tinha encontrado o nome dele na lista. Ela queria que o aluno se retirasse da escola e ele se negou. Cabe lembrar que é uma escola que atende majoritariamente alunos negros e pobres…
Catarina – Por isso que eu falei, ela [Polícia Militar] é formada para tratar determinados grupos populacionais como inimigos. Esse policial chega dentro da escola acreditando que aqueles estudantes todos são bandidos, e não pensam isso porque eles fizeram alguma coisa, mas porque são negros, pobres, porque estudam na escola pública. Você identifica quem é mocinho e quem é bandido pela cor da pele, pela aparência, pela escola que estuda. Do jeito que nossa polícia é, ela cria provas para cobrir ilegalidades e abusos que possa ter cometido. Ela é formada para isso e essa é a questão. Eu não olho simplesmente aqueles trabalhadores policiais que aparecem no vídeo como os responsáveis. Eles recebem comando, eles são demandados para fazer aquilo. A formação deles é para criminalizar pela cor da pele, classe social. Não é uma ação individual do policial, tanto que você tem um agindo e os outros colaborando. Todos vão pra cima do adolescente. Você tem a análise de uma cena em que as únicas pessoas que não estão cometendo nada de errado são justamente aqueles que estão sendo imobilizados, ou seja, os estudantes.
Ponte – Nesse caso, acionar a polícia seria a última medida a ser feita?
Catarina – Não tem alternativa para chamar a polícia numa situação dessas. Até porque, pelo que você conta, o jovem estava exercendo o direito dele de estudar. O papel dela era conversar, ir atrás e tentar resolver no diálogo, e não chamar a polícia. E esse é um problema que temos com a anuência de profissionais da educação defendendo a militarização das escolas. A escola só é escola se ela for espaço de diálogo. Numa situação dessa, ela precisa buscar alternativas para que ele tenha o direito de estudar garantido. Isso não é motivo para acionar a polícia. A não ser que o estudante puxasse uma arma, coisa que não aconteceu, ou que ele passasse a agredir alguém e os funcionários não conseguissem contê-lo. A arma mais poderosa que a escola tem será sempre o diálogo. O processo de formação só se dá através do diálogo. Não posso pensar em processo formativo através da violência. O papel dessa diretora seria providenciar a vaga, procurar saber com quem ele havia falado e procurar essa pessoa, enfim, buscar uma solução. É muito lamentável que um profissional da educação não consiga dialogar com um jovem que está querendo estudar, como aparentemente foi o que aconteceu. A escola exercer papel de polícia é muito ruim. Quando você está numa escola de alta vulnerabilidade, o trato e o cuidado devem ser maiores ainda.
Catarina de Almeida Santos estuda a militarização das escolas no Brasil | Foto: arquivo pessoal
Ponte – Como assim?
Catarina – Me lembro quando comecei a dar aula foi numa escola no bairro da Vitória, em Goiânia, um local tão abandonado que o único equipamento público que tinha no bairro era exatamente esse colégio. Era o lugar onde os estudantes se sentiam seguros e nós fazíamos de tudo para dialogar com eles, e usávamos isso para que eles estudassem. Tinha uma política da escola de sempre acolher, jamais expulsar o jovem ou dar suspensão, porque seria uma bonificação. O que fazíamos era dialogar. E eles protegiam a gente, porque eles entendiam que nós éramos as pessoas que mais confiavam neles, que mais cuidavam deles, e que davam aulas para eles sem julgamentos. A relação da comunidade com a escola quando a instituição é verdadeiramente para o bem comum é outra. Nessas áreas de alta vulnerabilidade é importante que a gente trabalhe a auto estima dos estudantes, olhe com carinho o caso dos que precisam trabalhar e mudar de turno, porque, caso contrário, você vai acabar jogando esse jovem para fora da escola e ele poderá, por exemplo, se envolver com crime.
Ponte – Existe um modelo viável de escola militarizada?
Catarina – Não, porque todas as escolas militarizadas, inclusive o programa do MEC, são ilegais, inconstitucionais. Não existe na Constituição brasileira, na Lei de Diretrizes e Bases [LDB], nenhuma previsão de policiais agindo dentro da escola, seja como professores ou gestores. A não ser que ele seja formado em licenciatura e faça concurso para professor. A emenda constitucional 101 de 2019 deu aos policiais o direito de ter duas funções. Mas é o direito de atuar, isso não faz ninguém professor. A LDB vai trazer os princípios da educação nacional e lá não há nada que mencione a PM na escola. As nossas escolas militares seguem um conjunto de regras da corporação. A LDB prevê que o ensino militar será regido por lei específica, mas isso é o ensino que forma os militares, o ensino da academia de polícia. As escolas militares que formam dependentes desses militares e civis são escolas regidas pela LDB, que vai dizer quem são os profissionais da educação, a formação que esses profissionais devem ter e que ele precisa ter experiência na área de docência. Essa lógica de colocar militares dentro da escola para fazer gestão administrativa, pedagógica, disciplinar é inconstitucional, porque os profissionais dentro da escola precisam ser da educação. Não há base legal no Brasil para isso. Todos os projetos de militarização são inconstitucionais.
Ponte – E por que continuam crescendo?
Catarina – Vivo esperando o momento de o poder público entrar no Supremo Tribunal Federal para questionar as militarizações dentro da escola. Há uma crença de que o projeto se desgasta por si só, o que é um equívoco sem tamanho, porque ele só cresce, tem anuência da população, por estarmos numa sociedade conservadora, porque o governo vende isso como a grande solução para a qualidade da educação e para escola segura, e não estamos conseguindo debater com a sociedade que polícia não é insumo de qualidade nem de segurança porque ela tem que ser garantida primeiro fora da escola, o que não está acontecendo. É preciso também entender que há escolas militarizadas no país que estão em áreas de vulnerabilidade e que o PM que está lá dentro é o mesmo que vai matar os jovens que estão estudando nela. A gente não desenvolveu uma capacidade e uma compreensão crítica do que estamos fazendo e para onde estamos indo.
Ponte – Qual o tipo de compreensão que falta?
Catarina – Você vê professores e diretores que querem a polícia dentro da escola como forma de controlar jovens que estão insatisfeitos com o modelo de educação que está sendo oferecido para eles. A polícia não vai melhorar a escola. Ela vai apagar o sujeito, apagar identidades. As escolas militarizadas impõem a regra do quartel, então você vai ter que ter determinado corte de cabelo, você vai ter que se vestir de tal forma, não pode usar brinco. Você apaga a identidade da juventude, sobretudo da juventude negra. Você apaga a questão das mulheres trans, das lésbicas, dos gays. Nada disso vai ter espaço nessa escola. Os dados mostram que é uma escola que exclui aquele que não se adapta à lógica do quartel, quem não rende. Ela se sustenta, inclusive, por causa dos resultados no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). Para ter esse Ideb, eles tiram aqueles que consideram “aluno-problema”, desprezando qualquer tipo de inclusão. Ou seja, é a ideia do “eu tiro, excluo, escolho com quem quero trabalhar, vou dar aula para os melhores e entrego os resultados”. Tudo isso para justificar que a polícia dentro da escola resolve o problema.
Ponte – Quais modelos de militarização existem no país?
Catarina – Há muitos modelos de militarização. Se você olhar o termo de cooperação de alguns locais, assinado entre prefeituras e o comando da polícia militar, vai ver que está previsto que a PM implemente a chamada “metodologia de ensino dos colégios militarizados”. Na Bahia, por exemplo, a cláusula primeira desse termo diz explicitamente que não poderá ser oferecido ensino para jovens e adultos e alunos com distorção de idade e série. Você imagina isso? O poder público assinar um documento desse, com uma cláusula dessa, que fere o direito à educação de morte. São essas pérolas que a gente encontra. Tem uma escola na Bahia que, depois que foi militarizada, trocaram as portas de madeira por portas de vidro, para vigiar professores e alunos. A militarização transforma a escola em quartel, porque você tem que bater continência, fazer hora cívica, crianças ficam estressadas porque toda hora precisam colocar a blusa dentro da calça. A juventude tem na vestimenta um forte elemento de identidade, de práticas culturais. Tudo isso tem que acabar. Em Ceilândia [cidade do Distrito Federal], há uma escola militarizada em que alunas queriam fazer um debate sobre feminicídio e a polícia disse simplesmente que não. É importante também dizer que a militarização não tem cor de bandeira partidária. Eu acho que a militarização da escola é o ato último e mais efetivo de apagamento da escola, de imposição do processo do patriarcado, do machismo, da naturalização do racismo. Impossível não lembrar da “escola sem partido”, que queria, na verdade, implementar isso. Todos os problemas da nossa sociedade são pouco debatidos no ambiente escolar e a polícia vai impedir objetivamente que isso seja debatido. Como vamos formar cidadãos menos racistas, menos machistas se não debatermos? E o genocídio da população negra, que atinge esses alunos de escola pública, onde isso será debatido. Formar outra mentalidade para todas essas questões passa pelo ambiente escolar. E militarizar é dizer: não vamos debater nada disso. A “escola sem partido” era isso. É uma escola que não toma partido de nada. É a exacerbação do “escola sem partido”, que é a negação da escola. Ninguém militariza escola privada. Só escola pública e isso não é apenas para controlar, mas para expulsar, para negar esse direito àquelas a quem já é negado uma série de coisas na nossa sociedade.