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(Millôr Fernandes)

terça-feira, 5 de julho de 2022

ALEXANDRE DUGIN: A LIBERTAÇÃO DA ECONOMIA — 2ª PARTE: Brasil - Estado laico para povo religioso.

Terça, 5 de julho de 2022

ALEXANDRE DUGIN: A LIBERTAÇÃO DA ECONOMIA - 2ª PARTE


Escrito por  Felipe Quintas e Pedro Pinho


Brasil — Estado laico para povo religioso. 

 

As elites do Rio de Janeiro não toleram que os filhos da pobreza tenham escola no mesmo nível da classe média, os CIEPs” (Centros Integrados de Educação Pública, criados nos Governos de Leonel Brizola no Estado do Rio de Janeiro: 1983 a 1987 e 1991 a 1994), palestra de Leonel de Moura Brizola, na Universidade de Campinas (UNICAMP), 1987. 

 

Em junho de 2022, duas mortes na Amazônia Brasileira repercutiram na população nacional e na de outros países. Foi bastante politizada esta questão, mas ficou de fora a principal razão dos assassinatos: a Amazônia Brasileira, que representa 59% da extensão do País, é um território sem governo, não há Estado, é o “mercado” que governa estes 5.023.850 km² do Brasil. 

Os jornalistas livres (jornalistaslivres.org) elaboraram esclarecedor comentário sobre as mortes do indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips: 


“como é possível que, numa região fortemente militarizada, que conta com as presenças ostensivas de uma Delegacia Geral da Polícia Civil, uma Delegacia da Polícia Federal, um batalhão da Polícia Militar do Amazonas, um presídio estadual, um efetivo da Força Nacional do Brasil, um Destacamento de Controle do Espaço Aéreo de Tabatinga, um Comando de Fronteira do Exército (8º Batalhão de Infantaria da Selva), uma Capitania dos Portos da Marinha do Brasil e uma unidade do Corpo de Bombeiros Militar do Amazonas, as principais atividades econômicas sigam sendo o contrabando, o garimpo ilegal e o narcotráfico? Quem compra e vende o ouro nas lojinhas espalhadas do Alto Solimões e do Vale do Javari?” 


E eles respondem: “a FD Gold, de propriedade de Dirceu Frederico Sobrinho, presidente da Associação Nacional do Ouro (Anoro), fica na Avenida Paulista, coração financeiro de São Paulo. Em maio/2022, a FD Gold declarou-se proprietária de 77 kg de ouro encontrados em avião em Sorocaba (SP). A carga avaliada em 23 milhões de reais estava sendo escoltada pelo tenente-coronel Augusto Tasso, da Casa Militar do governador de São Paulo, Rodrigo Garcia (PSD), responsável pela segurança do governador”. 


A luta que se abre diante do Brasil, e não apenas de nosso País, mas de muitas nações do mundo é pela autonomia, pela soberania nacional e pelo desenvolvimento conforme a cultura da população entenda. O sistema plurinacional só sobrevive com respeito às nacionalidades e estas com as organizações definidas por suas culturas. 


Têm-se, então, duas questões interligadas: as culturas desenvolvidas em territórios definidos e as estruturas organizacionais dos Estados Nacionais.

 


A condição física do homem é, sem dúvida, universal: mamífero, bípede, dotado de inteligência e consciência. No entanto, o homem é um ser social, como também o são inúmeros insetos e animais. É na condição de ser social que o homem encontra suas peculiaridades ou diferenças. Estas características diversificadas surgem de sua inserção em diferentes meios físicos e sociais; ou seja, onde nasce e se desenvolve o ser humano.

 

Antônio da Silva Mello (1886-1973), cientista e acadêmico mineiro, já apresentava este aspecto da diversidade humana, utilizada pela pedagogia colonial, na dominação dos povos por aqueles nascidos no Atlântico Norte. Em “A Superioridade do Homem Tropical”, 1965, leem-se as seguintes passagens:  


“Os problemas aqui discutidos devem ser muito mais complexos do que em geral são admitidos. É natural que, justamente devido à sua complexidade e à sua imprecisão, muitos autores sejam levados a simplificá-los, mormente não podendo considerar senão alguns fatores existentes, jamais tomados na sua totalidade”. 

 

Os fato de os europeus, conquistando regiões tropicais, serem mais afligidos por enfermidades do que quaisquer nativos, indica, na realidade, “que o homem tropical conservava e desenvolvia a sua resistência ou a sua imunidade, enquanto os habitantes das zonas frias iam-nas perdendo progressivamente”, e conclui este médico, como tantos outros, levados ao estudo da antropologia: “o homem dos climas quentes é o autêntico criador da humanidade, aquele que possibilitou a sua sobrevivência e o seu desenvolvimento”. E afirma: “trópico e calor não têm significação unitária”. 

 

Outro médico, Arthur Ramos de Araújo Pereira (1903-1949), também estudioso do homem, este sendo o habitante do Brasil, escreve no volume II da “Introdução à Antropologia Brasileira”, “As Culturas Indígenas”, 1943: 


“Quando os europeus descobriram o Novo Mundo, em fins do século XV, nele encontraram nova humanidade completamente desconhecida. Colombo e seus companheiros ficaram admirados de que sobre eles não houvesse referências nem na Bíblia nem nos escritos dos filósofos de qualquer época”. E acrescenta Arthur Ramos: “num estudo sobre o Índio Brasileiro, convém examinar a sua filiação à grande família americana como um todo, porque há problemas comuns, como este das origens”. 


Aos habitantes primitivos, agregaram-se os ibéricos, especialmente os portugueses, e outros europeus, os africanos de diferentes etnias, prevalecendo as da costa atlântica, além de asiáticos, do extremo e do médio oriente, árabes, judeus e eslavos. Formou-se, no Brasil, a civilização miscigenada como só houvera no passado na cidadania romana. Daí Darcy Ribeiro ver, em nosso País, a “nova Roma”. 


Cada componente da formação brasileira trouxe muito mais do que a aparência física, trouxe saberes, mitos, tradições, tudo que se enfeixa na compreensão de cultura. 


O constitucionalista português José Gomes Canotilho (1941) escreveu, em 2006, “Brancosos e Interconstitucionalidade – Itinerários dos Discursos sobre a Historicidade Constitucional”, publicado pela Edições Almedina. Já o título da obra nos leva a algumas reflexões. “Brancosos” retoma o Prêmio Nobel da Literatura (1998), José Saramago (1922-2010) no romance “Ensaio sobre a Lucidez” (2004). Os brancosos eram os que votavam em branco, os subversivos, que não escolhiam qualquer partido do “arco democrático”, da direita à esquerda, renunciando “escolher as escolhas escolhidas”. Os brancosos começaram por rejeitar produtos acabados de consumo, não liam jornais oficiais, não viam televisão, assistiam filmes ou ouviam músicas que eram oferecidas pelas mídias. Criavam comunidades eletrônicas para questionarem as mesmas comunidades eletrônicas.  


Canotilho recorda o constitucionalista estadunidense Cass Sunstein (1954) que começa seu livro “Republica.com” (2001): “It is some time in the future. Technology has greatly increase people's ability to filter what they want to read, see, and hear” (“É algum tempo no futuro. A tecnologia aumentou muito a capacidade das pessoas de filtrar o que querem ler, ver e ouvir”, tradução livre). 


Interconstitucionalidade enfrenta o intrincado problema da articulação entre constituições de fontes e legitimidades diversas. “A interconstitucionalidade é a expressão da intraorganizatividade”, que nos leva à governança transnacional, à boa governação, à governação responsável e chega aos mandamentos do Consenso de Washington (1989). Nada mais, nada menos do que a imposição constitucional do neoliberalismo, do “mercado”, às constituições europeias. E chegam aos países colônias. 


Trata-se ao fim de articular o individualismo, como liberdade e democracia, com as tecnologias mais contemporâneas da informação, e em um contexto jurídico sistêmico, que resulte na sociedade econômica de mercado. 


Como romper com estas trancas: religiosas, filosóficas, institucionais e com pitadas de humanismo seccionados por etnia, sexo e ambientalismo, dominados pelo capital financeiro apátrida? 


“A ideia de um mundo multipolar, onde o número de polos e civilizações é o mesmo, oferecerá para a humanidade grande gama de alternativas culturais, filosóficas, sociais e espirituais” (Alexandre Dugin, “Quarta Teoria Política” (2009), traduzido por Fernando Fidalgo, Gustavo Bodaneze e Raphael Machado para Editora Austral, Curitiba, 2012). 


Temos nesta ideia de Dugin dois elementos centrais para os quais discorreremos: o nacionalismo, pensado na matriz civilizatória específica de cada povo, e um valor não econômico permeando e orientando a organização institucional do Estado Nacional. 


Carl Schmitt trabalhou nos extremos. Em sua obra “O Conceito do Político” (“Der Begriff des Politischen”, 1932), a soberania surge como conceito limítrofe, no sentido que associam as formas administrativas às situações que se encontram, ou seja, no limite de sua existência ou possibilidade. No caso brasileiro permitiria associar a ditadura militar dos anos 1964 a 1985 aos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Em ambos os casos o discurso foi de um momento crítico, exigindo ações extremadas. Apenas a competência dos membros do governo Bolsonaro é imensamente inferior a dos governantes daquele período militar. 


Os Atos Institucionais da ditadura são hoje os orçamentos secretos da corrupção parlamentar. A força das armas foi substituída pela força das finanças. Ambas descendentes de “l’État c’est moi”. 


Voltemos a Fichte no “Fundamento do Direito Natural segundo os Princípios da Doutrina da Ciência”, já citado. Este pensador alemão busca ligar a individualidade do homem à existência dos Estados, e a possibilidade de vários Estados acordarem numa garantia comum: “chamo a isto a fórmula de uma confederação, pois, aquilo que descrevemos seria uma liga de povos, não um Estado de povos. A diferença baseia-se no seguinte: o indivíduo pode ser coagido a entrar no Estado, pois, caso contrário, não é de todo possível estabelecer com ele uma relação jurídica. Mas nenhum Estado pode ser coagido a entrar nesta confederação, pois pode também achar-se numa relação jurídica fora dela. O Estado estabelece uma relação jurídica com os Estados vizinhos pelo mero fato de os reconhecer e celebrar com eles o contrato: nenhum Estado tem o direito de coagir outro Estado para que este lhe proporcione proteção positiva. Trata-se, pois, de uma associação voluntária que, de modo algum pode vir a ser fundada por coação, e uma tal associação chama-se uma confederação”. 


Desenha-se, portanto, a soberania dos Estados e a multipolaridade mutuamente consentida. Fichte, nestas reflexões, mais parece criar uma teoria geral do Estado do que expor o fundamento do direito natural. 

 

*Felipe Maruf Quintas, cientista político, e Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.