Sábado, 5 de novembro de 2022
“O Brasil tem um potencial para o atraso e para a violência muito grande, que anos de governos mais ou menos civilizados não foram capazes de reduzir”.
Maria Hermínia Tavares (Valor, 28/10/2022)
Roberto Amaral*
O pronunciamento da soberania popular no último 30 de outubro deu um basta a um governo em guerra contra o país. Mas, acima de tudo, afastou do horizonte visto a olho nu a mais grave ameaça à democracia desde a intervenção militar de 1º de abril de 1964, ao impedir a instauração da pior das ditaduras, aquela que se instala com o respaldo do pronunciamento eleitoral, e se legitima na ordem constitucional permanentemente revista segundo seus interesses. Há, pois, muito o que comemorar, e muito que agradecer à ação dos militantes, decisivos em momento de inédita e radical polarização política.
A presença dos movimentos populares — profunda, inédita, multifacetária, emocionante — foi decisiva, contrapondo-se à força descomunal do poder (do poder público e do poder econômico à manipulação religiosa a mais abjeta), mobilizada nestas eleições de forma jamais experimentada em nosso país, mesmo nos idos da República Velha, cujos vícios alimentaram levantes militares e a revolução de 1930. Essas eleições mexeram com a alma da sociedade brasileira.
Os exemplos mais conspícuos de tomada do poder pela extrema-direita ainda são os do fascismo e do nazismo, ambos seguindo ritos constitucionais, nenhum na coroa de golpes de força. Mussolini, que ascendera à crista da onda como líder dos fasci, movimento paramilitar financiado por industriais e latifundiários para dar cabo às organizações dos operários italianos no pós-guerra, foi, em 1922, nomeado primeiro-ministro pelo rei Vítor Emmanuel III. Hitler, em 1935, foi nomeado chanceler (primeiro-ministro) por Paul Hindenburg, presidente alemão socialdemocrata. A iminência da ditatura constitucional, antecipada pela maioria conservadora de direita e extrema-direita do Congresso que emergira das eleições legislativas brasileiras, era a ameaça com a qual nos acenava a possibilidade concreta de reeleição plebiscitária do ex-capitão, rejeitada ao cabo do pleito dramático.
Há muito o que comemorarmos, ainda sem perder de vista que estamos apenas no início do enfrentamento de um grande desafio. A eleição de Lula — ao derrotar o mais abusivo e criminoso concurso de recursos públicos e privados em um processo eleitoral — estabelece um divisor de águas entre a ameaça do revés democrático (mediante a revogação do pacto constitucional de 1988) e a esperança de reconstrução nacional; mas deve ser vista, particularmente pela esquerda brasileira, como ponto de partida: sem ela, o futuro imediato seria uma ditadura protofascista; com ela, a história nos acena com a revitalização democrática que, dependendo do que fizemos, nos poderá retornar, no médio prazo, os sonhos de construção de uma sociedade fundada na igualdade social, que perseguimos como objetivo final da política.
No quadro de nossos dias, fracassado o golpismo no qual o bolsonarismo apostou até a 25ª hora, a posse de Lula, que chegou a ser ameaçada, pode ser dada como fato concreto — para o que concorreram a qualidade do sistema eleitoral, a mobilização popular e a imediata solidariedade da comunidade internacional, concertada num pronunciamento praticamente unânime, ao reunir no mesmo e entusiasmado aplauso, entre muitos outros mandatários, Emmanuel Macron, Vladimir Putin, Joe Biden, Xi Jinping, Alberto Fernández e Olaf Scholz. Nossa história presente deve mais esse serviço ao sempre chanceler Celso Amorim.
O conglomerado de interesses poderosos que se costuma alcunhar de “sistema” se pronunciou, logo cedo, na voz e nas imagens do Jornal Nacional da Rede Globo na noite do dia 31/10, e a comunidade política entendeu o recado, ao responder com acenos ao diálogo. O capitão, sem tropa e sem pólvora, encerrou seus dias de presidente na terça-feira 1º de novembro, ao reconhecer o fiasco do levante dos caminhoneiros, por cujas consequências desestabilizadoras da ordem institucional esperara por três longos dias, como Jânio Quadros (a primeira vitória eleitoral da direita brasileira) esperara, em 1961, igualmente em vão, pelo levante das ruas que o levaria de volta a Brasília. Terminou, só, embarcando em um navio cargueiro, e foi tratar de sua solidão na Europa. Resta ao ex-capitão, sob a vigilância das instituições (que se omitiram ao não coibirem seus escandalosos crimes eleitorais), seguir o exemplo do general Figueiredo e abandonar o Alvorada pela porta dos fundos. Os espetáculos dessa semana patrocinados por uma massa fanatizada, cujos limites não sabemos mensurar, tendem a esvaziar-se com o passar dos dias, em face do recuo de seu ativador.
Nos bastidores, onde segue a vida conduzindo a política, permanecerão as disputas pela definição do eixo condutor do governo Lula, naquilo que ele tem de essencial para a Faria Lima. O debate já está na imprensa e procura ditar o que deve ser o programa econômico do novo governo. A pré-transição consumirá esses quase dois meses que nos separam da posse tão desejada de Lula, pois a transição política propriamente dita cobrará o primeiro ano do governo, com a experiência daquele que será necessariamente o primeiro ministério (ou “ministério tentativo”) do terceiro mandato de Lula, as composições partidárias e as eleições das mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. A fase dos ajustes, inclusive programáticos. Nesse sentido, o governo Lula será um governo por definir-se no seu próprio processo de ser. As circunstâncias ditam seu caráter de conciliação nacional, já anunciado pelo presidente eleito em seu belo discurso ainda na noite do dia 30, no encontro com a imprensa internacional. Governo de coalizão, tenderá à moderação (pelos condicionamentos do processo social, pelas exigências da história presente e a prática de seu líder) e porque não terá, ao instalar-se, maioria para impor seu programa a uma sociedade dividida e a um Congresso que, de natureza historicamente conservador, desde o Império, é o mais reacionário em toda a República.
A frente ampla da campanha não chegará à posse, pois sobrelevará a frente ampla da governabilidade, que compreenderá parte da frente eleitoral, à qual se somarão, entre outros, a entente com os partidos, a construção da base parlamentar sem a qual não governará, como não governou Dilma, e os reajustes com a caserna, vistos pelas mesmas lentes que cuidarão da crise econômico-fiscal, das carências sociais, do desemprego e da fome de milhões de brasileiros. O governo Lula precisará de força e pertinência (e apoio popular) para enfrentar a criminosa partidarização dos quartéis, a politização e insubordinação das forças policiais em todos os níveis. Caber-lhe-á salvar o meio ambiente, restaurar a saúde pública, combater a sagração de Tânatos e do negacionismo, restaurando a defesa da vida e a paixão pela inteligência.
Todas essas tarefas são cobradas com urgência e, é preciso lembrar, devem ser levadas a termo de par com a convivência civilizada, em um mundo em crise política e econômica marcada pela queda de renda dos países dependentes das exportações de commodities (como o Brasil, que renunciou à industrialização), um mundo em guerra que opõe EUA e Eurásia na disputa de hegemonia. E ao mesmo tempo um mundo que, após Trump, vê crescer na Europa (em crise) a ascensão da extrema-direita: Itália, Polônia, Hungria, Turquia, Suécia, além do retorno da extrema-direita em Israel, pequenino país armado até os dentes.
Em face das circunstâncias, assomam os desafios da esquerda brasileira. Cumpre-lhe a sustentação do governo Lula, após uma campanha na qual não lhe foi dado sustentar a temática econômico-social, a única que a favorecia porque é a que favorece a formação da consciência de classe dos assalariados. E cumpre-lhe rever-se para o enfrentamento político e ideológico do pensamento e da ação da extrema-direita (além do assédio da “direita bem-comportada” que nos acompanhou principalmente no 2º turno, e nos acompanhará no governo). A onda de extrema-direita (de que a votação de Bolsonaro é apenas um indicador) é ciclo que veio para conviver conosco por muito tempo, donde não poder ser vista como “um ponto fora da curva”, senão como um dado do processo social brasileiro que guarda lógica com nossa formação de país, povo e nação, da qual resultou a sociedade brasileira que descobrimos conservadora.
O desafio não é desprezível, porque não são desprezíveis a emergência da extrema-direita e sua permanente capacidade de mobilização. Pela primeira vez a extrema-direita, além de organizada e assentada em bases populares, dispõe de uma liderança carismática que não emerge da elite e cujo discurso repercute na caserna. Essa extrema-direita vai confrontar o governo Lula, e nós precisamos derrotá-la.
* Com a colaboração de Pedro Amaral
Os textos de Roberto Amaral podem ser encontrados em www.ramaral.org.