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(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Reflexões para Teoria do Estado Nacional: o Estado, a crítica

Quinta, 3 de novembro de 2022



Reflexões para Teoria do Estado Nacional: o Estado, a crítica

Por Felipe Quintas e Pedro Augusto Pinho.*



Fundamentado em ideologia desenvolvida por pensadores brasileiros

Conceituar o Estado é inicialmente colocá-lo dentro de um corpo teórico. A que grupo de ciências devemos atribuir o estudo do Estado? Onde se verifica a existência do Estado?

O grande mestre António Manuel Hespanha (1945–2019), em uma de suas últimas obras — Caleidoscópio do Direito — O Direito e a Justiça nos dias e no mundo de hoje (Edições Almedina, Coimbra, 2007) — com fino humor, nos descreveu: “O mundo está cheio — cada vez mais cheio — de senso comum, de imagens feitas, de ideias recebidas e repetidas acriticamente, de uma ditadura doce dos meios de comunicação social que, além de confundir simplicidade com simplificação, torna automaticamente aceites os pontos de vista mais problemáticos.”

E recomenda este professor em Portugal, na França e membro do Instituto Histórico-Geográfico do Rio de Janeiro, “é necessário ver para além das aparências”.

O mundo foi tomado pelo economicismo desde o início da Idade Moderna, quando surge o capitalismo, e se aguça há dois séculos quando “bancos passaram a controlar grandes empresas estadunidenses e europeias. Os financistas passaram a dominar as empresas, e os industriais foram transformados em diretores assalariados, delegados dos verdadeiros proprietários. O capitalismo financeiro ou monopolista apresentou modelos fundamentais, o domínio da indústria pelas inversões bancárias; a formação das grandes reservas de capitais; a distinção entre a propriedade particular dos dirigentes da empresa e o patrimônio e a responsabilidade econômica da organização. Mas a maior característica do capitalismo financeiro ou monopolista foi a expansão Imperialista” (Lilian Aguiar, “O Capitalismo Financeiro”, em brasilescola.uol.com.br/historiag/o-capitalismo-financeiro.htm, acesso em 13/9/2022).

Nesta série de artigos, que hoje inicia sua quarta e última parte, foram examinadas, nas páginas do Monitor Mercantil, na perspectiva histórica da filosofia e da ciência política, as transformações do Estado e os conceitos que lhe são usualmente aplicados. Parte específica foi dedicada ao Brasil.

Seguindo a recomendação do mestre Hespanha, devemos proporcionar consistência à proposta do Estado Nacional, contemporâneo, participativo, e colocá-lo, onde se devem encontrar as definições, no campo das ciências da sociedade: da política, da ordem jurídica e da administração.

Primeiro, porque o Estado é uma criação da sociedade humana e porque esta sociedade se estrutura, se define, por regras positivas de convívio e organização. Segundo, porque as principais funções do Estado Nacional devem estar explícitas em sua estrutura orgânica.

O que seja o Estado Democrático gera debate inconclusivo e tende a ser utilizado para múltiplas formas de gestão.

O Estado que se pretende estruturar tem fundamento em ideologia desenvolvida por pensadores brasileiros e teve o teste de eficácia em administrações nacionais, de Estados grupados na unidade nacional e na aceitação popular em votações.

O Direito não recai sobre conceitos abstratos, ensina o jurista e político baiano Hermes Lima (1902–1978), mas “é produzido segundo as condições sociais de cada época e a técnica legislativa adotada” (Introdução à Ciência do Direito, Cia. Editora Nacional, SP, 1933). E adiciona o mestre: “O homem não procede como se fosse soberanamente conduzido por sua vontade subjetiva ou sua imaginação.”

Desta obra citada: “A consciência não retira das próprias entranhas qualquer conhecimento específico e idôneo para dirigir e modelar autonomamente a realidade. Portanto, o mundo cultural não é criação autônoma do espírito ou da consciência. Nem espírito nem consciência inventam a matéria social, a matéria com que se constroem os sistemas de vida, a ordem pública.”

O Estado Nacional que iremos descrever é especificamente destinado ao Brasil, e nisso que denominamos nacional, e tem sua fonte de riqueza, de produção de energia, de bens, de saber, da satisfação humana no trabalho, sendo, portanto, Estado Nacional Trabalhista.

Ele não será idêntico a qualquer outro, mesmo que erigido em bases nacionais trabalhistas, porque a realidade deste que trataremos está circunscrita ao território e à cultura do Brasil e de seu povo.

Como se forma o Estado é um ponto de interrogação na ciência da sociedade humana. Quando os homens precisaram dos deuses, houve uma teoria do poder transferida pelos céus, pelo imaterial, divino; surgiu o Estado Teocrático.

O século 20 presenciou a revolução metodológica. A ciência deixou de ser a verdade para ser uma probabilidade.

Edgar Morin (La Méthode, Édition du Seuil, Paris, 2006, seis volumes) discorre sobre esta nova “Teoria Geral da Ciência”, trazida por Claude Shannon, Gregory Bateson, John von Neumann, Ludwig von Bertalanffy, Norbert Wiener, William Ross Ashby e outros pesquisadores de nossa era sistêmica-informacional-termonuclear.

A ciência da sociedade humana não ficou a largo; mudaram a sociologia, a ciência política, a psicologia, o direito, a administração.

Roy Reis Friede, magistrado e professor no Rio de Janeiro, no Curso de Ciência Política e Teoria Geral do Estado (Freitas Bastos Editora, RJ, 2013, 5ª edição revista e ampliada) apresenta “diagrama” onde a formação originária do Estado se dá naturalmente (não contratual) ou artificial, forçada (contratual).

O professor de Filosofia do Direito e de Direito Público, na Universidade de Erlangen-Nuremberg, alemão Reinhold Zippelius, no “Prefácio” da 1ª Edição (1968) de sua Teoria Geral do Estado (tradução de António Cabral de Moncada, da 3ª edição do original Allgemeine Staatslehere, 1971, para a Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1984, 2ª edição) esclarece que “a ciência do Estado não pode oferecer-nos um sistema plano e isento de contradições do qual se possa obter a resposta exata e definitiva a todas as perguntas que a respeito do Estado se levantam”.

Porém, este mestre alemão, também nos tranquiliza, pois, “se um tratamento científico do Estado não nos pode fornecer um sistema cerrado de ideias, pode, contudo, dar-nos o conhecimento de certas leis da experiência, de determinadas estruturas típicas e polaridades, de certos conceitos de ordem”. E adianta que “a política é a arte de saber avaliar as diferentes possibilidades e extrair, do grande reservatório dos conhecimentos e dos diversos modelos de pensamento, aqueles que melhor possam servir os problemas concretos em questão”.

A ideia de o Estado ser o povo politicamente organizado em território determinado é contestada na prática neoliberal, vigente a partir da década de 1980.

A ideologia da globalidade coloca no “mercado” a identidade do mundo, e este mundo globalizado não se distingue por direitos diversos, mas pela subordinação da sociedade a leis econômicas, suplantando ou promovendo o reducionismo dos aspectos culturais.

Existe a contradição de uma liberdade individual praticamente absoluta, como descreve Friedrich August von Hayek (O Caminho da Servidão, tradução de The Road to Serfdom (1944), por Leonel Vallandro, para o Instituto Liberal. RJ, 1984), “reconhecendo o indivíduo como juiz supremo dos próprios objetivos” e da vida em sociedade, ainda que sob a proteção do Estado.

O filósofo alemão Johann Gottlieb Fichte seria um não contratualista, ou seja, um seguidor do Direito Natural. Mas não pode fugir, como veremos, da ideia que o conceito de contrato esteja “como uma vontade permanente que dirige todas as ações futuras das partes, enquanto lei do direito, é a relação jurídica futura entre elas”.

E “se uma das partes ultrapasse, no mínimo que seja, os seus limites o contrato fica anulado e fica abolida toda relação por ele fundada” (J.G. Fichte, Fundamento do Direito Natural segundo os Princípios da Doutrina da Ciência, tradução de José Lamego do original alemão – 1796 – para Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012).

Prossegue o filósofo alemão: “O contrato de cidadania deve introduzir uma relação jurídica universal, sendo necessário que cada indivíduo se ponha de acordo com todos os demais indivíduos sobre a propriedade, os direitos e as liberdades que ele deve ter e, em contrapartida, sobre os que deve renunciar”, estabelecendo assim um direito constitucional.

O grande constitucionalista português José Joaquim Gomes Canotilho nos apresenta as melhores reflexões sobre a questão da Constituição como o elemento contratual de afirmação do direito sobre um Estado. De sua volumosa obra, selecionamos Brancosos e Interconstitucionalidade – Itinerários dos discursos sobre a historicidade constitucional (Edições Almedina, Coimbra, 2008).

Já no título, Canotilho nos remete ao crítico e irônico romance de José Saramago, Ensaios sobre a lucidez, onde o prêmio Nobel de Literatura nos leva aos caminhos da irracionalidade e da crueldade dos homens e seus deuses, sob pretensa objetividade: o que seria verdadeiramente a lucidez?

De Canotilho: “Algumas constituições da nossa contemporaneidade – como a Constituição Portuguesa de 1976 e a Constituição Brasileira de 1988 – enveredaram decididamente pelo modelo das chamadas constituições programáticas. A magna carta de um país não se deveria reduzir a um esqueleto organizatório dos poderes do Estado, antes devia fixar os fins e tarefas da ação dos poderes públicos e radicar os direitos fundamentais dos indivíduos, desde os clássicos direitos individuais de defesa até aos modernos direitos a prestações sociais e econômicas.”

Procuramos, para a construção do Estado Nacional Brasileiro, suas raízes históricas, a formação da população miscigenada, e como tal, plural em respostas psicossociológicas.

Anima-nos a ideia de Camilo Onoda Caldas (Teoria Geral do Estado, Editora Ideias & Letras, SP, 2018) que povo “designa, especificamente, um conjunto de cidadãos”, sendo cidadania a vinculação juridicamente estabelecida que dê ao habitante a capacidade de influenciar e transformar o Estado, distinto de nacionalidade, cujo liame é cultural.

E, ainda mais, quando os defensores da globalização se expressam como no texto transcrito: “A globalização se impõe com a lógica da eficiência. Nas sociedades mais politizadas torna-se irrelevante quem seja o executor de políticas públicas – se o próprio Estado, se os entes de sua criação, se os entes privados, ou mesmo se eles serão nacionais ou estrangeiros: o importante para quaisquer usuários dessas prestações é que o conceito da política pública tenha alguma previsão constitucional que a legitime desde sua criação, que tenha viabilidade que inspire credibilidade, que sua execução seja eficiente, sem malbaratar os recursos entregues pela sociedade, e que produza os resultados de interesse público a que se dirigem” (Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Poder, Direito e Estado, Editora Fórum, Belo Horizonte, 2011).

Não surpreende a corrupção, a falta de escrúpulo que o neoliberalismo faz descer sobre a sociedade. Voltemos, pois, a Canotilho, na obra já citada. “O ‘Muro’ ainda não tinha caído, e as propostas econômicas keynesianas, só havia pouco tempo, sofriam o vendaval político e teórico do neoliberalismo. De uma forma mais ou menos confusa, as constituições programáticas, como a de Portugal e do Brasil, procuravam fornecer o braço normativo para políticas públicas que reúnam três atributos: liberdade política, justiça social e eficácia econômica.”

Continua Canotilho: “O jovem aprendiz de leis fica ainda mais aturdido quando lhe ensinamos que, nas constituições, existem normas que são verdadeiras normas e outras que só de normas têm o nome e o lugar, pois não passam de declarações, exortações, retórica jurídica e até de aleluias políticas.”

Nos artigos seguintes detalharemos nossa proposta para o Estado Nacional Brasileiro.


Felipe Maruf Quintas é cientista político.

Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.