Sexta. 19 de agosto de 2011
Da Tribuna da Imprensa
Jacques Gruman
Acostumamo-nos a comparar política ao que há de pior, a canalhices e
negociatas, a bravatas e oportunismo, a privilégios e bandalheiras. Para
a população em geral, distante dos gabinetes, político virou quase
sinônimo de criminoso. Nem sempre foi assim. Há cinquenta anos, o país
foi sacudido por um movimento que mobilizou grandes massas e abortou um
golpe civil-militar. No epicentro, um governador de estado.
Era 1961. Jânio Quadros, malandro, renuncia à presidência da
República no dia 25 de agosto, esperando voltar nos braços do povo e com
poderes extraordinários. A manobra falha. Jango, vice-presidente em
visita oficial à China, é avisado de que há um movimento militar
contrário à sua posse, prevista pela Constituição. Jango poderia ser
preso quando desembarcasse no Brasil. Mais uma crise verde-oliva.
Parecia tudo armado para o golpe, mas … No sul, há resistência.
Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul, comanda a Campanha
da Legalidade, para garantir a posse de Jango. Não foi um movimento
trivial. O 3º Exército, sediado no sul, tinha o maior contingente do
país. Se aderisse aos golpistas, poderia haver um banho de sangue.
Brizola magnetizou os gaúchos com discursos inflamados e dirigiu-se à
nação através dos equipamentos da rádio Guaíba, provisoriamente
instalados nos porões do Palácio do governo. Foi a chamada Cadeia da
Legalidade.
As tropas do 3º Exército recusaram-se a aderir aos golpistas,
desidratando seu poder de fogo, e a Campanha foi vitoriosa. Depois de
intensas negociações, Jango volta ao Brasil e, mesmo manietado por uma
emenda parlamentarista, assume a presidência.
Da notável Campanha da Legalidade, que completa meio século, vale
registrar alguns dados, lembrados em artigo recente de Eleanora de
Lucena, da Folha de S. Paulo. Eles mostram a dimensão do que aconteceu
naqueles dias turbulentos, num país acostumado ao jeitinho e ao
conchavo.
1. Antes de receber o comandante do 3º Exército, general Machado
Lopes, Brizola faz o seguinte discurso: “Não nos submeteremos a nenhum
golpe. Que nos esmaguem. Que nos destruam. Que nos chacinem neste
Palácio. Chacinado estará o Brasil com a imposição de uma ditadura
contra a vontade de seu povo. Esta rádio será silenciada. O certo é que
não será silenciada sem balas. Resistiremos até o fim. A morte é melhor
do que a vida sem honra, sem dignidade e sem glória. Podem atirar. Que
decolem os jatos. Que atirem os armamentos que tiverem comprado à custa
da fome e do sacrifício do povo. Joguem essas armas contra este povo. Já
fomos dominados pelos trustes e monopólios norte-americanos. Estaremos
aqui para morrer, se necessário. Um dia, nossos filhos e irmãos farão a
independência de nosso povo.”
(Lendo isso, lembrei-me imediatamente do último discurso de Salvador
Allende. Cercado pela corja que implantou uma ditadura assassina no
Chile, Allende se dirigiu aos chilenos pela última vez, usando um canal
de rádio. Entre outras coisas, disse: “Não vou renunciar! Colocado numa
encruzilhada histórica, pagarei com minha vida a lealdade ao povo.” E
pagou. Quantos políticos, como Brizola e Allende, tiveram a coragem de
levar às últimas consequências seus projetos políticos?)
2. Quando os militares chegaram ao Palácio Piratini para conversar
com Brizola, havia cerca de 100 mil pessoas na praça em frente. No
momento em que subiam as escadas, Machado Lopes e os generais ouviram o
povo começar a cantar o Hino Nacional. Pararam, viraram-se, colocaram a
mão no peito e cantaram junto. Pouco depois, o 3º Exército afirmava sua
adesão à legalidade. Vocês conseguem imaginar algo parecido hoje em dia,
povo e soldados irmanados por uma vontade política? Sei que eram tempos
de Guerra Fria, muita polarização ideológica, muita mobilização. Só
estou querendo reafirmar que apatia, descaso e mesmo cinismo não são
questão de DNA brasileiro.
3. A população de Porto Alegre era de 635 mil habitantes. Em poucos
dias, 45 mil pessoas mobilizaram-se para participar da resistência e
receber treinamento militar. Comparando: seria como se 450 mil cariocas
se alistassem, hoje, para campanha semelhante. Não estou falando de
caminhadas na orla em defesa da liberalização da maconha, nem da defesa
de algum animal em extinção. Refiro-me a gente que se apresentou
voluntariamente para defender, com risco da própria vida, a legalidade
constitucional. Era outro país…
4. Grêmio e Internacional suspenderam o jogo programado pelo
campeonato gaúcho e declararam solidariedade à campanha. Lembrei-me de
uma viagem recente ao Uruguai. Estava nas ruas uma campanha de coleta de
assinaturas para a convocação de um plebiscito pela revogação da
anistia dos militares que torturaram e assassinaram opositores entre
1973 e 1985. O time de futebol de areia uruguaio convocou a imprensa e
declarou apoio à campanha. Que diferença com os Neymares, Kakas e
Robinhos, deslumbrados com penteados extravagantes e/ou pregações
religiosas!
5. A campanha teve um hino:
Avante Brasileiros
De pé, (bis)/ Unidos pela liberdade./ Marchemos todos juntos / Com a bandeira que prega legalidade./ Protesta contra os tiranos,/ Te recusa à traição. / Que um povo só é bem grande,/ Se for livre a sua nação.
Avante Brasileiros
De pé, (bis)/ Unidos pela liberdade./ Marchemos todos juntos / Com a bandeira que prega legalidade./ Protesta contra os tiranos,/ Te recusa à traição. / Que um povo só é bem grande,/ Se for livre a sua nação.
O hino, de autoria de Demóstenes Gonzalez, Lara de Lemos e Paulo
César Pereio (ele mesmo!), teve dois arranjos, feitos pelos maestros
Alfredo Hulsberg, Karl Faust e Salvador Campanela. A letra, depois, foi
ampliada e gravada na Rádio Farroupilha pelo Coral supervisionado por
Madeleine Ruffier.
Não sou e nunca fui brizolista. O caudilhismo centralizante do velho
Briza levou, por exemplo, a uma administração confusa e sem participação
dos movimentos sociais no governo do Rio. Isso, no entanto, não diminui
minha admiração pela Campanha da Legalidade. Foi uma das mais vigorosas
demonstrações de paixão política e comunhão com a vontade popular de
que tenho conhecimento. Merece lugar destacado na memória coletiva dos
brasileiros. E sem essa de que “brasileiro é bonzinho!”, como se fosse
um destino manifesto sermos reféns dos conchavos e das táticas
conciliatórias da classe dominante. Lembrai-vos de 1961!”