Quarta, 18 de abril de 2012
Da Transparência Brasil
Causa preocupação a atuação brasileira num organismo
multilateral informal criado recentemente, dedicado ao desenvolvimento
de políticas e mecanismos destinados à prestação de informação de
governos às suas respectivas sociedades.
Trata-se da Open Government Partnership – Parceria para
o Governo Aberto. A iniciativa, originalmente do governo
norte-americano, contou como parceiro de primeira hora o governo
brasileiro.
Ocorre que a atuação brasileira na OGP tem deixado a desejar.
Os entes brasileiros representados na OGP (a
Controladoria-Geral da União e uma organização da sociedade civil, o
Instituto de Estudos Socioeconômicos) estão apresentando ao mundo um
retrato distorcido da realidade brasileira no que tange a participação
de organizações não-governamentais na esfera de interesse da OGP.
A OGP congrega representantes de países e de entidades
da sociedade civil com o objetivo de obter “compromissos concretos de
governos no sentido de promover a transparência, fortalecer a cidadania,
combater a corrupção e obter domínio de novas tecnologias para
fortelecer a governança”.
A direção do organismo é exercida por representantes de
dois países, sendo que a gestão atual cabe aos EUA e ao Brasil
(representado pela Controladoria-Geral da União). Um “Steering
Committee” (Comissão de Orientação) tem a responsabilidade de organizar
os trabalhos do ente.
Além de representantes dos governos dos EUA e Brasil, a
Comissão de Orientação é hoje composta pelos governos da Noruega,
Grã-Bretanha, México, Filipinas, Indonésia e África do Sul.
Organizações da sociedade civil são também
representadas. São elas: National Security Archives (EUA), International
Budget Project (internacional), Transparency and Accountability
Initiative (idem), Revenue Watch (idem), African Center for Open
Governance (Quênia), Twaweza (Tanzânia), Instituto Mexicano para la
Competitividad (México), MKSS (Índia) e o Instituto de Estudos
Socioeconômicos (INESC, brasileiro).
Entre 17 e 18 de abril a OGP realizará em Brasília uma
“Cúpula de Alto Nível”. O evento, cujos principais protagonistas são,
naturalmente, representantes de governos, conta também com a
participação de diversas organizações não-governamentais, pois uma das
peculiaridades centrais desse organismos é o diálogo permanente com
opiniões e práticas situadas fora do âmbito do Estado. Além disso, o
desenvolvimento de melhores mecanismos de divulgação de informações
provenientes do poder público não pode prescindir daqueles que utilizam
essas informações e as disseminam na sociedade, motivo pelo qual essa
dimensão se situa em lugar proeminente entre as prioridades da OGP.
Verifica-se que a Controladoria-Geral da União e seu
parceiro não-governamental (o INESC) têm agido de modo inadequado no que
tange a participação de ONGs brasileiras tanto na OGP de modo geral
quanto na “Cúpula” acima referida -- têm sido suprimidas as organizações
que mais têm trabalhado, no Brasil, nas atividades que justificam a
própria existência da OGP.
Tais organizações são a Transparência Brasil e a
Associação Contas Abertas. Essas entidades lideram, no Brasil, o uso de
informações públicas para melhor propiciar um monitoramento de órgãos do
Estado.
A Transparência Brasil tem desenvolvido e mantido
ferramentas de vasto uso nesse monitoramento. Podem ser mencionados os
seguintes projetos, publicados e sistematicamente atualizados na
Internet (todos os links estão acima):
Às Claras (desde 2003) – dedicado à organização e análise de doações eleitorais;
Deu no Jornal (desde 2004) – dedicado ao registro
sistemático de reportagens relativas ao tema da corrupção e assuntos
correlatos, recolhidas diariamente de cerca de 35 jornais diários;
trata-se de iniciativa inédita mundialmente;
Excelências (desde 2006) – dedicado ao acompanhamento
de todos 2.368 os integrantes das 55 principais Casas legislativas
brasileiras; também inédito mundialmente;
Meritíssimos (desde 2009) – dedicado ao monitoramento
do desempenho dos ministros do Supremo Tribunal Federal; igualmente
inédito mundialmente;
Assistente Interativo de Licitações (desde 2004) –
dedicado a fornececer análises de conformidade de editais de licitação;
mais uma vez, inédito mundialmente.
Tais instrumentos têm tido, historicamente, papel
importante no esclarecimento do público. Milhões de pessoas os visitaram
e o fazem continuamente. Em particular no que tange o projeto
Excelências, as informações e análises que divulga tiveram impacto
marcante na vida política brasileira.
Além do desenvolvimento dessas iniciativas, a
Transparência Brasil desempenhou papel central na formulação e
promulgação da recentemente sancionada Lei de Acesso a Informação.
Foi a Transparência Brasil que sugeriu ao governo
brasileiro, no âmbito do Conselho de Transparência Pública e Combate à
Corrupção (sediado na Controladoria-Geral da União), que este liderasse o
esforço de regulamentar o acesso a informação no país. Ao longo de todo
o processo de transformação da ideia em lei a Transparência Brasil
sempre esteve no primeiro plano, tanto no âmbito interno da CGU durante a
confecção da primeira minuta do projeto quanto posteriormente. O tema
do acesso a informação sempre foi central nas constantes intervenções
públicas da entidade.
Outra entidade que tem tido papel marcante no uso da
informação pública e na insistência de que a abertura do Estado é
essencial para o desenvolvimento democrático é a Associação Contas
Abertas, concentrada na disseminação e análise de dados extraídos da
execução orçamentária de governos.
Quais outras organizações têm tido papel semelhante, no
Brasil? Pouquíssimas ONGs brasileiras usam sistematicamente dados
públicos para iluminar aspectos da esfera pública de modo a alimentar de
informação outros interessados e, assim, fortalecer a sua ação (ONGs, a
academia, a imprensa, o próprio Estado e assim por diante). Na verdade,
apenas as duas mencionadas fazem isso de forma sistemática. Nenhuma
outra o faz com a constância e o rigor dessas duas.
Não obstante, nem a Transparência Brasil nem a
Associação Contas Abertas foram, em algum tempo, contactadas pela OGP ou
pelos entes brasileiros nela representados (a CGU e o INESC) para o
desenvolvimento dos trabalhos da Parceria. O evento que se realiza esta
semana em Brasília não contará com a participação da Transparência
Brasil ou da Associação Contas Abertas, pois não foram convidadas para
compor mesas e se dirigir ao público e aos representantes internacionais
reunidos no conclave. A experiência combinada dessas duas entidades foi
irremediavelmente suprimida.
Ora, para qualquer pessoa que, no Brasil, tenha tido
contacto mesmo que lateral com os temas do acesso a informação e do
monitoramento do Estado, a omissão é escandalosa.
O panorama que está sendo apresentado ao mundo pela CGU
e pelo INESC corresponde a uma distorção. A distorção não se
caracteriza pela substituição de um exemplo por outro, de estatura
semelhante -- o que não justificaria maiores preocupações.
A distorção se caracteriza pela omissão do que há de
mais relevante na atuação não-estatal. No caso da Transparência Brasil,
representa adicionalmente um ato de negação e supressão do papel que a
entidade teve na regulamentação do acesso a informação no Brasil.
Não se afirma que a promulgação final dessa
regulamentação tenha sido obra da Transparência Brasil. Tampouco se
afirma que outras entidades da sociedade civil (na verdade, uma única)
não tenham também colaborado. Longe disso. São conhecidas as imensas
dificuldades enfrentadas pela CGU quando da tramitação da matéria
internamente no governo, e os obstáculos que tiveram de ser vencidos,
outra vez pela CGU, quando a matéria chegou ao Senado Federal após ter
sido aprovada na Câmara dos Deputados.
O que se afirma é que o brilho dessa vitória está sendo
manchado pela tentativa de supressão de um protagonista relevante, que
foi a Transparência Brasil, e que esse desvirtuamento está sendo
materializado no foro internacional representado pela Open Government
Partnership.