Sexta, 13 de setembro de 2013 
    
Os recentes acontecimentos relacionados à Síria levam-me a dirigir-me
 diretamente ao povo norte-americano e aos seus líderes políticos. É 
importante que o faça, num momento em que não há suficiente comunicação 
entre nossas sociedades.
Nossas relações passaram por diferentes etapas. Enfrentamo-nos 
durante a Guerra Fria, mas também fomos aliados uma vez e juntos 
derrotamos juntos os nazistas. Criou-se então a Organização das Nações 
Unidas, para evitar voltasse a acontecer tal devastação.
Os fundadores das Nações Unidas perceberam que as decisões que afetam
 a guerra e a paz devem ser tomadas sempre por consenso e, com a 
anuência dos Estados Unidos, o direito de veto dos membros permanentes 
do Conselho de Segurança está consagrado na Carta das Nações Unidas. A 
profunda sabedoria que se condensa nesse dispositivo tem servido de 
base, há décadas, para a estabilidade das relações internacionais.
Ninguém deseja para a ONU o destino que teve a Liga das Nações, que 
entrou em colapso porque não tinha influência real. Mas é o que pode 
acontecer, se os países influentes ignorarem a ONU e decidirem por ação 
militar sem autorização do Conselho de Segurança.
O potencial ataque dos EUA contra a Síria, apesar da forte oposição 
de muitos países e dos principais líderes políticos e religiosos, 
incluindo o Papa, fará ainda mais vítimas inocentes e levará a uma 
escalada do conflito, que se espalhará para além das fronteiras da 
Síria. Esse tipo de ataque pode aumentar a violência e desencadear uma 
nova onda de terrorismo. Pode minar os esforços multilaterais para 
resolver a questão nuclear iraniana e o conflito entre israelenses e 
palestinos e desestabilizar ainda mais o Oriente Médio e Norte da 
África. Pode quebrar o equilíbrio do sistema da lei e da ordem 
internacional.
CONFLITO ARMADO
O que a Síria vive hoje não é batalha por democracia, mas conflito 
armado entre o estado e grupos opositores, em país multirreligioso. Na 
Síria há poucos defensores de alguma democracia. Mas, sim, há em muito 
maior número milícias da Qaeda e extremistas de todas as falanges, que 
combatem contra o estado. Os EUA classificaram como organizações 
terroristas a Frente Al-Nusra e o Estado Islâmico do Iraque e do 
Levante, que lutam com a oposição, contra o estado sírio. Esse conflito 
externo, alimentado por armas que estrangeiros fornecem à oposição, é 
dos mais sangrentos do mundo.
Ali lutam mercenários vindos de países árabes e centenas de 
milicianos de países ocidentais, inclusive da Rússia, o que muito nos 
preocupa. E se voltarem para nossos países, com a experiência adquirida 
na Síria. Já se sabe que, depois de agirem na Líbia, muitos extremistas 
mudaram-se para o Mali. Tudo isso é ameaça contra todos nós.
Desde o início, a Rússia advogou a favor de diálogo pacífico que 
capacitasse os sírios a desenvolver um plano para seu próprio futuro. 
Não estamos protegendo o governo ou o estado sírio, mas a lei 
internacional. Precisamos usar o Conselho de Segurança da ONU e 
acreditamos que preservar a lei e a ordem no mundo complexo e turbulento
 em que vivemos é um dos poucos modos que há para impedir que as 
relações internacionais deslizem para o caos. A lei é a lei, e temos de 
segui-la, gostemos ou não.
Nos termos da lei internacional vigente, permite-se o uso da força só
 para autodefesa ou por decisão do Conselho de Segurança. Qualquer outra
 coisa é inaceitável nos termos da Carta da ONU e constitui ato de 
agressão.
Não há dúvidas de que foi usado gás venenoso na Síria. Mas tudo faz 
crer que não foi usado pelo Exército Sírio, mas por forças da oposição, 
para provocar uma intervenção conduzida pelos seus poderosos patrões 
estrangeiros, os quais, assim, estariam em aliança com os 
fundamentalistas. Relatos de que milícias preparam outro ataque – dessa 
vez contra Israel – não podem ser ignorados.
Causa alarme em todo o mundo que a intervenção em conflitos internos 
em países estrangeiros tenha-se convertido em ação corriqueira para os 
EUA. Isso atende aos interesses norte-americanos de longo prazo? Duvido.
 Milhões em todo o mundo cada vez mais passam a ver os EUA não como 
modelo de democracia, mas como nação que só se serve da força bruta e 
que depende de coalizões mal costuradas sob o slogan “ou estão conosco 
ou estão contra nós”.
VIOLÊNCIA SEM SENTIDO
Mas a violência já se provou inefetiva e sem sentido. O Afeganistão 
gira em falso e ninguém pode prever o que acontecerá depois da retirada 
das forças internacional. A Líbia está dividida em tribos e clãs. No 
Iraque, prossegue a guerra civil, com dúzias de mortos todos os dias. 
Nos EUA, já há quem trace uma analogia entre Iraque e Síria e já se 
pergunte por que seu próprio governo desejaria repetir erros recentes.
Não importa o quanto os ataques sejam focados, nem o quão sofisticado
 sejam as armas, as baixas civis são inevitáveis, inclusive idosos e 
crianças, os mesmos que os ataques visariam a proteger.
O mundo reage. Se ninguém mais puder confiar na lei internacional, 
nesse caso passa a ser indispensável encontrar outros meios para 
garantir a autossegurança. Por isso, um número crescente de países busca
 comprar armas de destruição em massa. É lógico: se se tem a bomba, 
ninguém toca em você. E resta a urgência para reforçar a não 
proliferação a qual, na realidade, está sendo erodida.
Temos de parar de usar a linguagem da força. Temos de retomar o caminho da discussão diplomática e política civilizada.
Nos últimos dias, emergiu uma nova oportunidade para evitar ação 
militar. EUA, Rússia e todos os membros da comunidade internacional 
devem aproveitar a disposição do governo sírio, que aceitou pôr seu 
arsenal químico sob controle internacional para depois ser destruído. A 
julgar pelas declarações do presidente Obama, os EUA veem aí uma 
alternativa à ação militar.
Acolho como bem-vindo o interesse do presidente em continuar o 
diálogo com a Rússia, sobre a Síria. Temos de trabalhar juntos para 
manter viva essa esperança, como concordamos fazer, em junho, na reunião
 do G-8 em Lough Erne na Irlanda do Norte. E trazer a discussão de volta
 na direção de mais negociações.
Se pudermos evitar o uso da força contra a Síria, melhorará a 
atmosfera nos assuntos internacionais e se fortalecerá a confiança 
mútua. Será sucesso partilhado, que abrirá as portas para a cooperação 
em outras questões críticas.
CONFIANÇA CRESCENTE
Minhas relações pessoais e de trabalho com o presidente Obama são marcadas por confiança crescente. Gosto disso.
Examinei atentamente a fala do presidente à nação, na 3ª-feira. E 
tenho de discordar da defesa do excepcionalismo norte-americano. O 
presidente disse que a política dos EUA é o que “faz diferentes os EUA, o
 que nos faz excepcionais.” É extremamente perigoso estimular as pessoas
 a que se vejam, elas mesmas, como diferentes, seja qual for a 
motivação.
Há países grandes e países pequenos, ricos e pobres, os que têm 
longas tradições democráticas e os que ainda têm de encontrar as 
próprias vias até a democracia. As respectivas políticas também diferem.
 Todos somos diferentes. Mas quando pedimos que Deus nos abençôe, 
ninguém pode esquecer que Deus nos criou, todos, iguais.
Fonte: Tribuna da Imprensa 
