Segunda,
14 de julho de 2014
Por Luciana Genro
A reunião do BRICS, em Fortaleza esta semana, terá como
principal assunto de pauta a institucionalização e funcionamento do Banco do
BRICS, de criação já anunciada, e cuja sede será Xangai, na China. Embora o
discurso oficial do governo brasileiro declare que a nova instituição financeira
representará uma alternativa ao Banco Mundial e ao FMI, tudo indica que o
modelo de financiamento vai seguir os mesmos critérios dessas instituições,
como se pode ver na parte da minuta que trata do fundo de reservas e do Acordo
de Contingência.
Neste debate, a maioria dos analistas têm se dividido. De
uma lado, os que aprovam a política externa do governo, de diversificação de
laços diplomáticos e comerciais – no que se incluem os laços com o BRICS. De
outro, os que defendem que o antigo vínculo preferencial com EUA e Europa
deveria prevalecer. Mas entre eles há um consenso que não podem ocultar: a
aceitação passiva do papel subordinado do Brasil na divisão internacional do
trabalho e de suas implicações para nossa soberania, que estão na contramão de uma
verdadeira alternativa de desenvolvimento econômico-social.
Como fórum político e diplomático, o grupo BRICS abriga
países populosos, com peso político-econômico em suas regiões e que discutem
iniciativas conjuntas para além dos organismos internacionais onde os governos
dos EUA e Europa Ocidental detém o comando. Iniciativas do BRICS como a
proposição de um marco de governança alternativo para a Internet, no contexto
dos escândalos de espionagem internacional, são positivas e têm sentido
progressivo quando utilizam o princípio do multilateralismo para contrapor-se à
concentração do poder mundial.
Mas enganam-se os que pensam e atuam como se o
multilateralismo por si só beneficiasse todos os envolvidos. Menos ainda quando
é praticado, como na maioria das vezes, reproduzindo as regras de um jogo com
cartas marcadas. O próprio termo BRICS, criado pela Goldman Sachs – banco de
investimento responsável pela quebra financeira da Grécia, que afogou o povo
grego com as medidas de austeridade que se lhe seguiram – cria a ilusão de que
todos os países reunidos neste fórum estão em um mesmo barco e atuando pelos
mesmos fins.
Enquanto a China trilha caminho como nova potência
econômica mundial e faz uso de forte política tecnológica, o governo brasileiro
entrega o petróleo do Pré-Sal às multinacionais, como no leilão do campo de
Libra, onde usou as tropas da Força Nacional para garantir o certame. Além
disso, não faz política tecnológica, mas emprega os recursos do BNDES para
financiar grandes grupos do agronegócio e do setor de extrativismo mineral, com
12 conglomerados concentrando 60% dos desembolsos. Não adiantará criar um banco
do BRICS se for mais outra fonte para financiar o mesmo modelo econômico e,
ainda por cima, com as mesmas condicionalidades antisoberanas do FMI e do Banco
Mundial, só que internalizadas em seu marco. Tampouco implicará grandes
alterações o uso das moedas dos países-membros do BRICS para transações
bilaterais se prosseguir o mesmo modelo produtivo.
Está em curso uma acelerada reprimarização da pauta do
comércio exterior brasileiro. Segundo o IBGE, os produtos básicos aumentaram
sua participação de 23% para 40% entre 2000 e 2009 (e a tendência segue),
enquanto os manufaturados encolheram de 59% para 44%. Segundo dados do próprio
Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, dois produtos
(minério de ferro e soja em grãos) representam 70% do que o Brasil vende para a
China – país que desde 2006 é o principal destino das mercadorias produzidas no
Brasil. Considerando mais o petróleo, 81% das vendas do Brasil à China são
matérias-primas. Ao passo que metade do que a China vende ao Brasil são
manufaturados de alta e média-alta intensidade tecnológica, como máquinas e
aparelhos elétricos (30%) e máquinas e instrumentos mecânicos (21%). Essa é uma
boa radiografia do Brasil no BRICS.
O governo acena com medidas paliativas, mas não é capaz de
reverter o estrondoso déficit na balança
comercial por intensidade tecnológica. E não o pode pela mesma
razão que ficou gabando-se por anos em cima de saldos recordes das exportações
– puxadas pelos produtos primários – escondendo da população que, ao contrário
de nos orgulharmos desse desempenho, devemos é nos preocupar. Pois um aspecto
fundamental que interessa a um projeto alternativo está completamente ignorado:
ter soberania para implementar um modelo produtivo diversificado que beneficie
a maioria da população, em condições sustentáveis, e que proporcione uma
melhora real na qualidade do emprego e impulsione a geração de ciência e
tecnologia próprias.
O formato adotado para o Banco do BRICS não enfrenta nem a
necessária mudança do modelo produtivo, nem a grave questão da dívida pública.
Estamos diante da reprise do filme do Banco do Sul, quando o governo federal
atuou contrariamente à ideia de que fosse um “anti-FMI” em favor de um
“Exim-Bank sul-americano” a serviço das grandes empresas. Será também o Banco
do BRICS um novo “Exim-Bank” a favorecer as empresas exportadoras – e,
sobretudo, as do atual padrão exportador de especialização regressiva –, no
exato momento em que os fundos abutres atentam contra o povo irmão da
Argentina? Governar o Brasil para os interesses das maiorias e não dos
banqueiros e milionários exigirá enfrentamentos dessa ordem também. E somos
honestos e críticos o suficiente para saber que a quitação da dívida com o FMI
em nada arranhou o prosseguimento do sistema da dívida no Brasil, que persiste
através da dívida interna e dos agentes que se locupletam com ela, drenando 40%
do Orçamento da União.
Se a ascensão de novos subcentros já é uma realidade na
política mundial, o Brasil deveria usar os recursos econômicos e políticos que
tem, o peso de seu tamanho e influência para enfrentar o poder da finança
mundializada e inverter a lógica do modelo produtivo. Nesse sentido, propomos
algumas medidas imediatas de política econômica externa: controle das riquezas nacionais do Pré-Sal e
entrada do Brasil para a Organização dos Países Exportadores de Petróleo;
auditoria da dívida pública, para enfrentar o estrangulamento
provocado pelo sistema da dívida e liberar recursos para uma verdadeira
política de fomento à ciência e tecnologia (hoje são pífios 0,38% do Orçamento
Geral da União para essa rubrica); formação
de uma frente de países para enfrentar o poder da finança. Em lugar
da política de apoio a empresas multinacionais e conglomerados brasileiros, que
exportam o mesmo modelo de concentração econômica e destruição ambiental,
queremos uma integração produtiva baseada em outros preceitos, que deve nascer
de um amplo debate com sociedades científicas, universidades, sindicatos,
movimentos de trabalhadores do campo e da cidade.
Fonte: site de Luciana Genro