Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

terça-feira, 12 de agosto de 2014

A Reação Anti-Junho

Terça, 12 de agosto de 2014
Por Igor Mendes — Mídia Democrática
Há certas afirmações que, repetidas ao longo do tempo, são encaradas como verdades absolutas, sobre as quais não cabe contestação. Uma delas é a que diz que, no nosso país, há uma tradição de composição e conciliação, que preza as continuidades em detrimento das rupturas.
Se essa afirmação se referir às classes dominantes, aos oligarcas que, de um modo ou de outro e ligeiramente modificados, nos governam há cinco séculos, terá lá o seu fundo de verdade. Preferiram sempre a posição subalterna, à sombra do colonialismo português, depois do imperialismo inglês e, finalmente, norte-americano, a ver qualquer mínima ameaça aos seus privilégios. Antes vender o Brasil, fatia-lo, surrupia-lo, a perder a chance de um bom negócio. Temos, na relação subserviente frente à máfia FIFA, mais um exemplo dessa postura.
Mas seria errado tomar o Brasil por suas classes dominantes. Esse país possui, sob o tacão dos “de cima”, um povo trabalhador, heróico, com longa trajetória de lutas. Esse povo não optou pelas conciliações com as oligarquias internas e estrangeiras; elas lhe foram impostas a ferro e fogo sempre que exigiu ir além. Não possui o Estado brasileiro, ao longo da sua formação, nenhuma tradição liberal ou democrática, ao contrário, forjou a si próprio e às suas instituições na repressão implacável a qualquer contestação social. A “jovem República” barbarizando Canudos, na defesa do latifúndio semifeudal, é por si mesmo uma imagem evidente. No Araguaia não se fizeram prisioneiros. Se essa é a tradição de paz e conciliação que temos, só se for a conciliação e a paz dos cemitérios.

No ano de 2013 a nossa juventude, a juventude combatente, da qual, com orgulho, faço parte, fez história. Ninguém duvida que as jornadas de junho, que são produto de anos de contradições e desilusões acumuladas, principalmente com um governo dito de “esquerda” (Lula e depois Dilma) que prosseguiu e aprofundou todos os projetos essenciais de FHC, inclusive trazendo a Copa e todo seu legado de remoções e arbitrariedades, estarão nos livros nos anos vindouros. Essas jornadas, a princípio condenadas com veemência pelos monopólios de imprensa e governos, foram depois canonizadas por esses setores, que tentaram delas se apropriar para, logo em seguida, frustrados seus planos, retornarem à política de repressão e demonização dos protestos.
O Congresso Nacional fez aprovar, celeremente, a nova lei de organizações criminosas (lei 12.850/13), visando flexibilizar a noção de associação criminosa para poder nela enquadrar manifestantes. Não por coincidência foi essa lei utilizada para enviar, em outubro último, mais de 70 ativistas para o complexo penitenciário de Gericinó (Bangu) – ao passo que os policiais que espancaram covardemente professores grevistas seguiram livres e atuando nas ruas. Também tramita a lei antiterrorismo, suspensa durante a Copa para “não pegar mal” para o governo, mas que, se depender do Planalto e da imprensa terrorista da Rede Globo & cia, será aprovada em breve. A própria lei de segurança nacional do regime militar –vejam só! – não apenas não foi revogada como recentemente, em São Paulo, foi acionada por um delegado para enquadrar dois ativistas.
Muito se ouviu o refrão: manifestação pode, manifestação violenta não pode. Entretanto, durante a Copa do Mundo, o que vimos? A proibição de fato de toda e qualquer manifestação, com cercos militares em praças e vias públicas. Aliás, os abusos cometidos durante a final da Copa, no dia 13/07 na praça Saens Peña, não encontram precedentes e denunciam que a Polícia Militar do Rio de Janeiro agiu com carta branca de seus comandantes –governo estadual e, sem dúvida, também, governo federal. Na véspera um inquérito evidentemente político resultou na expedição de mandados de prisão contra 26 ativistas, e bandeiras, jornais e panfletos foram expostos como “provas” de crimes em entrevista coletiva ocorrida na Cidade da Polícia.
Diante da contestação, responde o Estado brasileiro de acordo com as suas tradições: com o recrudescimento da repressão. Os processos e as prisões contra os ativistas marcam, sem dúvida, o anti-junho, o contra-ataque furioso por parte daqueles que, por covardia ou puro oportunismo, engoliram a seco as marchas de junho –e julgam que chegou a hora da desforra.
Não venham depois, os historiadores do futuro, dizer que as jornadas de junho terminaram em pizza. A isso querem reduzi-la os políticos corruptos, monopólios de imprensa e magnatas do presente. Mas contra essa força cresce e se organiza cada vez mais consciente resistência. Se algo mudou nesse país depois de junho não foram as leis, nem as condições de vida e nem mesmo as tarifas de transporte –que voltaram a subir, aliás. O que mudou, e mudou para sempre, é o fato de que nosso povo discute cada vez mais política, se politiza cada vez mais, sente a necessidade e a legitimidade de lutar por seus direitos. Cresce também o rechaço, mais do que justo e necessário, aos políticos profissionais e às eleições, e a consciência de que verdadeiras transformações só podem ser ganhas nas ruas, com muita briga. Essa consciência é o grande legado de junho, o antídoto à reação anti-junho, e a condição para que mudanças mais profundas ocorram, mais dia menos dia. 
*Igor Mendes é universitário e um dos processados no chamado inquérito "da Copa".