Terça, 12 de agosto de
2014
Por Igor Mendes —
Mídia Democrática
Há
certas afirmações que, repetidas ao longo do tempo, são encaradas como verdades
absolutas, sobre as quais não cabe contestação. Uma delas é a que diz que, no
nosso país, há uma tradição de composição e conciliação, que preza as
continuidades em detrimento das rupturas.

Mas
seria errado tomar o Brasil por suas classes dominantes. Esse país possui, sob
o tacão dos “de cima”, um povo trabalhador, heróico, com longa trajetória de
lutas. Esse povo não optou pelas conciliações com as oligarquias
internas e estrangeiras; elas lhe foram impostas a ferro e fogo sempre
que exigiu ir além. Não possui o Estado brasileiro, ao longo da sua formação,
nenhuma tradição liberal ou democrática, ao contrário, forjou a si próprio e às
suas instituições na repressão implacável a qualquer contestação social. A
“jovem República” barbarizando Canudos, na defesa do latifúndio semifeudal, é
por si mesmo uma imagem evidente. No Araguaia não se fizeram prisioneiros. Se
essa é a tradição de paz e conciliação que temos, só se for a conciliação e a
paz dos cemitérios.
No
ano de 2013 a nossa juventude, a juventude combatente, da qual, com orgulho,
faço parte, fez história. Ninguém duvida que as jornadas de junho, que são
produto de anos de contradições e desilusões acumuladas, principalmente com um
governo dito de “esquerda” (Lula e depois Dilma) que prosseguiu e aprofundou
todos os projetos essenciais de FHC, inclusive trazendo a Copa e todo seu
legado de remoções e arbitrariedades, estarão nos livros nos anos vindouros.
Essas jornadas, a princípio condenadas com veemência pelos monopólios de
imprensa e governos, foram depois canonizadas por esses setores, que tentaram
delas se apropriar para, logo em seguida, frustrados seus planos, retornarem à
política de repressão e demonização dos protestos.
O
Congresso Nacional fez aprovar, celeremente, a nova lei de organizações
criminosas (lei 12.850/13), visando flexibilizar a noção de associação
criminosa para poder nela enquadrar manifestantes. Não por coincidência foi
essa lei utilizada para enviar, em outubro último, mais de 70 ativistas para o
complexo penitenciário de Gericinó (Bangu) – ao passo que os policiais que
espancaram covardemente professores grevistas seguiram livres e atuando nas
ruas. Também tramita a lei antiterrorismo, suspensa durante a Copa para “não
pegar mal” para o governo, mas que, se depender do Planalto e da imprensa
terrorista da Rede Globo & cia, será aprovada em breve. A própria lei de
segurança nacional do regime militar –vejam só! – não apenas não foi revogada
como recentemente, em São Paulo, foi acionada por um delegado para enquadrar
dois ativistas.
Muito
se ouviu o refrão: manifestação pode, manifestação violenta não pode.
Entretanto, durante a Copa do Mundo, o que vimos? A proibição de fato de toda
e qualquer manifestação, com cercos militares em praças e vias públicas.
Aliás, os abusos cometidos durante a final da Copa, no dia 13/07 na praça Saens
Peña, não encontram precedentes e denunciam que a Polícia Militar do Rio de
Janeiro agiu com carta branca de seus comandantes –governo estadual e, sem
dúvida, também, governo federal. Na véspera um inquérito evidentemente político
resultou na expedição de mandados de prisão contra 26 ativistas, e bandeiras,
jornais e panfletos foram expostos como “provas” de crimes em entrevista
coletiva ocorrida na Cidade da Polícia.
Diante
da contestação, responde o Estado brasileiro de acordo com as suas tradições:
com o recrudescimento da repressão. Os processos e as prisões contra os
ativistas marcam, sem dúvida, o anti-junho, o contra-ataque furioso por parte
daqueles que, por covardia ou puro oportunismo, engoliram a seco as marchas de
junho –e julgam que chegou a hora da desforra.
Não
venham depois, os historiadores do futuro, dizer que as jornadas de junho
terminaram em pizza. A isso querem reduzi-la os políticos corruptos, monopólios
de imprensa e magnatas do presente. Mas contra essa força cresce e se organiza
cada vez mais consciente resistência. Se algo mudou nesse país depois de junho
não foram as leis, nem as condições de vida e nem mesmo as tarifas de
transporte –que voltaram a subir, aliás. O que mudou, e mudou para sempre,
é o fato de que nosso povo discute cada vez mais política, se politiza cada vez
mais, sente a necessidade e a legitimidade de lutar por seus direitos. Cresce
também o rechaço, mais do que justo e necessário, aos políticos profissionais e
às eleições, e a consciência de que verdadeiras transformações só podem ser
ganhas nas ruas, com muita briga. Essa consciência é o grande legado de junho,
o antídoto à reação anti-junho, e a condição para que mudanças mais profundas
ocorram, mais dia menos dia.
*Igor
Mendes é universitário e um dos processados no chamado inquérito "da
Copa".