Entrevista. José Renato Nalini
Para
o presidente do Tribunal de Justiça de SP, ânsia por mais punição
reflete uma sociedade imediatista, que não se preocupa com as causas da
violência juvenil.
Da austeridade de palácios e salas suntuosas à informalidade do
ambiente de trabalho das empresas de tecnologia do Vale do Silício. É
assim que o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, José Renato
Nalini, enxerga os tribunais, varas e comarcas em um futuro que ele
pretende ajudar a construir. Aos 69 anos, o magistrado completa 14 meses
à frente do maior tribunal de justiça do mundo, com 25 milhões de
processos, tentando trazê-lo para o século 21...
Fontes: Por Wanderley Preite Sobrinho, revista CartaCapital, foto: Edson Lopes Jr/A2AD/Fotos Públicas.
Fonte: Blog do Sombra
Nalini recebeu a reportagem em sua sala no Palácio da Justiça, na Praça
da Sé. Por uma hora, conversou com CartaCapital brincando com a tampa
de uma garrafa de água com gás que ele despejava no copo, mas não bebia.
“Eu sonho com um lugar como o Google. Espaços coloridos em que você
pode pesquisar na internet, ouvir música, fazer exercícios, descansar na
rede.”
Mas o presidente tem outras ideias mais “perigosas”: quer informatizar
todo o tribunal até o final do ano e já implantou as chamadas
“audiências de custódia”, que vêm reduzindo o número de prisões
desnecessárias. Contrário ao encarceramento em massa, afirma que o
clamor pela redução da maioridade penal no Brasil reflete o imediatismo
de uma sociedade que se preocupa mais em punir do que prevenir a
violência juvenil. “Quando você deixa alguém injustamente preso, cria um
ressentimento e revolta que torna essa pessoa um alvo fácil para as
facções criminosas.”
Leia a entrevista completa:
CartaCapital: Qual a sua impressão sobre o judiciário paulista pouco mais de um ano na presidência do TJ-SP?
José Renato Nalini: Estamos em uma República enferma, 100 milhões de
processos no Brasil. É uma coisa invencível. Nós, em São Paulo,
crescemos demais. Somos o maior Tribunal de Justiça do mundo, e não há
mérito nisso porque também temos os maiores problemas. Não é fácil
administrar 50 mil servidores, 2,5 mil magistrados e 25 milhões de
processos. Nós temos um quarto das ações do Brasil, mas não temos um
quarto da população. Administrar tem sido dizer ‘não’, administrar
carências, falta de estrutura e reivindicações crescentes de
funcionários. Há exigências da população sequiosa por Justiça e que não
temos condições de atender.
CC: Como está o orçamento do TJ e qual o ideal?
JRN: Ele é menor a cada ano. Enquanto o orçamento-geral do estado subiu
97% nos últimos sete anos, o do judiciário cresceu 54%. No Rio de
Janeiro, a totalidade das custas é direcionada para o judiciário. Aqui
vai tudo para o caixa-geral do tesouro estadual, que o repassa mutilado.
Recebemos este ano 7 bilhões de reais. Nós precisaríamos de 9 bilhões
só para pagar pessoal, que hoje nos custa 95,7% de todo o dinheiro. Se
tivéssemos de pagar os débitos trabalhistas, precisaríamos de, no
mínimo, 30 bilhões de reais, o que é utópico.
CC: E as satisfações do cargo?
JRN: Não é fácil, mas não nego que seja prazeroso. Você encontra
exemplos de protagonismo individual, seja de juízes ou servidores, que
dão alegria. Sou defensor da criatividade, pioneirismo, ousadia. Todas
as iniciativas que anteriormente eram inibidas, eu tenho incentivado.
Digo para experimentar, fazer plano piloto, se serve para outras
comarcas, se pode adotar como estratégia. Também venho tentado chamar a
atenção da sociedade abrindo o tribunal para a participação popular.
CC: O senhor vem dizendo que a sociedade pode amadurecer se recorrer menos ao judiciário. O que o senhor quer dizer com isso
JRN: Nós tendencialmente não permitimos que a população assuma
responsabilidades e cresça porque nossa formação jurídica é anacrônica. A
única resposta que a comunidade encontra para resolver um problema,
seja ele de mínima, minúscula ou grande envergadura, é entrar com
processo. Isso reflete nosso momento civilizatório. Como começou a
tentativa de fazer justiça? Primeiro ela era feita pelas próprias mãos.
Aqui não temos regra, proporcionalidade. Aí a Lei de Talião [1780 a.C]
foi um progresso porque trouxe, pelo menos, o olho por olho, dente por
dente, embora hoje a gente considere isso bárbaro. Mas o estágio mais
compatível com o grau civilizatório da sociedade é o processo:
entrega-se para um terceiro, presumidamente imparcial, a atribuição de
resolver um conflito. Isso foi suficiente durante um tempo, mas
percebemos que ainda é uma solução menos ética do que a composição, o
acordo, porque, ao ingressar com um processo, o cidadão fica à mercê da
vontade do Estado-Juiz. O juiz lança uma visão técnica, mas alheia a
quem participa do drama. Quando você conta seu problema ao advogado,
essa provavelmente foi a última vez que você falou livremente sobre ele.
A partir daí, a ação é convertida em uma linguagem técnica, você já não
entende nada e perde o controle do processo. Em um regime como o nosso,
com quatro instâncias, o processo se converte em uma arena de astúcias,
com cada parte semeando obstáculos para o outro tropeçar.
CC: E o que o Tribunal de Justiça vem fazendo a esse respeito?
JRN: Nós implantamos três modalidades de composição consensual de
conflitos, os Centros Judiciais de Solução de Conflitos e Cidadanias
(Cejuscs). Organismos flexíveis que são impulsionados por conciliadores
capacitados por um curso que credencia essas pessoas com talento natural
de argumentar e pacificar. Veja a vantagem: você reúne as partes, que
podem estar assistidas por seu advogado ou conciliador. Elas entram na
sala de forma agressiva mas, aos poucos, por talento de quem vai mediar,
começam a entender o ponto de vista do outro. Aos poucos, as partes vão
se desarmando, entendendo o outro lado. Se chegarem a um acordo, ele
foi fabricado por elas. Houve autonomia, enquanto na decisão judicial
foi o Estado-Juiz quem diz: “eu vou fixar a sua dor em tantos reais”.
Sentimos que as partes vêm saindo conscientes de que um acordo acaba com
um conflito, enquanto que a decisão judicial acaba com o processo, não
necessariamente com o conflito.
CC: Essa medida pode aliviar o judiciário?
JRN: Sim, mas não é o principal objetivo. Essa cultura da pacificação
pretende estimular a população a assumir responsabilidades, negociar,
ouvir, conversar. Quando as pessoas estiverem treinadas para esse
exercício, estaremos fazendo do indivíduo um cidadão que sabe exercitar
sua maturidade cívica para mudar essa República. Porque se você tem de
entrar em juízo para discutir com seu vizinho, esposa, patrão, você
nunca terá condições de influenciar a coisa pública e nunca vamos
alcançar a democracia participativa, que depende de uma cidadania
sensata e madura. Também há outro aspecto: no momento em que o
judiciário se preocupa em criar mais vara, mais tribunal, mais comarca,
ele transforma a Justiça perversamente no refúgio do bandido. Ele
ingressa no judiciário sabendo que terá todo o tempo que não seria dado
pelo mercado, instituições financeiras, credor, sociedade.
CC: Mas de qualquer forma, há 25 milhões de processos em São Paulo. Como acabar com essa fila?
JRN: A resposta clássica costuma ser “aumentar, crescer”, fazer lobby
nas assembleias legislativas por mais vara, comarca, juiz e cargo. Temos
de lembrar que quando criamos um cargo de juiz, o Ministério Público
cria o de promotor, a defensoria o de defensor, a Procuradoria um cargo
de procurador. Você precisa de funcionário para todos, motorista,
alimentação, espaço, mais palácios. Há um crescimento em cascata. Nossa
opção em São Paulo é digitalizar 100% o TJ até o final de 2015. Estamos
com 53% do primeiro grau informatizado e 100% do segundo grau. A
esperança é que até dezembro não entre mais papel aqui. Temos estudos
que dizem que 50% a 70% de tempo de duração de uma demanda são gastos em
operações vinculadas ao processo físico. Com a digitalização, você pode
trabalhar ininterruptamente, mesmo à noite, final de semana, 365 dias
por ano de onde você estiver. De um celular, você pode mexer em seu
processo estando em Dubai [nos Emirados Árabes Unidos].
CC: Essa proporção de até 70% pode se reverter em redução de tempo?
JRN: Sim, isso já foi comprovado. Você ganha, no mínimo, 50% de
produtividade. A informatização vai eliminar prateleiras, espaços
suntuosos ou de amplitude que não se justifica. Este (Palácio da
Justiça) é um exemplar magnífico, mas é uma coisa histórica. Nós nunca
mais vamos precisar desses corredores, desse espaço, salas. No futuro,
será permitido o trabalho à distância e mesmo um espaço agradável porque
corrói o ânimo trabalharmos com a miséria humana, descumprimento de
obrigações, da lei. Eu sonho com um lugar como o Google. Espaços
coloridos em que você pode ter a oportunidade pesquisar na internet,
ouvir música, fazer exercícios, descansar na rede.
CC: O Fórum Criminal da Barra Funda, na zona Oeste, passou a realizar
as chamadas audiências de custódia, reduzindo as detenções. Qual a
impressão até aqui?
JRN: Essas audiências são uma resposta muito simples para uma ordem
constitucional que determina que o preso em flagrante seja imediatamente
apresentado à autoridade judiciária encarregada de decidir se a prisão
foi bem decretada ou não. Porque, se fizermos uma interpretação adequada
da Constituição, veremos que o primeiro direito fundamental é a
liberdade. Ela é tão relevante que, em países civilizados, como a
Alemanha, existe pena de prisão de uma, duas horas. Para quem tem
vergonha na cara, uma hora de prisão já é uma mácula. “Eu fui segregado
do convívio dos meus semelhantes durante uma hora porque eu errei.”
Agora, aqui no Brasil, um país de democracia recente, trabalha-se com a
liberdade de forma descompromissada. Quando decidimos implantar essas
audiências em São Paulo, o ministro Ricardo Lewandowski [presidente do
Supremo Tribunal Federal] mostrou boa vontade. O secretário de Segurança
de São Paulo [Alexandre de Moraes] é um constitucionalista. A
corregedoria foi favorável, os juízes mostraram boa vontade, os
cartórios extrajudiciais ofereceram pessoal porque não tínhamos
estrutura. Começamos com duas seccionais que passaram a apresentar em 24
horas as prisões em fragrantes. Tivemos o resultado de 38% de prisões
que não foram convertidas em preventivas. Ou seja: do modo antigo,
deixaríamos essas pessoas presas até que houvesse um habeas corpus ou
até que o juiz, ao interrogar esse preso, talvez ao final do processo,
verificasse que não haveria necessidade de tê-lo mantido preso.
CC: Esse projeto vai na contramão do que discute o Congresso, que vem defendendo o encarceramento em massa.
JRN: O sistema penitenciário é outra chaga nacional porque ele é a
única resposta para quem pratica algum delito. A sociedade ficou
imediatista, consumista e... A palavra certa é egoísta. Você quer ficar
livre de qualquer risco e perigo trancando todo mundo. “Vamos reduzir a
maioridade penal, aumentar as penas, instituir a pena de morte para
trazer tranquilidade.” Acho que a sociedade deveria fazer um exame de
consciência. O combate aos efeitos está sendo feito de uma forma
crescente e perseverante, mas e o combate às causas? Por que uma
sociedade produz criminosos cada vez mais jovens? Com a audiência de
custódia, estamos mostrando que prende-se mal no Brasil. Quando você
deixa alguém injustamente preso, cria-se um ressentimento e revolta que
torna essa pessoa um alvo fácil das facções criminosas. O risco para a
sociedade aumenta ao invés de diminuir.
CC: E qual a sua opinião sobre maioridade penal, também discutida no Congresso?
JRN: A maior parte dos atos infracionais praticados por menores não são
graves: uso ou tráfico de droga e crimes contra o patrimônio. Como é
nessa fase que se inicia a delinquência, nós teríamos, no lugar da
internação, como hoje, a liberação total dos jovens e nenhuma
possibilidade de devolvê-los à sociedade pela reinserção social. Seria
uma resposta simbólica que na prática iria tornar a sociedade ainda mais
vulnerável.
CC: Essa alternativa deveria ser discutida depois de se repensar o funcionamento da Fundação Casa e dos presídios?
JRN: Acho que nem antes, nem depois. Precisamos tentar revisar o
Estatuto da Criança e do Adolescente, que não distingue um latrocínio de
um roubo de maçã feito com violência. O Estatuto também não contempla a
psicopatia. Os psicopatas precisam de um tratamento diferente. A prisão
é um mal necessário, há os que não podem deixar de sair, mas a maioria é
que não deveria entrar.
CC: No mês passado, o Datafolha mediu o prestígio das instituições. O
judiciário ficou em 6º lugar, com 35% de aprovação. O senhor acha que
pode haver alguma relação com os recentes casos de abuso de autoridade?
JRN: Eu acho que é mais a questão da morosidade. Não sei se a população
seria tão ingênua em acreditar que a prática folclórica de meia dúzia
possa contaminar um universo de 17 mil juízes. Essa avaliação reflete a
desfuncionalidade da Justiça. Se eficiente, ela seria bem avaliada.
CC: Mas o senhor não acha que a aposentadoria compulsória é uma punição muito branda para juízes que cometem infração?
JRN: Tem de pedir para o Parlamento mudar isso. Nós cumprimos a lei.
Essas são as sanções previstas na lei orgânica da magistratura. Desde
1988 o Supremo tenta editar um novo estatuto e não consegue. Se a
sociedade quiser, ela tem de fazer pressão.
CC: O que o senhor achou da demora da presidenta Dilma Rousseff em indicar o substituto do Joaquim Barbosa no STF?
JRN: Isso criou um problema para a própria presidência porque, em
regra, a aposentadoria é previsível. Sabemos a data exata em que o
ministro vai sair. O ministro Joaquim Barbosa anunciou que sairia em
agosto, como saiu. Talvez naquele momento, em que não havia essa crise
política, teria bastado a indicação de um nome no dia seguinte, e ela
estaria livre da pressão. A demora faz com que cresçam as pretensões, as
bolsas de apostas e a campanha de maledicência. Em lugar de prestigiar
um nome, as pessoas querem destruir os pretendentes.
Fontes: Por Wanderley Preite Sobrinho, revista CartaCapital, foto: Edson Lopes Jr/A2AD/Fotos Públicas.
Fonte: Blog do Sombra