Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Samba, o sangue que corre nas veias da Bahia

Domingo, 7 de fevereiro de 2016
Negro na origem, o samba mesclou música, comida e religião e ensinou o Brasil a sorrir
Por Camila Morais - El País

Dona Dalva, neta de escravos e guardiã do samba de roda na Bahia. Kin Guerra
Um negro arrancado da sua terra é jogado no Brasil sem prévio aviso. Passa seis dias apanhando. No sétimo, busca um alento na memória. Sorri, mas só quando pensa nos seus. Batuca, porque na África, de onde ele veio, esse era o convite para dançar, comer e rezar. Assim ele renova as energias que vão permitir que sua pele maltratada resista uma semana mais sob o sol da lavoura e o látigo do colonizador europeu. É um negro escravizado, trazido ao país no século XVI pelos portugueses que chegaram à Bahia pouco antes. Foi ele quem inventou o samba.



Dona Dalva Damiana, 89, vive na mesma casa em que nasceu, em Cachoeira. Kin Guerra


O samba é hoje o ritmo nacional por excelência. Mas, antes de ser música, ele é esse chamado que reúne os brasileiros ao redor de som e comida para todos, como vem fazendo há séculos. Quem, aqui, não reage sorrindo a um "vai dar samba"? Isso porque o samba nasceu na Bahia, mas se espalhou de norte a sul do Brasil e virou sua principal identidade sonora, renovando ao longo do tempo o seu papel de integração e, principalmente, de resistência. Tão atual que é, ele ainda junta os diferentes, dá alegria e, enquanto o batuque durar, faz a gente esquecer do resto.
Quem remonta essa história é Dona Dalva Damiana, cantora, compositora e sambadeira de 89 anos, que nasceu em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, onde vive até hoje, na mesma casa onde nasceu e viveu com os pais e mais sete irmãos. O espaço é comprido e estreito, cheio de toalhas de flores que decoram suas "poucas posses" e dão ao ambiente aquele inconfundível ar festivo de Brasil. Ampla e aberta, ao contrário de sua casa, Dona Dalva começa a conversar reclamando da idade, que está ficando sem saúde. É só falando de samba que ela deixa de ser uma senhora quase centenária para gesticular e sorrir como uma menina. "Quando o samba começa, os problemas vão embora”, diz.
Neta de uma escrava que fez parte de uma irmandade afrocatólica formada só por mulheres (da qual ela também faz parte hoje), a Nossa Senhora da Boa Morte, símbolo do forte sincretismo religioso baiano e da resistência africana no Brasil, Dona Dalva garante que "samba para o baiano é sangue”. Por isso, fundou em 1961 o Samba de Roda Suerdieck, o mais tradicional do Recôncavo, cujo nome emprestou da fábrica de tabaco onde trabalhou, feito a mãe charuteira, por 32 anos. Foi sua maneira de manter vivo aquilo que desde muito jovem aprendeu a fazer – "grudar uma palavra na outra e jogar em cima uma música” para criar composições que nascem do dia-a-dia, como mostra sua primeira canção:
Venha cá como quiser, ô, jiló
Como quiser venha cá, ô, jiló
Plantei jiló, não pegou
A chuva caiu, rebentou
Eu cortei miudinho, botei na panela
Pensei que era jiló, não é jiló, é berinjela