As forças progressistas estão encurraladas e o golpe de 2016 se esgota em si, incapaz de indicar o caráter do ciclo político que virá
Temer: seu governo busca apenas reescrever a Constituição
A
História tem suas ‘eras’ e a política, como a economia, tem seus
ciclos, e todo ciclo tem, na sequência de sua construção, seus momentos
de apogeu e declínio. Vivemos o “ponto morto” entre um ciclo que se
esvai e um ciclo sucessor, ainda sem face.
A
crise política que alimentou o golpe midiático-parlamentar-judicial
iniciado em 2016 assinala, na História republicana, o esgotamento de um
ciclo político, aquele inaugurado com a “Constituição cidadã”, fruto do
pacto social que possibilitou, em 1985, a transição da ditadura para o
regime democrático tutelado, porque nele o poder decaído sobreviveria,
por algum tempo, em contraste com os processos de redemocratização de
nossos vizinhos, de especial Argentina e Uruguai.
São
os “anos Sarney” aquele período conhecido como “Nova República”, fruto
da implosão do Colégio Eleitoral com a eleição de Tancredo Neves e a
posse do ex-presidente da Arena, partido de sustentação do regime
militar decadente. Simbolicamente, o último ditador – tão impopular
quanto Temer hoje – deixaria o Palácio do Planalto pela garagem, ou
seja, “pela porta dos fundos”. Mas a preeminência castrense
sobreviveria.
O
processo da redemocratização operava segundo a característica mais
marcante de nossa história, a saber, a conciliação pelo alto que acomoda
os interesses da classe dominante e afasta a ruptura, e ignora os
interesses populares. Reformas, sim, mas somente aquelas que consolidam o statu quo.
Esta
é a história da Independência e do Império, e é a história da
República, sem povo, que se consolida mediante o golpe de Estado de
Floriano. O que se segue, até aqui, reza pela mesma cartilha, a começar
pela “revolução” de 30, que altera os governantes preservando o mando
das oligarquias. Era o fim da “República Velha”, era o fim de um ciclo
político, era o início do “ciclo Vargas”.
A
ditadura do Estado Novo (1937-1945), tornada arcaica, é derrubada, sem
traumas ou resistência, e Vargas vai desfrutar de seu exílio voluntário
em Itu, onde aguardará as eleições de 1950 para retornar ao Palácio do
Catete nos braços do povo.
Com
a Constituinte de 1946 inaugurara-se um novo ciclo político,
democrático e liberal, que aos trancos e barrancos, percalços e crises,
golpes de Estado e levantes militares, nos governaria até 1964, quando
se instaura o “ciclo militar” que nos molestaria até 1985.
A
implosão da ditadura militar, e a redemocratização dela consequente,
devera-se à conjunção de inumeráveis fatores e um deles, de certo o mais
significativo, foi a mobilização popular que se nutria no desgaste do
regime militar (um fracasso rotundo sob todos os ângulos) e ao mesmo
tempo a alimentava. Processo lento e longo que manifestara seu potencial
desde as eleições de 1974, com a vitória de 16 candidatos
oposicionistas para o Senado.
Registre-se,
favorecendo o pacto que culminaria na Assembleia Constituinte de 1988 –
requerimento amplamente majoritário na sociedade – o papel de
conscientização e mobilização popular representado pela campanha da
Anistia e pela campanha pelas Diretas-Já (por certo o mais retumbante
movimento político-popular de nossa História). Dado significativo desse
novo clima e fator proeminente nas mobilizações foram, em 1982, as
eleições dos governadores Franco Montoro (SP), Leonel Brizola (RJ) e
Tancredo Neves (MG), todos de oposição e comprometidos com a
redemocratização.
Relembro
esses fatos para enfatizar que, mesmo assim, com todos esses dados
favoráveis, a Nova República e a Constituinte tiveram de ser negociadas
com os militares, já retornados à caserna mas sem haverem, até então,
renunciado à preeminência, por cima do pacto social, de que resultou,
por exemplo, um Congresso ordinário, sem poder originário, com temas
intocáveis, ou de difícil lida, caso da revisão restrita da Anistia (que
mais beneficiava os torturadores), e qualquer possibilidade de
responsabilização dos esbirros da ditadura por seus atos.
Com
os olhos ao mesmo tempo nas ruas e nas casernas, enfrentando
internamente as forças do atraso aglutinadas num bloco autodenominado
Centrão, fez-se, com apoio popular, a Constituição possível nos termos
da correlação de forças encontrada. Ainda assim, uma Constituição de
índole democrática e social, com avanços em face da ordem jurídica da
ditadura, mas sem forças para revolver as estruturas políticas do Estado
herdado.
Apesar
de toda a mobilização popular, de décadas – de que resultou uma Frente
que abarcava quase todas as correntes sociais e o sentimento majoritário
da Nação, a Constituinte, vimos, sofreu contingências e condicionantes,
e a Constituição dela resultante teve de dialogar com as forças do
atraso.
A Carta, porém, era o ponto de partida e conditio sine qua non para
a redemocratização, ou seja, ela assinalava o fim da ordem autoritária e
deixava livre e bem lavrado o caminho para a ordem democrática. Com
ela, e respeitada a correlação de forças, encerrava-se o ciclo
autoritário inaugurado em 1964, e inaugurava-se aquele que seria rompido
com o golpe de Estado midiático-parlamentar-judicial de 2016. O regime
constitucional de 1988, todavia, cumpriu com seu papel, até aqui, ao
presidir por quase 30 anos inédita continuidade institucional na
República. A “Carta cidadã”, deformada por algo como uma centena de
emendas, sobreviveu, apesar dos ataques que passou a sofrer desde sua
promulgação, acusada de dificultar a governabilidade pelos “excessos de
direitos sociais” que teria abrigado.
Esgotado
o ciclo iniciado em 1985, vivemos o transe representado pela realidade
de hoje em face da ignorância do futuro, um ponto morto, quando o
passado, vívido no presente, impede o nascimento do novo.
Para
as forças democráticas, atravessar o Rubicão, hoje, é, a um só tempo,
derruir o regime ilegítimo e construir as bases da nova ordem
republicana, obra de futuro, inaugurando novo ciclo constitucional.
Obra, porém, que será determinada pela correlação de forças indicada
pelo processo histórico, e hoje estamos muito longe do respaldo popular
que as forças democráticas e progressistas desfrutavam durante a
Constituinte de 1988.
O
regime decorrente do golpe não apenas fraturou a ordem democrática,
como ainda investe na reescrita da Constituição, amputando-a dos avanços
de 1988. Nessas agressões, uma faina reacionária e conservadora,
obscurantista, o Poder Executivo tem a companhia tanto do Congresso
quanto do Poder Judiciário, em todas as suas instâncias, desde os juízes
de piso até os tribunais superiores. E todos o aplauso dos meios de
comunicação de massa.
Pois
seu objetivo essencial – laborando a contra reforma – é a destruição do
legado do “lulismo” o projeto interrompido de um governo de
“centro-esquerda”, de um regime popular, caracterizado pela emergência
política das massas, a opção preferencial pelos pobres, o resgate do
papel do Estado como agente de desenvolvimento e a distribuição de
riqueza e renda. Na realidade, a “era Lula” foi a retomada da tradição
trabalhista do varguismo, assinalada pelo binômio proteção dos
trabalhadores e soberania nacional, para ficarmos em dois indicadores.
Todo
ciclo tem seu limite histórico e esse ao qual me refiro deu os
primeiros sinais de esgotamento por volta de 2013. A crise econômica
agravou a crise política e isso inevitavelmente teria resposta na
recepção popular. A difícil eleição de 2014, cujo recado a presidente
parece não haver entendido, foi apenas um sinal.
O
golpe de 2016 se esgota em si, sem condições de definir o caráter do
ciclo que está sendo construído nas entranhas do processo histórico. O
que virá, na sua sequência, não resultará de um determinismo histórico,
não cairá do céu como presente dos deuses. Seu caráter será determinado
pela capacidade de organização e unidade das forças populares e
decorrerá do pacto do novo ciclo histórico. Com os dados de hoje,
todavia, nada nos assegura a retomada do desenvolvimento econômico,
socialmente inclusivo, democrático e soberano.
Neste
momento de verdadeiro “ponto morto”, um estágio entre o que foi e o que
será, a tarefa tática fundamental dos que aspiram ao avanço é a defesa
da ordem constitucional, o respeito à estrita legalidade se expandindo
para as eleições de 2018, que precisam ser asseguradas. Mas é preciso
evitar que a saída da crise de hoje se conforme em mais um acordo pelo
alto, a cediça solução prussiana, que cuida de atender aos interesses
exclusivos da classe dominante em prejuízo das massas.
*Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia