Mas,
se as agressões vêm de longe, é preciso dizer que jamais nossa ordem
constitucional foi tão descumprida e afrontada como nos últimos tempos,
pois à frente das ofensas está o Poder cuja missão e justificativa de
existência é sua proteção.
Por
Roberto Amaral*
O Judiciário, mais que o Executivo pervertido, é instrumento de autoritarismo
O
Congresso Nacional, que tanto a tem ofendido, comemorou os 29 anos de
atormentada vigência da Constituição de 1988, a da redemocratização,
texto inaugural da Nova República, ciclo histórico-político cujo
melancólico esgotamento estamos assistindo. Cercada por réus, presentes e
futuros, a começar pelos dirigentes das duas casas legislativas, a
ministra Cármen Lúcia, presidente do STF, saudou a efeméride, lembrando a
frase bordão com a qual o presidente da Constituinte, o saudoso
deputado Ulisses Guimarães, anunciou o novo texto, ditando os limites de
seu império.
Da
Constituição, dizia ele, e repetiria a ministra, pode-se “Discordar,
sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”. Na
solenidade bizarra, a constitucionalista ministra falava em nome de um
Poder Judiciário que sistematicamente descumpre a Constituição, e
dirigia-se a um Congresso useiro e vezeiro em afrontá-la.
Descumprida
vem sendo a Carta desde sua promulgação, no que tanto se esmeraram os
governos Sarney e FHC, ao ponto de hoje, após 96 emendas e uma série de
decisões ‘criativas’ do STF (e mesmo ‘interpretações extensivas’ de
juízes de piso) ser quase tão-só um rol de artigos e parágrafos, sem a
costura de uma ordem sistemática, perdida, desfeita a indispensável
visão de ordem político-jurídica, carente enfim de uma clara feição
ideológica, na medida em que dela foi surrupiado aquele projeto de
sociedade democrática que a fez merecer o batismo de ‘Constituição
cidadã’.
Mas,
se as agressões vêm de longe, é preciso dizer que jamais nossa ordem
constitucional foi tão descumprida e afrontada como nos últimos tempos,
pois à frente das ofensas está o Poder cuja missão e justificativa de
existência é sua proteção.
Descumpre-a
e a ofende e a afronta o STF quando admite a prisão após condenação em
segunda instância, mandando às favas (como gosta o inefável Gilmar
Mendes) a alínea LVII do artigo 5º, que dita os Direitos e Garantias
Fundamentais: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória”. Assim, nossa pretensa Corte
Constitucional, candidata a poder moderador da República, põe por terra
um princípio universal do direito ocidental, qual seja, a presunção da
inocência.
O
STF ofende à Constituição e ofende a história do direito brasileiro
quando decide que a lei penal (no caso, dispositivos da chamada ‘lei da
ficha limpa’) pode retroagir para prejudicar o réu, levando-nos de volta
ao estágio mais primitivo da ciência criminal, e, mais uma vez, e
lamentavelmente não pela última vez, rasgando o já citado art. 5º,
quando, em sua alínea XL – com a clareza da luz do sol – prescreve que
“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu’. Esse
retrocesso foi decidido pelo voto de minerva da ministra Cármen Lúcia,
constitucionalista em seus tempos de Belo Horizonte. Eis a conclusão de
seu voto: “Essa matéria foi exaustivamente analisada pelo Tribunal
Superior Eleitoral, prevalecendo esse entendimento [da retroatividade] de maneira correta”.
São
exemplos marcantes que, todavia, não esgotam o rol dos direitos
ofendidos, fruto, dentre outros fatores, da cultura
autoritária-penalista que permeia como um todo o poder judiciário
brasileiro. São as ‘flexibilizações’ interpretativas, o ‘criacionismo’
de conveniência no qual se investem os ministros, ocupando a
competência privativa do constituinte, sem qualquer legitimidade, pois
desprovidos daquele mandato que apenas a soberania popular pode
outorgar.
Violência
judiciária, portanto ofensa à ordem constitucional, é o cumprimento de
pena cerceadora da liberdade – o mais importante bem depois da vida de
que desfruta o cidadão – sem investigação, sem processo, sem
julgamento, sem sentença condenatória. Afronta a Constituição fazer das
medidas cautelares verdadeiras penas, aplicadas sem julgamento, com a
transformação da prisão preventiva em pena sem prazo. (No Brasil, cerca
de 40% dos presos estão cumprindo pena sem julgamento).
Ofende
à Constituição a aplicação do Direito depender não da ordem legal, mas
do ânimo do juiz ou do nome do acusado. Assim, a nomeação de Luiz Inácio
Lula da Silva para a chefia da Casa Civil da presidente Dilma Rousseff
constitui tentativa de obstrução da Justiça, e nesses termos é vedada,
enquanto a nomeação de Moreira Franco para a chefia da Secretária-geral
do Planalto, no atual governo, garantindo-lhe foro privilegiado que o
livra presentemente de inúmeros processos, é, diz o STF, ato
republicano.
Em
qual país civilizado do mundo (excluída, portanto, alguma área síria
controlada pelo estado islâmico), pode uma só pessoa, o mesmo juiz,
cumprir, no mesmo processo, simultaneamente, os incompatíveis papéis de
investigador, promotor e julgador, caso que é do juiz Sérgio Moro nas
ações com as quais persegue o ex-presidente Lula.
Exorbita
de seu poder o STF quando, qualquer que seja a motivação, interfere
nos ritos próprios do Congresso. Tergiversa e produz um direito caolho
quando variam suas decisões na medida em que variam os nomes dos
senadores que pretende ora punir, ora proteger.
Ofende
à ordem constitucional a pletora de liminares que permanecem sem
decisão de mérito. A avalanche de decisões monocráticas – conflitantes
entre si, aumentando a insegurança jurídica – prosperam sem a revisão de
uma Turma ou do Plenário, transformando o STF em onze tribunais, ou
cada ministro em um mandarim, onipotentes, olímpicos, inalcançáveis
pelo Direito que rege a cidadania. Porque fazer os ministros seus
colegas cumprirem o regimento e respeitar os prazos é atributo e dever a
que tem renunciado a presidência.
Triste República, quando o Judiciário, mais que o Executivo pervertido, é instrumento de autoritarismo.
Como
sempre, o ministro Gilmar Mendes é a medida dos desacertos do STF que
têm levado o Poder Judiciário à mais grave crise de legitimidade de sua
história. Esse juiz, objeto de vários pedidos de impeachments barrados
no Senado Federal e por seus colegas no STF, segura processos durante
sete anos, derruba liminar que ele mesmo concedera e volta a retirar o
caso da pauta. Concede habeas corpus a
réus que integram sua rede de relações, e não se peja de julgar
constituintes de sua mulher, advogada sócia do escritório de Sérgio
Bermudes – que defende Eike Batista, julgado por Gilmar. Na Adin
interposta pelo Conselho Federal da OAB contra o financiamento eleitoral
por empresas, Gilmar Mendes pediu vista do processo e engavetou os
autos em seu gabinete por quase dois anos. Isso, quando a matéria, por
maioria de votos, já havia sido decidida. Ninguém na Casa acusou esse
comportamento como obstrução da justiça…,
O
Poder Judiciário transformou-se num sistema cujo objetivo, esquecido o
dever de promoção da Justiça, é a criminalização, a punição. Trata-se de
um sistema pré-Beccaria, sedento de holofotes e fama (que disputa com
o Ministério Público e a Policia Federal), especializado em perseguir,
sob o falso pretexto de procurar garantir a eficácia de suas metas (a
condenação). Os holofotes, desde o chamado mensalão, determinam quem é
culpado ou inocente. O ativismo partidário, praticado dentro e fora dos
autos, praticado nas sessões do STF transformadas em palanques, em
entrevistas, em palestras, em reuniões públicas, o boquirrotismo de
ministros e juízes notórios… tudo isso implica graves prejulgamentos,
antecipação de voto, ingerência descabida na política.
Cabe
à ministra Cármem Lúcia, pois que o Conselho Nacional da Magistratura
já foi declarado incompetente, chamar às falas os ministros que mandam a
Constituição e o Regimento do STF às favas.
A
decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) por seis votos a cinco (como
quase sempre), segundo a qual as escolas públicas podem oferecer ensino
religioso confessional, permitindo que as aulas sejam ministradas pelo
representante de apenas uma determinada crença, é retrocesso que vem
facilitar o fundamentalismo religioso que tanto atraso tem imposto à
política brasileira e que fere a essência do Estado laico, conquistado
pela República. A teoria do domínio do fato, importada para provocar as
consequências conhecidas, envergonha a consciência jurídica.
O
mais grave da crise brasileira, por consequência de tudo isso e o mais
que ainda se pode demonstrar, é a autodeslegitimação do Judiciário,
mediante a erosão da confiança da sociedade, que vê desmoronar o ultimo
abrigo da cidadania. A razão do Olimpo foi levada a extremos: os deuses
deixam de aplicar a lei, tornam-se a própria lei, e a Constituição uma
obra aberta, costurada a cada dia por suas decisões.
Enquanto
o poder judiciário, liderado pelo STF, se apequena, a crise – que
transita da política para a institucionalidade em face da falência dos
três Poderes – nos leva ao questionamento da legitimidade da ordem
política, o que abre espaço para tudo o que se possa imaginar, e se pode
imaginar o mais grave possível, quando vemos, na base da estrutura
política vencida, a frustração da alma nacional, quando a esperança de
futuro transita do temor ao desconhecido para a expectativa do trágico.
Um guerreiro que parte –
Aos 82 anos de idade e uma vida toda dedicada à construção socialista,
morreu (15/10) meu querido amigo Ricardo Zarattini, antigo militante do
Partido Comunista Brasileiro, e, depois do golpe, militante do PCR
(Partido Comunista Revolucionário), do MR-8 e da Ação Libertadora
Nacional (ALN). Na campanha da redemocratização ingressa no Partido dos
Trabalhadores, onde permaneceria até seus últimos dias. Preso e
condenado pela ditadura (1968), foi um dos 15 presos políticos soltos
em troca da libertação do embaixador (EUA) Charles Burke Elbrick.
Exilado no México e em Cuba, retornou ao Brasil para se integrar na luta
contra o regime militar. Muito do que usufruímos hoje de liberdade
devemos ao seu estoicismo.
Roberto Amaral
*Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia