Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 28 de março de 2019

O comovente tributo de Apollo Natali à "Angélica da Praça de Março"

Quinta, 28 de março de 2019
Do Blogue Náufrago da Utopia

"Quem é essa mulher
que canta sempre este estribilho:
Só queria embalar meu filho
que mora na escuridão do mar?"
 (Chico Buarque)

Mais um março chegou e todo o março que chega reaviva o de 1964, de opressivas lembranças.

Até Chico Buarque lançar a canção “Angélica”, poucos conheciam a história que a memória deste março traz à tona, da mãe brasileira que teve seu filho torturado e morto pela ditadura de 64 e seu corpo jogado no mar.

Em 1971, em plena ditadura, o filho da estilista Zuzu Angel, Stuart Angel, militante do MR-8, já muito debilitado pelas torturas, foi amarrado à traseira de um jipe da Aeronáutica e arrastado com a boca colada ao cano de descarga do veículo. O corpo foi atirado no mar.

Zuzu Angel denunciou incansavelmente o assassinato e a ocultação do cadáver de Stuart. Invadiu tribunal militar e lá gritou valentemente sua revolta de mãe. Foi vítima fatal de um acidente automobilístico suspeito, em 1976.
Chico Buarque, amigo a quem ela escrevera carta levantando a possibilidade de ser também assassinada pelos militares, homenageou-a com “Angélica”, lançada em 1981, quando o Brasil começava a desmontar a engrenagem repressiva dos chamados anos de chumbo.

Quantas mães não puderam embalar seus filhos torturados e mortos pelos EUA e seus acumpliciados planeta afora? Tantas mães e filhos, tidos como obstáculos à marcha dos legionários americanos e seus cúmplices a varrer democracias do mapa e barrar tentativas de reformas sociais em favor dos oprimidos. Em troca do quê? Unicamente de deixar suas empresas firmemente no comando pelo mundo e garantir lucros e remessas para o exterior.

Foi num março, o de 1964, que começou a fascistização implacável do Brasil. Fascismo, teu nome é autismo social, indiferença aos clamores e direitos populares, enfermidade a se espalhar ainda hoje no sangue da nação. Passado meio século, este março de 2015 nos adverte que nossa democracia se chama restos mortais da ditadura.
A par da indignação e espanto com as torturas e mortes que todo março nos traz à memória, há uma lição a ser revista em todos os marços vindouros: entender que, em sua semeadura universal de ditaduras brutais e corruptas –em troca tão somente do lucro das empresas estadunidenses–, assassinos e torturadores, com seus métodos não muito agradáveis, eram sempre bem-vindos nos países cujos governos eram subservientes aos EUA. 

E bem-vindos foram, por exemplo,, no Brasil. Encontraram aqui terra fértil ao plantio do fascismo e aplicados aprendizes da tortura.

Quantos marços passarão até se aprender que terroristas são eles e não alguns poucos milhares de combatentes da liberdade, que lutaram contra o arbítrio por um ideal de justiça e por solidariedade para com os explorados e oprimidos –entre os quais Stuart Angel?

Todo março é mês de se lembrar que em El Salvador e na Guatemala, não houve apenas matança comum. O principal componente lá foi a tortura brutal e sádica, batendo bebês contra pedras, pendurando mulheres pelos pés com os seios cortados e pele do rosto escalpelada, para sangrarem até a morte, ou cortando cabeças e colocando-as em estacas.
A sensível homenagem de Chico Buarque à estilista...

Quantos marços vão chegar até se aprender que o objetivo dos EUA, com suas carnificinas, foi sempre o de esmagar qualquer verdadeira democracia e sufocar o mais leve suspiro de liberdade, em troca de alguns trocados que nem chegam a beneficiar a sua própria população pobre e oprimida?

Mães brasileiras não fizeram panelaços nas praças de Março por seus filhos assassinados, como fizeram as mães argentinas na Plaza de Mayo. Na ditadura brasileira houve torturas e mortes mais estripadoras do que no caso de Stuart Angel.

Mas nenhuma outra mãe Zuzu gritou como ela, onde e por quê. As Zuzus do mundo queriam apenas embalar seus filhos e tirá-los da escuridão do mar. Como as próprias mães estadunidenses, que tiveram seus filhos mortos em guerras longínquas por pão e banana.
...e o filme dirigido por  Sérgio Rezende, completo.

Toque do editor: na série de artigos alusivos aos 55 anos do Golpe de 64 que o blog está publicando desde 2ª feira, não poderia faltar a participação do inesquecível colaborador (e meu amigo querido ao longo de três décadas) Apollo Natali. 

Até o final de sua vida, octogenário, o Apollo continuava não se conformando com os horrores que viu serem impostos ao povo brasileiro durante os anos de chumbo.
Dentre uma meia-dúzia de crônicas e artigos que cumpririam bem tal papel, escolhi esta evocação do monstruoso assassinato de mãe e filho, não só por haver sido um dos grandes textos do Apollo, mas pelo valor sentimental que possui para mim.

É que, tendo lançado meu primeiro blog (Celso Lungaretti — O Rebate) em 14 de janeiro de 2007, logo no dia seguinte publiquei tal crônica do Apollo, a primeira de mais de uma centena de preciosidades de sua autoria que tive o privilégio de postar n'O Rebate e no Náufrago.