Quinta, 23 de setembro de 2021
Artigo publicado originariamente em 14/09/2021 no Monitor Mercantil
Por Felipe Quintas e Pedro Augusto Pinho*
Metafórica série de três pequenos artigos, que mostram a nossa convivência com um sistema em tudo oposto aos nossos interesses: o poder financeiro e sua pedagogia colonial. Pobres felinos que dão alegrias a seus donos, mas o rabo de fora foi um ditado que nos surgiu tão espontaneamente que a ele nos sujeitamos, como se fosse um pet(!).
“A tendência da competição é gerar seu contrário: a concentração. Portanto, para resguardar algo da economia de mercado, há que salvá-la de si mesma. O desenvolvimento industrial da Inglaterra foi mais lento do que o da Alemanha, cuja indústria é menos concentrada do que a britânica” (Adriano Benayon, Globalização versus Desenvolvimento, Escrituras Editora, SP, 2005).
A tucaníssima revista Piauí, nº 179, de agosto/2021, publica matéria de Luigi Mazza, “O apagão”, o caos na educação. Nenhum reparo à radiografia do Ministério da Educação (MEC) sob a gestão bolsonária e a obra do pastor, tremendamente evangélico, que o dirige(?).
Diversas são as considerações possíveis e necessárias que decorrem da situação que nos encontramos, hoje, no Brasil. Muitas têm origem aqui mesmo, nas elites que dominam este país desde a chegada de Tomé de Souza. Outras, na revolução silenciosa que lançou o mundo, ao menos o ocidental, ou aquele que podemos denominar “mundo Otan” ou, mais extensamente, anglo-estadunidense-judaico-europeu continental, nas referências de suas origens ou matrizes, no domínio de capitais apátridas, onde nem mesmo faltam os marginais, das drogas, contrabandos e ilícitos de toda ordem, residentes em paraísos fiscais.
Especifiquemos um pouco mais estes capitais, pois suas força e presença, em toda estrutura da sociedade, são a base deste mundo de ódio e de mortes.
O capital financeiro, como sabemos, começa, como elemento de poder, na sociedade inglesa medieval, a partir da propriedade fundiária, e ganha dimensão enorme com o absolutismo, quando a centralização político-territorial efetuada pelos reis só foi possível devido ao conúbio entre eles e os prestamistas, que, na prática, tornaram-se os fiadores do poder e os controladores das finanças régias, sob cujos auspícios desenvolveram-se o comércio internacional e as manufaturas nacionais, subjugados ao poder financeiro emergente.
Assim, o poder fundiário passa a mercantil financeiro na Europa do século 15 e vai se transformando, exceto na Inglaterra, em que as finanças dominam os demais poderes, inclusive o industrial. É história, basta saber ler.
Mas o poder industrial, independente do poder financista, se revela triunfante na colônia inglesa do outro lado do Atlântico, no que serão os Estados Unidos da América (EUA). Os Pais Fundadores da nação anglo-saxã-americana, George Washington, Thomas Jefferson e Alexander Hamilton à frente, sabiam que de nada valeria a independência política sem a independência econômica frente aos comandos financeiros londrinos. A Independência estadunidense não foi apenas contra a Coroa inglesa, mas contra seu esteio, a banca britânica.
Temos, então, por mais de dois séculos, a luta entre os capitais financeiro e industrial pelo comando das relações monetárias e materiais. Atenção: não se trata de uma luta pela eliminação de um ou de outro, mas pela subordinação de um ao outro.
No fim do século 20, após várias crises construídas, com a mídia dominada, o capital financeiro triunfa. Mas com uma porta aberta que transformará seu estilo e poder: as desregulações. Podemos até, com benevolência para estes criminosos, dizer que deram um tiro no pé. Porém, também é documentado, quem melhor aproveitou as desregulações, os paraísos fiscais, a facilidade e rapidez dos fluxos monetários foram os capitais “a vista” (cash) das drogas, de contrabandos de bens, pessoas e órgãos humanos, das prostituições, armas, guerras, corrupções e todos os crimes de colarinho branco ou sem colarinho algum.
A grande transformação do domínio financeiro nem foi econômica, mas psicossocial. Mudaram os valores da sociedade Otan. Basta lembrar que o trabalho não mais dignifica o homem, mas a riqueza, venha de onde vier, ou a astúcia em contornar a lei ou o costume que é valorizado. A antiga ética protestante do trabalho diligente – encontrada, também, em países católicos, influenciados por ética monástica semelhante – dá lugar à ética hedonista e imoral da riqueza imediata, que, por definição, prescinde do trabalho, assemelhando-se, então, ao roubo e à pilhagem.
Mas, como é evidente, há base na economia, apenas não se dá na economia produtiva, mas na especulativa, no cassino financeiro. Vejamos três indicadores difíceis de serem acompanhados, pois revelam a maior alteração que esta mudança, do poder industrial para o financeiro, provocou.
O que significa o Produto Interno Bruto (PIB) senão a produção, o mundo dos bens reais. Podemos exemplificar que o PIB é o automóvel que está a sua frente, você o vê, o usa e o transfere fisicamente.
Mas este automóvel pode estar sendo representado por um papel de dívida. O valor que obrigará o pagamento para a transferência do bem físico, ou se o automóvel constitui ativo de uma empresa, a ação que corresponderá seu valor no patrimônio daquela companhia.
O papel de dívida e a ação são ativos financeiros, ou seja, não têm realidade material, mas um sistema que protege o detentor do papel, que pode mudar conforme o interesse do poder dominante. Ele não tem a materialidade do automóvel. Uma cota de um Fundo de Investimento Imobiliário (FII) pode representar um imóvel ou outros papéis que o representem, e, obviamente, geram garantias distintas.
E, ainda, há um papel mais distante da realidade, são os derivativos. No exemplo do automóvel, não teríamos um papel representando o automóvel, mas centenas de automóveis em papéis, quando a materialidade é de apenas um.
Temos então o PIB, que mais se identifica com o mundo real, os ativos financeiros, que já se distanciam bastante, e o mundo dos derivativos, totalmente independente da realidade.
Não conseguimos ter para a mesma data estes três valores, mas os números obtidos, de entidades internacionais de economia e finanças são muito expressivos:
O PIB mundial em 2020 foi avaliado em US$ 85 trilhões.
Os ativos financeiros mundiais, em dezembro de 2017, eram computados em US$ 382 trilhões. Podemos imaginar que, em 2020, seriam mais do que 4,5 vezes o PIB daquele ano. Estes ativos financeiros representam a soma das ações negociadas em bolsas de valores e de empresas fechadas pelos seus patrimônios líquidos, dos títulos de dívida, pública e privada, títulos imobiliários negociados no mercado e por fundos de “private equities”.
Porém o mais fantástico eram os derivativos que apenas 14 grandes bancos internacionais produziram em 2014: US$ 710 trilhões. Uma incomensurável crise ocorreria se os possuidores destes papéis resolvessem realizá-los nos bens que deveriam representar. Os derivativos em 2020, com toda certeza, representariam muito mais do que oito PIBs.
Ou seja, a grande mudança das finanças no poder foi a transformação de uma economia de bens reais por uma economia de miragens, onde falsas realidades são criadas e replicadas incessantemente para mascarar as atuais relações de dominação, que atualizam o espírito da pirataria ao estado da arte da vigarice, a partir de instrumentos contábeis, especulativos e midiáticos criados apenas para essa finalidade.
Diante desta fantasia, podemos então esperar que muitas outras irrealidades tomem conta da sociedade. Já vimos o rabo que o gato deixou de fora. Vamos procurar descrever este rabo felino.
*Felipe Maruf Quintas é doutorando em Ciência Política.
*Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.
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Fonte: Monitor Mercantil