Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

UMA TÁTICA SUICIDA?

Quarta, 29 de setembro de 2021


Por Fernando Tolentino


É possível que exista, mas desconheço algum companheiro da esquerda ou mesmo do campo democrático que não tenha como indispensável ter ao seu lado os militantes do PDT na terrível disputa que teremos pela frente em 2022. 

Seja por aderirem ao nosso candidato, se este for ao segundo turno contra o representante da direita, como a tendência parece indicar, ou por nos integramos a outro nome que assuma o compromisso de resgatar o patrimônio e os interesses nacionais, as causas dos trabalhadores e dos segmentos excluídos da sociedade. 

Não só isso. Temos claro que é natural estarmos juntos nas lutas que antecedem a próxima campanha eleitoral e, se vitoriosos contra a direita em 2022, os militantes que estão historicamente ligados ao trabalhismo são parceiros preferenciais em um futuro governo. 

E ninguém tenha dúvida de que assim, juntos, estaremos. 

Mas, hoje, há infelizmente outra grande certeza. Por incrível que possa parecer, parte dos pedetistas está sendo arrastada para no mínimo uma indefinição ao ficar claro o confronto entre esquerda e direita no segundo turno do ano que vem caso tenhamos uma repetição do quadro de 2018: o PT, agora quase certamente representado pela candidatura de Lula, e a extrema direita, tendo como candidato o arremedo de fascista Jair Bolsonaro. 

E o que leva a tão incrível contradição? Como imaginar eleitores de esquerda, talvez até alguns socialistas, hesitantes entre um candidato que reunirá todo o restante do espectro da esquerda e dos democratas e, do outro lado, quem representa a continuidade da proposta de demolição de patrimônio e direitos sociais que inclusive trazem à memória o nome de Getúlio Vargas?

A verdade é que se trata tão somente da possível consequência de uma estratégia de "marketing" definida para a candidatura de Ciro Gomes.

É certo que Ciro Gomes é um dos mais preparados políticos de hoje no Brasil. Uma rápida consulta à sua biografia é o suficiente para deixar isso claro. 

Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará, foi professor de Direito Tributário e Direito Constitucional, chegando a atuar como pesquisador visitante na Harvard Law School.

A política está no seu DNA. Filho e sobrinho de prefeitos de municípios cearenses (Sobral e Itapipoca), elegeu-se deputado estadual em 1979. Concorrera pelo PDS, o sucessor da ARENA, partido criado pela ditadura para lhe dar sustentação política.

Além dele, dois de seus irmãos enveredaram pela política. Cid Gomes governou o Ceará por dois mandatos e Ivo Gomes é o atual prefeito de Sobral, que já teve o próprio Ciro e o pai como prefeitos.

Em 1983, migrou para o PMDB, seguindo a liderança de Tasso Jereissati e participando da campanha das Diretas Já no ano seguinte. 

Em 1990 filiou-se ao PSDB, onde já estava Tasso Jereissati. Daí, tornou-se ministro da Fazenda (setembro a dezembro de 1994) no governo de Itamar Franco, época em que se implantou o Plano Real.

Em 1998, tentou sua primeira candidatura à Presidência pelo PPS, ao qual se filiara em 1997. Abocanhou 10,97% dos votos.

Resolveu arriscar mais uma vez em 2002 (ainda pelo PPS) e conquistou 11,97% da votação. 

Com a vitória de Lula, assumiu o Ministério da Integração Nacional, permanecendo de janeiro de 2003 a março de 2006, quando se afastou para concorrer a deputado federal. 

Havia se filiado ao PSB em junho de 2005 e sua candidatura seria decisiva para que o partido superasse a cláusula de barreira.

Em 2013, Dilma Rousseff já planejava a campanha à reeleição no ano seguinte (2014). O PSB pretendia lançar a candidatura do então governador de Pernambuco, Eduardo Campos (com a sua morte em trágico acidente aéreo, lançou Marina Silva). 

Insatisfeito com a orientação do partido, Ciro Gomes deixou a legenda e filiou-se ao PROS, que acabara de obter registro. 

Dois anos depois (2015) ingressou no PDT, pelo qual voltou a disputar a Presidência em 2018. 

Nesta eleição, chegou a ser convidado por Lula para ser o seu companheiro de chapa, como candidato a vice-presidente, mas não aceitou. Lula foi afastado da disputa por Sérgio Moro e o PT lançou Fernando Haddad.

Ciro ficou fora do segundo turno, ao qual tiveram acesso Bolsonaro e Haddad. Mas obteve a terceira melhor votação, que se elevou a 16,98%, bem acima dos alcançados nas duas tentativas anteriores. 

Numa eleição em que se manifestava forte rejeição ao PT, fruto especialmente da campanha pelo "impeachment" de Dilma e dos reiterados processos para inviabilizar judicialmente qualquer possibilidade de Lula voltar à Presidência, Ciro fez uma campanha em que se colocou como alternativa a Bolsonaro e Haddad. 

Animado pelo resultado e corrosão de Bolsonaro junto às suas bases eleitorais, Ciro entendeu ser a terceira via, que poderia sair vitorioso em 2022. E adotou para isso a tática de tentar ganhar os votos que Lula mostrou ter na esquerda e, além disso, os que o veem como a possibilidade real de livrar o País do inferno criado pelo governo Bolsonaro. 

Lula e o PT passaram a ser os adversários preferenciais de Ciro, a ponto de os ataques à Bolsonaro ficarem em plano secundário. 

Até parecia um caminho que poderia surtir efeito. 

Ciro só não contava com a solidez que adquiriu a alternativa Lula. Além de candidato natural da base petista, do PCdoB e de outros partidos de esquerda,  como PCO, PCB e UP, conseguiu romper as resistências antes existentes no PSOL. Amplos setores do PSB passaram a vê-lo também como o nome capaz de garantir a derrota de Bolsonaro. 

Mais que isso, é enorme a avidez da sociedade de se ver livre de Bolsonaro, agora visto como um arruaceiro e paspalho. Lula surge como uma possibilidade de bani-lo definitivamente. E, assim, passou a representar um impedimento para que se consolidem outros nomes lançados como hipóteses de terceira via, como Luciano Hulk (que já desistiu de concorrer), o ex-juiz e ex-ministro Moro (que parece seguir no mesmo caminho), João Dória, o ex-ministro Mandetta, o apresentador Datena, o governador gaúcho Eduardo Leite ou os senadores Rodrigo Pacheco, Alessandro Vieira e Simone Tebet.

Ciro acaba se misturando a tantas alternativas. 

Mas o pior para ele é que se torna vítima de sua própria tática eleitoral. Mais que todos, a sua provável base eleitoral quer ter a certeza de que Bolsonaro seja uma página virada. E não acompanha a sua virulência nos ataques a Lula. Ao contrário, não vê como Ciro suplantá-lo e teme o risco de que isso só sirva para abrir espaço a um segundo turno, em que Lula possa chegar enfraquecido. Daí, os seus virtuais adeptos tendem a migrar para Lula, na ânsia de liquidar a fatura contra Bolsonaro no primeiro turno.

Fernando Tolentino