Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

sábado, 16 de dezembro de 2023

As agruras de Lula no presidencialismo mitigado

Sábado, 16 de dezembro de 2023

As agruras de Lula no presidencialismo mitigado

por Roberto Amaral*
 (Autor de História do presente- conciliação, desigualdade e desafios. Ed. Expressão Popular e Books Kindle)


Deve-se a Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936) esta frase lapidar que resume a formação autoritária de nosso país: “A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”. A assertiva permanece dolorosamente atual. A classe dominante brasileira jamais se conciliou mesmo com a democracia clássica das liberdades formais, puramente política, à qual se referia Sérgio Buarque. Assim a casa-grande, que fez o império e proclamou a república, assim seus herdeiros de hoje, o agronegócio primário-exportador, e os especuladores da Faria Lima, o chamado “mercado”, que controla o mais reacionário Congresso de quantos tem notícia a historiografia brasileira. Golpear a democracia, qualquer, quando ela logra sobreviver, é a alternativa de que os donos do poder sempre lançam mão (e muitos são os instrumentos de que dispõem) quando lhes parece que as nuvens no horizonte longínquo insinuam a formação de governos (logo classificados de “populistas”) preocupados ora com o desenvolvimento nacional soberano, ora com a simples proteção dos deserdados do capitalismo, e assim buscando promover algum trabalho, alguma previdência social, alguma valorização dos salários, um pedaço de terra para nele o sem teto e sem terra trabalhar e matar a fome. O varguismo juntou essa duas pontas, e é conhecida a safra que colheu.

Do mal-entendido apontado por Sérgio Buarque se desdobra a intermitência democrática, relembrada recentemente por José de Souza Martins (“O país dos intervalos democráticos”. Valor, 6/10/2023). As experiências democráticas, no Brasil, são sempre pro tempore. A análise se conforma na república, pois seria de serra acima pensar em algo não autoritário, não reacionário, seja na colônia seja no império, fundado no latifúndio e no escravismo, no voto censitário e no poder moderador do monarca, que a caserna tenta tomar para si. Mas na República dos fardados e da lavoura mineiro-paulista, aquela que chega aos anos 1930, algo com ares de ordem democrática (na sua estrita acepção política, anos-luz distante de avanços sociais) apenas se pode considerar o regime nascido com a efêmera constituição de 1934, incompatível, porém, com o projeto do caudilho que já habitava o Palácio do Catete. A promessa weimariana é devorada pelos oito anos da ditadura do “Estado Novo”, nascida em 1937 e derruída em 1945 pelas mãos dos mesmos generais que a haviam instituído e sustentado. Finalmente nos encontrávamos próximos de um processo eleitoral (ainda que eivado da fraude que o deslegitima), e teríamos uma constituinte, em 1946, substituindo a outorga de príncipes e ditadores. É a nossa intermitência democrática, limitadamente formal, mas que, aos trancos e barrancos, atravessando golpes e tentativas de golpes de Estado,  nos conduz até 1964, e ao reencontro com  a realidade de nosso atraso político: o golpe militar de 1º de abril, que nos impôs 21 anos de ditadura com seus torturadores impunes e os cadáveres insepultos de suas vítimas, e a tragédia política que ainda hoje nos afeta, como mostra a história recente.

De uma forma ou de outra pode-se dizer que o intervalo que vem da constituinte de 1988 aos dias de hoje consigna 35 anos de algo muito semelhante a um período democrático,  que nos pede um brinde na próxima virada de ano. Mas a história não é linear.
 
Há transformações sociais e econômicas que perfuram a superfície conhecida, ameaças que falam à qualidade do regime, exigindo denúncia e combate que começa com sua análise, e o ponto de partida é a tomada de consciência do refluxo do pensamento e da ação dos partidos de esquerda, uma crise que não é de nossos dias, pois remonta à fratura do socialismo real, mas que se agrava entre nós a partir dos primeiros sucessos eleitorais de centro-esquerda, que levaram nossas organizações e nossas lideranças a confundir tática eleitoral (transformada em técnica mercadológica comum à esquerda e à direita) com estratégia. Ao fim e ao cabo, nos tornamos todos “social-democratas”, porque à noite todos os gatos são pardos. Com o recuo dos socialistas de um modo geral, dos comunistas e dos trabalhistas, das organizações políticas e dos movimentos sociais, das chamadas forças progressistas e democráticas, e do sindicalismo, estávamos de fato renunciando à batalha político-ideológica. No geral renunciamos às políticas de organização e à militância. E na política, como na guerra, como na vida, não existe vácuo. Deixada vazia, sem mobilização, à margem de qualquer proselitismo, a vida real – o chão de fábrica, as organizações sindicais e populares, as favelas e as periferias das cidades – abriu-se à pregação unilateral da direita, ainda mais instrumentalizada, acionando  seus aparelhos de sempre, o púlpito e as carteiras dos bancos, o neopentecostalismo e as milícias. Companheiros de boa cepa se dizem surpresos com o mundo que se revela a seus olhos como a mudança brusca de cenário em peça trágico-cômica. Esquecem-se  de que em política, e certamente em tudo o mais, não há almoço grátis.
 
O ponto de advertência, para a centro-esquerda e a esquerda orgânica, poderia ter sido os idos de junho de 2013, mas as ilusões das aparências não nos permitiram conhecer movimentações tectônicas que, silenciosas, alteram a formação política da sociedade, que supúnhamos cristalizada desde as eleições de  2002.
 
Assinalo o ano de 2013 como o início de um período  novo, ou próprio, uma identidade em face daquele período maior, já referido, de intermitência democrática, aberto com a reconstitucionalização de 1988. É o período que chega aos nossos dias com indicadores de seu agravamento . Nele contamos a difícil eleição de Dilma Rousseff em 2014, a ditadura da Câmara dos Deputados em 2015 inviabilizando o segundo mandato de Dilma Rousseff, o golpe de 2016, o governo preâmbulo de Michel Temer, a Lava Jato e sua sequência de golpes jurídico-políticos, a eleição e o governo Bolsonaro, as eleições de 2022, a posse de Lula e a intentona de 8 de janeiro deste ano. No momento, uma expectativa: o governo Lula, um projeto ainda por ser que a direita intenta inviabilizar. Como se nota, são muitos fatos e mutas transformações políticas num espaço de tempo irrelevante do ponto de vista histórico: dez anos!  E nessa curta e turbulenta jornada o elemento mais destacável, pelas suas consequências (de toda ordem), é essa emergência da extrema-direita, como ação, como partido, como grupo de pressão, alterando profundamente a aquarela política brasileira, e as promessas possíveis da democracia, tão jovem quanto frágil e ameaçada.
 
Não há como identificar o apogeu da emergência dessa direita, e muito menos é razoável estimar seu declínio, senão dando asas ao subjetivismo. Sem maiores riscos, porém, podemos dizer que seu ápice ainda não foi a eleição de Bolsonaro e o retorno do mando da caserna, com seus quatro anos de ignomínia impostos ao povo brasileiro; de outra parte seu declínio não deve ser identificado com a derrota nas eleições de 2022. O fato objetivo é este: a extrema-direita, lavrando em solo conservador de fundas raízes religiosas e primitivas, caminhando sob ventos favoráveis soprados pela conjuntura internacional, encontra-se, entre nós, fortalecida e organizada como jamais esteve em toda a vida republicana. Supera o apogeu dos tempos do mandarinato militar, pois hoje é força político-econômica que, se no plano internacional mantém vínculos com poderosos grupos econômicos reacionários,  militares e civis, no plano interno é a força política da classe dominante, com notórias ramificações na caserna e inegável apoio nas grandes massas. A direita com seus penduricalhos, aos quais se somam os velhos quadros do velho centrão (velhos reacionários, assistencialistas, negocistas, despachantes de altos interesses) e os "novos" empreendedores, controla com mão de ferro o Congresso Nacional. Trata-se de um partido no rigor do termo, ente orgânico com objetivo e interesses claros; impõe ao país uma pauta reacionária, conservadora, regressiva, empenhada em impedir avanços sociais, quaisquer, e impor retrocessos. E, para não fugir à sua natureza, os avanços políticos se dão em meio a barganhas.
 
Em um de seus muitos golpes e tentativas de golpe de Estado, os militares, não podendo impedir a posse de João Goulart, impuseram ao país (1961) (um parlamentarismo de fancaria rejeitado pela soberania popular em plebiscito. Agora, a partir dos ensaios de Eduardo Cunha, o êmulo moral e político de Arthur Lira, o Congresso faz mais, impõe um parlamentarismo de fato (assim imune a plebiscito revocatório), que manieta o executivo ao limite de impedi-lo de governar; transfere para a Câmara dos Deputados funções de governança, rejeita as propostas do Planalto sancionadas pela soberania popular nas eleições que elegeram o presidente da república, elege despesas sem o ônus da responsabilidade executiva, impõe o ajuste fiscal na mesma medida em que aumenta os gastos com as campanhas dos atuais parlamentares, em busca de reeleição, valendo-se dos recursos negados ao erário para alimentar o clientelismo depravado e os currais eleitorais. 
 
Após a “democracia à brasileira”, inventada pelo general Castello Branco, o presidente da Câmara nos impõe um "presidencialismo à moda alagoana", no qual o presidente da república não governa e o deputado Arthur Lira,  bedel da Câmara, trafica: com os poderes ensejados pelo Regimento, decide o que entra e o que não entra na pauta das votações, escolhe os relatores a seu bel talante  e decide o que pode e o que não pode ser aprovado, segundo o catecismo da direita decifrado ao ritmo de negociatas. Para cada votação importante, se a quiser ver aprovada, o governo deverá ceder o cangote para a sangria vil: uma vez é uma diretoria do Banco do Brasil, outra um certo ministério, depois outro. De outra vez a prenda é a Caixa Econômica Federal (R$ 16 bilhões em depósitos); no dia seguinte, não conseguindo o controle do FNDE (R$ 84 bilhões), opta por uma sua diretoria. Ora isso, ora aquilo, e assim vai sendo destratada a república, segundo o jogo dos mercadores.
 
O presidente da Câmara dos Deputados, apoiado no silêncio da cidadania país, está revogando a república que subiu a rampa do Planalto no dia 1º de janeiro. Será que ninguém se dá conta disto e de seu significado? O presidente da república não pode deixar-se imolar, e terá todas as condições de  reverter o quadro pernicioso, se falar ao país que deseja ouvi-lo.
 
***

Caos nas escolas e na Câmara dos Deputados - Tema de vital importância para a Educação brasileira - e o futuro do país e  de milhões de jovens - vive momento decisivo na Câmara dos Deputados: a reforma do Ensino Médio. Aproveitando  a hesitação do MEC, jogando na ampliação do domínio do Centrão sobre o FNDE, especula-se, Arthur Lira entregou a relatoria do PL 5230/23 para ninguém menos que Mendonça Filho, pai da "reforma" privatizante e precarizante imposta por Temer e abraçada por Jair Bolsonaro. Na última quarta-feira  (13), lixando-se para o repúdio dos educadores à proposta, o plenário da Câmara aprovou requerimento de urgência para que o Projeto fosse votado a toque de caixa. E nessa noite fatídica alguns certos dados chamaram a atenção: apenas a Federação PSOL-Rede e a Federação PT-PCdoB-PV orientaram voto contrário - mas no PT alguns deputados, como o Líder do Governo, divergiram dessa orientação. Por sinal, a Liderança do Governo, pela voz de Pedro Campos (PSB-PE), orientou voto favorável à urgência para a apreciação do Substitutivo de Mendonça Filho, que desconstrói a proposta do MEC. O que de certa forma surpreende, pois há poucos dias o presidente Lula solicitou a retirada da urgência constitucional com que a matéria chegara ao Congresso.

Ora, o projeto da nossa direita para a Educação brasileira — retrógrado de fio a pavio — é deveras conhecido, e Mendonça, Temer e Bolsonaro o representam de modo exemplar. O que não parece claro é o que a centro-esquerda pretende de fato.
 

 

* Com a colaboração de Pedro Amaral