Do ESQUERDA.NET
A última edição do Le Monde Diplomatique de Espanha publica uma longa
entrevista com Noam Chomsky, feita em Buenos Aires por Ignacio Ramonet.
Dada a sua extensão, o Esquerda.net publica-a em partes, sendo esta
primeira sobre as mudanças na América Latina e as relações dos EUA com a
Venezuela e Cuba. O título original de toda a entrevista é: “Contra o
império da vigilância”.
19 de Abril, 2015
Noam Chomsky falando no Fórum Internacional pela Emancipação e a Igualdade. Captura de imagem de vídeo.
Em
Buenos Aires (Argentina), de 12 a 14 de março passado, organizado pelo
Ministério da Cultura e pelo Secretário de Coordenação Estratégica do
Pensamento Nacional, Ricardo Forster, teve lugar um importante Fórum
Internacional pela Emancipação e a Igualdade, que reuniu personalidades
de grande prestígio vindas dos Estados Unidos, da América Latina e da
Europa. Tratava-se de refletir sobre o momento que se está a viver não
só na América Latina como também nalguns países da Europa, onde novas
organizações políticas (Syriza, Podemos), que conhecem bem os avanços
progressistas realizados na América Latina, estão a tentar mudar as
coisas e contribuir com soluções de inclusão social e de rejeição das
políticas “austeritárias”1.
No marco desse encontro excepcional, pudemos entrevistar o nosso amigo
norte-americano Noam Chomsky, um dos intelectuais mais prestigiados do
mundo. Um homem que há muito pensa como construir um mundo mais justo,
menos desigual e com menos violência.
Ignacio Ramonet: Noam, em 9 de março passado, Barack Obama
assinou uma ordem executiva e decretou “estado de emergência” nos
Estados Unidos devido à “ameaça inusitada e extraordinária” que
representaria a Venezuela para a segurança nacional do seu país. Que
pensa desta declaração?
Noam Chomsky: Temos de ser cuidadosos e distinguir
duas partes nessa declaração. Por um lado, um facto real: a imposição de
sanções a sete funcionários públicos da Venezuela. A outra parte é um
aspecto mais técnico, a forma como se formulam as leis nos Estados
Unidos. Quando um presidente impõe uma sanção tem de invocar esta
declaração ridícula que pretende haver “uma ameaça à segurança nacional e
à existência dos EUA” por parte de tal ou qual Estado. É um aspecto
técnico do direito dos EUA. É tão ridículo que, de facto, nunca tinha
sido sublinhado. Mas desta vez fez-se questão disso, porque surgiu na
América Latina. Na declaração habitual quase nunca se menciona todo este
contexto, e acho que é a nona vez que Obama invoca uma “ameaça à
segurança nacional e à sobrevivência dos EUA”, porque é o único
mecanismo ao seu alcance atraves do qual a lei lhe permite impor
sanções. Ou seja, o que conta são as sanções. O resto é uma formalidade
absurda; é uma retórica obsoleta da qual poderíamos prescindir, mas que,
em todo caso, não significa nada.
Ainda que às vezes sim. Por exemplo, em 1985, o presidente Ronald
Reagan invocou a mesma lei dizendo: “O Estado da Nicarágua é uma ameaça à
segurança nacional e à sobrevivência dos Estados Unidos”... Mas nesse
caso era verdade. Porque ocorria num momento em que o Tribunal
Internacional de Justiça tinha ordenado aos EUA que pusessem fim aos
seus ataques contra a Nicarágua através dos chamados “Contras” contra o
governo sandinista. Washington não o levou em conta. Por sua vez, o
Conselho de Segurança das Nações Unidas também adotou, nesse momento,
uma resolução que pedia, a “todos os Estados”, que respeitassem o
direito internacional... Não mencionou ninguém em particular, mas todo o
mundo sabia que se estava a referir aos EUA.
O Tribunal Internacional de Justiça tinha pedido aos Estados Unidos
que pusessem fim ao terrorismo internacional contra a Nicarágua e que
pagassem reparações muito importantes a Manágua. Mas o Congresso dos
Estados Unidos o que fez foi aumentar os recursos para as forças [os
“Contras”] financiadas por Washington que atacavam a Nicarágua... Isto
é, a administração Reagan opôs o seu método à resolução do TIJ e violou o
que este lhe estava a pedir. Nesse contexto, Reagan pôs as seus botas
de cowboy e declarou que a Nicarágua era uma “ameaça à segurança dos
Estados Unidos”. Recordará que, naquele mesmo momento, Reagan pronunciou
um célebre discurso dizendo que “os tanques da Nicarágua estão apenas a
dois dias de marcha de qualquer cidade do Texas”... Ou seja, declarou
que havia uma “ameaça iminente”... Bom, segundo Reagan, aquela “ameaça”
era uma realidade... Mas agora não, a de Obama é uma fórmula retórica,
uma expressão técnica, digamos. Claro, trata-se de dar à declaração um
aspecto dramático adicional para tentar enfraquecer o governo de
Venezuela... Algo que Washington faz quase sempre nesses casos.
Conheceu o presidente Hugo Chávez. E Chávez tinha por si uma
grande admiração. Fez o elogio de alguns dos seus livros. Que lembranças
tem dele e que opinião lhe merece como dirigente, em particular pela
sua influência na América Latina?
Tenho que lhe confessar que depois de o presidente Chávez ter mostrado o meu livro [Hegemonia ou Sobrevivência] na Organização das Nações Unidas (ONU), se vendeu muito bem na Amazon.com [risos].
Tenho que lhe confessar que depois de o presidente Chávez ter
mostrado o meu livro [Hegemonia ou Sobrevivência] na Organização das
Nações Unidas (ONU), se vendeu muito bem na Amazon.com [risos]. Um amigo
meu, um poeta, disse-me que o livro estava entre os últimos do ranking de
Amazon e de repente venderam-se milhares. Ele perguntou-me se o
presidente Chávez não podia mostrar um livro dele também na ONU...
[risos] Bom, tive com Chávez algumas conversas, nada mais, no palácio
presidencial. Estive em Caracas um dia com um amigo e basicamente
falámos com Chávez sobre como chegou ao poder, como reagiram os EUA, e
muitas outras coisas dessa natureza. Chávez fez um esforço muito
importante para introduzir mudanças substanciais na Venezuela e na sua
relação com o mundo. Um dos seus primeiros atos foi conseguir que a
Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP), que possuía quase
o monopólio do petróleo, reduzisse a produção para que o preço do
barril aumentasse. Segundo o que me disse, esse foi o momento em que os
EUA se voltaram definitivamente contra a Venezuela... Antes
toleravam-no... Chávez fez muitas coisas mais: forneceu petróleo a baixo
preço a Cuba e a outros países das Caríbas; realizou esforços para
melhorar o sistema de segurança social, reduzir a pobreza, lançou as
“missões”, que significavam um grande esforço a favor da gente humilde,
etc.
Nisto obteve um verdadeiro grau de sucesso, mas enfrentou graves
dificuldades, em particular a incompetência, a corrupção, a maneira de
combater as greves, etc. O resultado final é um contexto difícil para a
Venezuela internamente. E o problema mais grave – que não foi superado
–, e que é um problema na América Latina em geral, é que todos estes
países dependem de um modelo não sustentável de desenvolvimento
econômico, baseado na exportação de produtos primários. Um país pode
assumir isso – a Argentina e o Brasil sabem-no – se a economia se
diversificar de tal maneira que possa desenvolver uma verdadeira
indústria complexa. Mas uma indústria baseada unicamente em produtos
agrícolas ou mineiros não é um modelo sustentável. Se vir os países que
se desenvolveram, começando pela Inglaterra, EUA e outros, todos,
originalmente, começaram por exportar produtos básicos. Por exemplo, os
EUA desenvolveram-se porque tinham um quase-monopólio num dos produtos
básicos mais importantes do século XIX, que era o algodão produzido em
plantações com acampamentos de escravos – acampamentos que teriam
impressionado os nazis se estes os tivessem podido ver. E assim os EUA
conseguiram aumentar a produtividade do algodão mais rapidamente do que a
indústria, e isso sem inovação técnica... além do chicote que usavam
para torturar os escravos. Com o uso intensivo da tortura e de outras
atividades horripilantes, a produção de algodão aumentou muito
rapidamente, e assim os donos dos escravos enriqueceram-se,
evidentemente, mas também se desenvolveu o sistema fabril.
Os EUA desenvolveram-se porque tinham um quase-monopólio num dos produtos básicos mais importantes do século XIX, que era o algodão produzido em plantações com acampamentos de escravos – acampamentos que teriam impressionado os nazis se estes os tivessem podido ver
Se pensar, por exemplo, no nordeste dos EUA, que é uma zona
industrial onde estão as principais fábricas, naquele tempo estavam
ocupadas pelo algodão, produziam panos a partir do algodão. O mesmo
acontecia na Inglaterra. Os ingleses importavam o algodão dos EUA e
desenvolveram as suas primeiras fábricas. O que também permitiu a
expansão do sistema financeiro, que era uma manobra extremamente
complexa sobre o empréstimo de fundos e outras operações financeiras. E
todo isso a partir do cultivo do algodão. Um sistema comercial, um
sistema industrial, um sistema financeiro.
Pois bem, os EUA também, como outros países desenvolvidos, não
respeitaram o que hoje é chamado de “economia sã”. Os princípios que
hoje se proclamam eram violados, e existiam altos impostos e outros
mecanismos protecionistas. E isso continuou assim até o ano de 1945,
quando realmente os EUA puderam desenvolver a produção industrial de
aço, e de muitas outras coisas mais. É assim que se pode fazer o
desenvolvimento. Se um país se autolimita à exportação de produtos
primários vai fracassar... E isso é o que ocorre na Venezuela. A
economia continua a depender terrivelmente da exportação de petróleo...
Esse modelo é insustentável. E também é insustentável uma economia
unicamente baseada na exportação de soja ou de outros produtos
agrícolas. De tal forma que temos de passar por um formato diferente de
desenvolvimento, como o que fizeram a Inglaterra e os Estados Unidos. E
outros países europeus, evidentemente. Por exemplo, a França. Vinte por
cento da riqueza da França foi produto da tortura dos haitianos... que
continua hoje, lamentavelmente. O mesmo aconteceu com a história do
desenvolvimento de outros países coloniais.
A Venezuela não superou este obstáculo. E tem outros problemas
internos graves que, evidentemente, os EUA querem exacerbar. Acho que as
sanções constituem um esforço para consegui-lo. Na minha opinião, uma
boa resposta da Venezuela seria simplesmente deixar passar por alto.
Claro, não se podem ignorar as sanções, porque são reais... Mas sim o
que mencionou, essa pretensão ridícula de “ameaças à segurança nacional
dos Estados Unidos”. É importante repetir que isto, em si, não significa
nada. Como lhe disse, é meramente uma expressão formal. É algo que os
meios de comunicação, nos EUA, sequer assinalaram. O importante é a
reação que, neste caso, ocorreu na América Latina.
No dia 17 de dezembro passado, o presidente Barack Obama, e
também o presidente Raúl Castro, fizeram uma declaração, cada um por seu
lado, em que anunciavam a normalização das relações entre Cuba e os
Estados Unidos. O presidente Obama, nessa declaração, reconheceu que
cinquenta anos de política norte-americana de pressões, com bloqueio
económico incluído, não tinham produzido qualquer resultado, e que era
preciso mudar de política. Que pensa desta normalização entre Cuba e os
EUA? E como vê a evolução das relações entre Havana e Washington, e a
influência desta evolução para o conjunto da América Latina?
Pequena correção. Não se trata de “normalização”. É, primeiro, um
passo para o que poderia ser uma normalização. Ou seja que o embargo, as
restrições, a proibição de viajar livremente de um país a outro, etc.,
não desapareceram... Mas efetivamente constitui um passo para a
normalização, e é muito interessante ver qual é a retórica atual da
análise de Obama e da sua apresentação. O que disse é que cinquenta anos
de esforços “para levar a democracia, a liberdade e os direitos humanos
a Cuba” fracassaram. E que outros países, infelizmente, não apoiam o
nosso esforço, de tal maneira que temos de encontrar outras formas de
continuar a nossa dedicação à imposição da democracia, liberdade e
direitos humanos que dominam as nossas políticas benignas com o mundo.
Palavra mais, palavra menos, é o que disse. Quem leu George Orwell sabe
que quando um governo diz alguma coisa, é preciso traduzi-la para uma
linguagem mais clara. O que disse Obama significa o seguinte: durante
cinquenta anos fizemos um terrorismo de grande escala, uma luta
económica sem piedade que deixaram os EUA totalmente isolados; não
pudemos derrubar o governo de Cuba nesses cinquenta anos, portanto, tudo
bem se encontramos outra solução? Essa é a tradução do discurso; é o
que realmente quer dizer ou o que se pode dizer tanto em espanhol quanto
em inglês.
E vale a pena recordar que a maioria destas questões são suprimidas
nos debates norte-americanos e mesmo europeus. Efetivamente, os EUA
fizeram uma campanha grave de terrorismo contra Cuba sob a presidência
de John F. Kennedy; o terrorismo era extremo naquele momento. Há um
debate, às vezes, sobre as tentativas de assassinato de Fidel Castro, e
fizeram-se ataques a instalações petroquímicas, bombardeamentos de
hotéis – onde sabiam que havia russos alojados –, mataram gado, etc. Ou
seja, foi uma campanha muito grande que durou muitos anos.
E mais, depois de os EUA terminarem o seu terrorismo direto apareceu o
terrorismo de apoio, digamos, com base em Miami nos anos 1990. Além da
guerra económica, que foi iniciada por Eisenhower, ganhou realmente
impulso durante a era Kennedy e intensificou-se depois. O pretexto da
guerra económica não era “estabelecer a democracia” nem “a introdução de
direitos humanos” era castigar Cuba por ser um apêndice do grande Satã
que era a União Soviética. E “tínhamos que proteger-nos”, da mesma
maneira que “tínhamos de nos proteger” da Nicarágua e de outros
países...
Basta ver os registos norte-americanos do seu apoio às ditaduras violentas, terroristas na América Latina. Não só as apoiaram como as impuseram. Como no caso da Argentina, onde os EUA eram o mais firme apoio da ditadura argentina.
Quando ocorreu o colapso da União Soviética, que aconteceu com o
embargo? O bloqueio agravou-se. E mais, Clinton ganhou a partida a
George Bush (pai) para ampliar o bloqueio. Clinton fortaleceu-o mais.
Algo estranho da parte de um senador liberal de Nova Jersey... E, mais
tarde, pior ainda, foi intensificado o esforço para estrangular e
destruir a economia cubana. E todo isso não tinha nada a ver,
obviamente, nem com a democracia nem com os direitos humanos. Nem sequer
é uma piada. Basta ver os registos norte-americanos do seu apoio às
ditaduras violentas, terroristas na América Latina. Não só as apoiaram
como as impuseram. Como no caso da Argentina, onde os EUA eram o mais
firme apoio da ditadura argentina. Quando o governo da Guatemala estava a
cometer um verdadeiro genocídio, Reagan quis apoiá-lo. Mas o Congresso
tinha-lhe determinado certos limites. Por isso disse: bom, tudo bem se o
fazemos na Argentina? E transformamos os militares argentinos em
neonazis para fazer o que queremos. Infelizmente, a Argentina passou a
ser uma democracia depois; e foi aí que os Estados Unidos perderam esse
apoio que tinham. E então recorreram a Israel para continuar com o
treino dos exércitos de terrorismo na Guatemala. Mas já, desde
princípios dos anos 1960, houve uma tremenda onda de repressão em toda a
América Latina, no Brasil, no Uruguai, no Chile, na Argentina e assim
até na América Central. Os Estados Unidos, diretamente, participavam em
todos estes comandos. Antes também, e hoje continuam.
Por exemplo, Obama é praticamente o único líder que deu apoio, em
2009, ao golpe de Estado em Honduras, que derrubou o governo
constitucional [de Manuel Zelaya] e que instalou uma ditadura militar
que os EUA reconheceram. Isto é, podemos deixar de lado a conversa sobre
a democracia e os direitos humanos; não têm nada a ver: o esforço era
para destruir o governo. E sabemos porquê. Uma das coisas boas dos EUA é
que, em muitos sentidos, são uma sociedade livre, e temos muitos
registos internos, de deliberações internas que foram publicadas. De
maneira que se pode saber exatamente o que ocorreu.
Em 1999, apareceu Hugo Chávez na Venezuela, e uma série de
países adotaram programas antineoliberais, vários governos progressistas
começaram a aparecer na América Latina; no Brasil, com Lula; depois na
Bolívia, com Evo Morais; depois no Equador, com Rafael Correa; depois na
Argentina, com Nestor Kirchner; no Uruguai, com Tabaré Vázquez e Pepe
Mujica. Isto espalhou-se pela América Latina; e efetivamente, como acaba
de dizer, a América Latina tem escapado um pouco às mãos dos EUA. Eu
queria perguntar-lhe, primeiro, que opinião tem sobre estes governos
progressistas, em geral, da América Latina? E segundo, por que os EUA
puderam encontrar-se nesta situação de perda de influência na América
Latina?
Bom, são acontecimentos de enorme importância nesta parte do mundo,
todo o que descreveu é de relevância realmente histórica. Se pensarmos
na América Latina... Durante quinhentos anos, a América Latina,
basicamente, viu-se controlada pelos poderes imperialistas ocidentais,
sobretudo pelos EUA no século XX, e antes houve outros... Na América
Latina, as populações originárias viam-se controladas por uma elite
pequena, geralmente branca, quase branca, muito rica, no meio do povo
pobre. Então, estas elites eram como que alheias ao seu próprio país:
exportavam capital para a Europa, por exemplo, e enviavam os seus filhos
para os Estados Unidos. Não se preocupavam com o seu próprio país. E a
interação entre os países de América Latina era muito limitada. Cada
elite da cada país tinha um desvio para o ocidente, e ideias
imperialistas. Havia certas diferenças, mas esta era em geral a situação
típica. E isto vem acontecendo desde há quinhentos anos de uma forma ou
de outra.
Os Estados Unidos são a potência que exerce o maior domínio em todo mundo, mas já não têm o poder esmagador de destruir governos e de impor ditaduras militares onde lhe apetece.
Mas, a partir de 1999, começou a mudar esta situação. O que descreve é
uma mudança muito significativa; é um momento de importância histórica.
E os Estados Unidos são, evidentemente, o país, a potência que exerce o
maior domínio em todo mundo, mas já não têm o poder esmagador de
destruir governos e de impor ditaduras militares onde lhe apetece. Se
pensarmos, por exemplo, nos últimos quinze anos... Houve alguns golpes
de Estado: uma tentativa inesperada na Venezuela em 2002; bem,
funcionou, digamos, durante dois dias e nada mais. Os EUA apoiaram-na
plenamente mas não tiveram o poder de impor um novo governo. Houve outro
no Haiti em 2004; aí temos... os torturadores do Haiti, a França e os
EUA combinaram o sequestro do presidente Aristide para enviá-lo para o
centro da África, e mantê-lo ali, oculto, para que não pudesse
participar sequer nas eleições. Bom, isto teve êxito, mas o Haiti é um
país muito fraco. Houve outro caso em Honduras, em 2009 – sim, com Obama
– os militares desfizeram-se do governo constitucional... Aí houve uma
“desculpa democrática”, e Washington não o quis condenar como um golpe
militar... Mas o resultado foi que os EUA viram-se isolados nessa
posição de apoio a esse golpe militar triunfante. E agora esse país é um
desastre completo. Tem um terrível registo – o pior – em matéria de
direitos humanos. E se consideramos a migração para os EUA, que é um
grande tema, a maioria dos imigrantes provém das Honduras, porque este
país foi destruído pelo golpe que Washington apoiou.
Assim, vemos alguns casos de sucesso, por assim dizer, mas não como
no passado, não como antigamente. A América Latina agora deu um passo
adiante para conseguir certo grau de independência. É o caminho correto.
Bom, a UNASUR, o MERCOSUL, a CELAC [Comunidade de Estados
Latinoamericanos e Caribeños]; há diferentes grupos que representam
passos para a integração. A CELAC é totalmente inovadora, porque os EUA e
o Canadá ficam excluídos, e isto ninguém poderia ter imaginado; era
algo inconcebível anos atrás.
Todo isso se vê refletido de vários modos; houve um estudo recente
muito interessante do que poderíamos chamar, por exemplo, a “pior
tortura do mundo”: prendemos alguém e mandamo-lo para a ditadura militar
mais cruel para que lá seja torturado, de maneira impune, e podemos
assim obter certa informação. Esta é a pior forma de tortura. Os Estados
Unidos vêm-no fazendo desde há anos e anos. Houve um estudo para saber
que países cooperam. Claro, os países de Médio Oriente; enviam-nos para
lá para levar a cabo esta tortura: já o faziam com Assad na Síria, com
Mubarak no Egito, e com Kadhafi na Líbia, não? E os países europeus na
sua maioria participaram, Inglaterra, Suécia, França, todos estes
países.
No entanto, houve uma região no mundo, na qual não participou nenhum
país: a América Latina. E isto é realmente interessantíssimo. Quando a
América Latina estava sob o controlo dos Estados Unidos, era um centro
global de tortura. Agora, até se negaram a participar neste horrendo
jogo, neste tipo de tortura implementado pelos Estados Unidos. Isto é
uma mudança muito significativa, um sinal realmente muito importante.
Houve certos casos de sucesso, parciais, na América Latina, que liderou a
resistência ao projeto neoliberal, podemos chamar assim. Também outros
sucessos, apesar de ainda haver muito caminho a percorrer ainda.
Publicado no Le Monde Diplomatique em espanhol.
Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net
1Nota do Esquerda.net: a eurodeputada Marisa Matias, do Bloco de Esquerda, também participou nesse Fórum, ver os artigos Marisa Matias participa em fórum internacional na Argentina e Marisa Matias em Buenos Aires: “Cada vez que nos tiram direitos, tiram-nos a memória”