Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

terça-feira, 24 de setembro de 2013

O homem e os cachorros

Terça, 24 de setembro de 2013
 Por Ivan de Carvalho
Um homem ainda bastante jovem está sentado no chão gramado, encostado a uma parede e em evidente sofrimento. O local é “embaixo” da emergência do Hospital Roberto Santos, um dos dois maiores hospitais gerais estaduais de Salvador e no qual funciona ou deveria funcionar (esta é uma dúvida que agora me assaltou) um centro para tratamento de casos de envenenamento.
   
     Os dados sobre o homem foram mostrados ou revelados verbalmente ontem, em um programa de televisão, “Balanço Geral”, da TV Itapoan. O cidadão foi filmado enquanto sua história, contada por ele mesmo e pela reportagem, era servida aos telespectadores, muitos dos quais, no horário, deviam estar almoçando.

Mas este último detalhe quase não importa, só é citado aqui para que não fique muito incompleto o quadro, já com algumas lacunas produzidas pela memória falha do autor destas linhas, que, almoçando, não cumpriu o dever de pegar um papel e uma caneta e anotar todos os fatos e detalhes possíveis.

Bem, ele, o cidadão sentado na grama, vestia roupa já notoriamente estragada, ainda que ele mesmo haja revelado que lhe fora dada depois que se instalara no local. Já estava ali há sete dias e, não fosse a roupa “nova” que naquele momento vestia, estaria com a original, com a qual viera vestido do interior do estado em um veículo que o prefeito lhe conseguira.

Aliás, não lembro se era prefeito ou prefeita e de qual município era. Devia ter anotado, para cobrar de tão prestativa autoridade (como cobrou o apresentador do programa, Raimundo Varela) a continuidade de ação. Não bastava enfiar o cidadão em um veículo e remetê-lo para a capital, cumpria àquela autoridade usar o peso político do cargo para assegurar que fosse digna e eficientemente atendido. Aliás, se todos os prefeitos e prefeitas da Bahia fizessem isso com o devido empenho e envolvessem nesse esforço os vereadores que os apoiam e as seções municipais dos partidos pelos quais se elegeram, o quadro de abandono dos doentes pelo poder público não seria tão degradante.

Mas voltemos ao núcleo do caso. O cidadão estava lá sentado há uma semana e afirmava que dali não sairia enquanto não fosse atendido e tratado. Afinal, ir para onde? Chegara acompanhado pela mãe, que não foi vista na reportagem nem dela notei que se haja dado alguma notícia. Chegou a ser recebido para uma consulta e lhe foi dito que seu estado de saúde é muito grave. Parece-me que não ficou muito claro como, depois de ter entrado e sido examinado, foi parar no lado de fora do hospital, onde se plantara com a disposição de não arredar pé, salvo se para entrar outra vez.

O paciente do lado de fora da emergência contara que havia comido alguma coisa com “chumbinho” – mas, tudo fazia parecer, sem saber, muito menos sem ter a intenção de por fim à própria vida. Essa hipótese não foi posta e em nada, se fosse, alteraria a essência dos fatos públicos.

O paciente sem atendimento fez saber que sentia muitas dores e muitas outras coisas ruins no interior do corpo. Estava com o abdômen notoriamente inchado. Comia o que lhe davam, mas com extrema dificuldade, quase não conseguia, o estômago relutava em aceitar o alimento. Contou que todos os dias “os médicos” entravam e saiam, passavam por ele e não lhe davam a mínima atenção, como se ele fosse “um cachorro”.

Ora, muitos cachorros são alvo de muito mais atenção e de caprichados tratamentos de saúde, até. O prefeito da capital pretende até fazer um hospital público veterinário. Não é que os bichos não mereçam, mas o homem sofrendo a omissão de socorro próximo à entrada da emergência do Hospital Roberto Santos certamente merece também. E esse hospital, sem dúvida, foi feito exatamente para ele, gente, cidadão, contribuinte. Como é, então, que não o acolhem, exatamente, aliás, em um hospital que tem (ou será que não tem mais, assaltou-me no momento esta dúvida, criada pelos fatos narrados) um centro de tratamento de envenenamento. Acaso o confundiram com um cachorro, para o qual a clínica não seria ali?

É possível que após a reportagem ser transmitida pela emissora, o paciente rejeitado ou ejetado haja sido admitido. Mas assim não vale. Não dá, nem sequer há tempo hábil, para fazer uma reportagem para cada doente ao qual o tratamento é negado.
- - - - - - - - - - - - - -
Este artigo foi publicado originariamente na Tribuna da Bahia desta terça.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.