Sexta, 20 de outubro de 2017
Nova lei coloca o desenvolvimento do país às custas da escravidão de alguém, enfatiza
Do El País Brasil / Blog Bahia em Pauta
Heloísa Mendonça

A decisão do Governo Michel Temer de criar uma nova portaria com regras que dificultam o combate ao trabalho escravo não surpreendeu Beatriz Affonso, diretora do Centro de Justiça e Direito Internacional (Cejil)
para o Brasil. Juntamente com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o
Cejil foi responsável por levar o caso de 143 trabalhadores rurais
submetidos ao trabalho escravo na Fazenda Brasil Verde para a Corte
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Trata-se do primeiro caso
sobre escravidão e tráfico de pessoas
decidido pela Corte. O Estado Brasileiro foi condenado a indenizar os
trabalhadores em quase 5 milhões de dólares por conivência com o
trabalho escravo na fazenda pertencente ao Grupo Irmãos Quagliato, um
dos maiores criadores de gados do Norte do país. Até hoje esse dinheiro
não foi pago. O prazo vence no dia 15 de dezembro deste ano.
Pergunta. Qual o impacto da nova portaria do Governo sobre trabalho escravo?
Resposta. A mudança na portaria é gravíssima, mas não é
uma exceção. Nas últimas semanas, o Governo de Michel Temer, vem
atuando por meio dos poderes Executivo e Legislativo,determinando
mudanças ou elaborando decretos que violam decisões internacionais da
Corte Interamericana, que recentemente foram aplicadas e determinadas ao
Estado brasileiro. Um exemplo é esse projeto, recentemente aprovado no
Senado, que devolve para a justiça militar os homicídios dolosos
cometidos por militares das Forças Armadas. Em 1996, conseguimos que
esses crimes fossem julgados pela justiça comum, por uma questão de
imparcialidade. Há outros vários projetos que estão para ser votados: a
redução da maioridade penal, a lei antiterrorismo, ampliando o tipo
penal de terrorismo para manifestantes em protestos pacíficos….São
várias mudanças de leis e de conceitos que foram alcançados depois de
muita luta e que protegem determinados grupos que estão mais
vulneráveis. E agora essa novidade da semana do Ministério do Trabalho
com essa portaria sobre o trabalho escravo. O Estado brasileiro foi o
primeiro do continente a receber uma sentença de trabalho escravo no fim do ano passado.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos entendeu que o Estado
brasileiro é internacionalmente responsável por não ter protegido e não
ter realizado justiça no caso de 143 trabalhadores, que foram
escravizados, no sul do Pará. Essa sentença é muito explícita ao
salientar que o Brasil possui uma lei adequada sobre o conceito do que é
o trabalho escravo contemporâneo, o qual inclui diversas
características para o que é ou não o trabalho análogo à escravidão e
não deveria ser modificada.
P. E quais são essas características?
R. As que o nosso código penal
determina. Porque além de tudo, essa questão está regulamentada em lei,
não é que ela não existe. As características são condições degradantes
de trabalho, restrição de liberdade, trabalho forçado, jornada
exaustiva, servidão por dívida, e violação da integridade pessoal do
trabalhador, ou seja, sofrer violência mesmo. Retenção de documentos
também... São várias características que se combinam, mas não é
necessário que todas elas estejam presentes no momento de fiscalização,
apenas uma combinação dessas características, juntamente com a situação
de vulnerabilidade daquele trabalhador. Muitas vezes, ele está ali
trabalhando de graça, sem receber salário, numa jornada excessiva, não
tem as condições adequadas para se alimentar ou para exercer uma
atividade específica.
P. Qual a sua avaliação sobre a definição de trabalho escravo?
R. A questão do trabalho escravo
tem uma jurisprudência sólida no Brasil. O país, inclusive, foi
reconhecido internacionalmente por ter esse conceito que incorpora as
novas formas contemporâneas de escravidão. De fato, ao longo do
desenvolvimento da nossa sociedade, as pessoas já não são mais amarradas
para trabalhar. No entanto, as pessoas são amarradas por outras
retenções invisíveis: a necessidade, por exemplo. E muitos empregadores
não seguem a lei. O que temos hoje é uma corrente invisível, econômica,
que prende os trabalhadores. Mesmo com a nova portaria do Ministério do
Trabalho, a lei não foi mudada, o Código Penal continua intacto. O
conceito é muito claro, a jurisprudência interna e a internacional
também. O que acontece é que se restringiram as reparações ao trabalho
escravo.
O que temos hoje é uma corrente invisível, econômica, que prende os trabalhadores.
P. Como?
R. O funcionário, por exemplo,
para receber seguro-desemprego terá que ser encontrado pelos fiscais em
uma situação de restrição de ir e vir. Já não vale mais as condições
degradantes da jornada exaustiva, o que atualmente, mais caracteriza a
situação de exploração ilegal. Essa decisão é muito grave. Este é o
primeiro passo para tornar as condições banalizadas, para que o segundo
passo seja uma alteração do Código Penal. Em favor de quem? De um grupo
específico, empresários e fazendeiros, que vão se valer desse
trabalhador para aumentar o seu lucro. Não podemos pensar em um país que
se desenvolve às custas da escravidão de alguém.
P. A portaria deixa também nas
mãos do ministro do Trabalho - e não mais da equipe técnica- a inclusão
de nomes na chamada "lista suja", que reúne empresas flagradas com
trabalho análogo à escravidão. Quais podem ser as consequências dessa
alteração?
Não podemos pensar em um país que se desenvolve às custas da escravidão de alguém.
R. Desde o fim de 2014, quando o ministro Ricardo Lewandowski aceitou o pedido da associação de empresas de suspender a divulgação da relação de empregadores flagrados ao submeter trabalhadores a condições análoga à escravidão,
ela não vem tendo esse efeito para o qual foi concebida. Agora, com a
nova portaria, não tenho confiança na lista. Acho que as coisas estão
sendo feitas para proteger os empresários em detrimento aos
trabalhadores. Não acredito que qualquer mudança nesse contexto político
que dependa desses atores possa ser séria e resguardar os direitos dos
trabalhadores. O presidente Temer está jogando no lixo todas as
garantias de setores importante, que na verdade conformam a maioria da
população desse país, das mulheres, dos negros, dos trabalhadores, dos
analfabetos. Isso vai ter consequências…Enquanto os empresários e
fazendeiros buscam condições mais favoráveis para aumentarem seus
lucros, o Estado garante isso por meio de formalização das regras, os
trabalhadores estão cada vez mais a margem de subempregos, porque eles
não tiveram um diferencial de oportunidades, de melhora pessoal, a
alfabetização. É um contexto muito perverso onde tudo está perfeitamente
ajeitado para permitir que trabalhadores sejam escravizados.
P. Acredita que com a portaria, menos multas serão aplicadas a empresas que desrespeitam em algum grau as condições trabalhistas ?
R. Infelizmente, não temos no
Brasil nenhum empresário ou fazendeiro condenado pelo crime de trabalho
escravo. Na prática, ninguém é responsabilizado. O que acontecia é que o
Estado cobrava a multa quando encontrava algo ilegal, mas agora ficará
mais barato para escravizar. Agora há muito mais restrições, além de que a fiscalização vem sendo bastante prejudicada pela falta de verba para a pasta.
Essa é uma das ações mais eficientes para prejudicar a fiscalização e a
libertação de trabalhadores. Mas o que vai prejudicar mais, no meu
entendimento, é essa mensagem política onde o Estado está facilitando os
empresários e fazendeiros a usurpar os trabalhadores. Como hoje o que
acorrenta são políticas econômicas, que são tão fortes como qualquer
corrente de aço, os trabalhadores se submetem a essas condições por
ausência de oportunidades. Vamos ter empresários e fazendeiros se
sentindo bastante à vontade para colocar seus trabalhadores em condições
análogas à escravidão.
P. Qual o perfil hoje desses trabalhadores?
R. Nas capitais do país, o perfil
é mais de estrangeiros que estão em situação de vulnerabilidade. Já nas
fazendas e demais empresas no campo, eles são pessoas ultra
vulneráveis. No caso da Fazenda Brasil Verde que foi para Corte
Interamericana, dos 143 trabalhadores, 90 são analfabetos. Não sabem ler
a data em que eles foram contratados. Qualquer coisa que eles assinam
pode ser forjada. Ainda hoje, no Norte do país, a situação de trabalho
escravo para a produção de determinados produtos, como o gado, carvão e o
ferro gusa é de uma exploração idêntica há 15 anos. Nada mudou. O
cenário ainda é muito arcaico.
P. Muitas vezes, os próprios trabalhadores nem sabem que estão se submetendo às condições análogas a da escravidão?
R. Eles demoram para ter essa
consciência. Muitos não têm acesso à educação ou a informações
importantes e ficam muito suscetíveis. Eles percebem que a situação é
muito grave quando não conseguem sair dali. Porém, não porque há um
capanga armado, mas porque eles sentem a necessidade de honrar uma
dívida que adquiriram comprando material e comida. Ele não vai embora.
São pessoas, que exatamente por serem analfabetas e virem de uma cultura
mais tradicional, tratam a questão da palavra do homem como a
legitimidade deles. Muitas vezes, notam que a situação está fora do
controle quando eles trabalharam meses, não receberam nada e ainda tem
dívida e conta para pagar. Percebem que essa conta nunca vai fechar.
Mesmo assim, eles têm dificuldade de sair daquela situação. Sobre as
condições degradantes, é muito comum a gente escutar de fazendeiros e
empresários que os funcionários já vivem nessa situação, "por que vamos
dar uma condição melhor?".
P. Considera que, nos últimos
anos, os programas sociais, como o Bolsa Família, ajudaram a diminuir os
grupo de pessoas mais suscetíveis a trabalhos degradantes?
R. Não tenho dados sobre isso, mas o que
posso falar sobre os trabalhadores que representei no caso da Fazenda
Brasil Verde é que as mulheres deles, que são as que recebem o Bolsa
Família, conseguiram uma certa folga financeira. Porque quando os homens
ficavam entre quatro a seis meses sem conseguir mandar qualquer
dinheiro para a casa, os familiares quase morriam de fome. Há relatos
muito tristes, como de uma esposa que dava água quente com sal paras as
crianças dormirem e para que elas parassem de chorar de fome. Se essa
bolsa família conseguiu algo, foi dar um fôlego para essas famílias que
ficavam sem receber nada.