Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

terça-feira, 1 de abril de 2014

1964, O Ano Estranho

Terça, 1º de abril de 2014

Jango
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1964, O Ano Estranho
Maria Aparecida Torneros
Naquele 31 de março de 1964 eu tinha 14 anos. Vivi as agruras do golpe militar em família e nas conversas amedrontadas no colégio Pedro II, no Centro do Rio de Janeiro, onde cursava a terceira série ginasial.
Meu tio, casado com a irmã do meu pai, operário na Fábrica Nacional de Motores, em Xerem, foi preso no local de trabalho e levado para lugar ignorado. Sua mulher e o casal de filhos vierem para a casa da minha avó, e meu pai começou a via crucis para localizar o desaparecido. As notícias surgiam camufladas, era preciso queimar seus livros, ele era dirigente do sindicato dos metalúrgicos e declaradamente comunista.
Minha avó, uma simpatizante do presidente Getúlio Vargas e minha mãe ferrenha eleitora do Presidente João Goulart, repentinamente, no subúrbio onde vivíamos, fomos recomendados a evitar comentar nossas opiniões e encobrir a prisão do meu tio. Mamãe era ouvinte da rádio Mayrink Veiga na madrugada, ela adorava Leonel Brizola.
Papai levou meses peregrinando até encontrar meu tio na carceragem do presídio Frei Caneca, dividindo a cela, entre outros, com o militante famoso Mario Lago.
Os meses foram passando, o 64 corria como um ano da minha adolescência inquieta, os colegas traziam histórias de irmãos mais velhos também presos, o governo militar parecia endurecer cada dia mais e mais, instalou-se o medo e, naturalmente, iniciaram-se as reações.
Os professores evitavam responder nossas perguntas sobre o que acontecia, eu ia completar 15 anos em setembro e meu pai escondeu da família que sofria um processo de afastamento para averiguações no setor estadual onde trabalhava.
Ficou meses sem trabalhar e com salários suspensos, mesmo assim, humildemente, ganhei um bolo caseiro, um vestido simples cor de rosa e o meu primeiro par de sapatos brancos de saltinhos altos que minha avó me deu.
Ano estranho. Brasil amedrontado. Começava então um período negro. Lembro que até 1968, aprendi a participar de passeatas, a trocar informações codificadas com os colegas, fui acrescentando noções básicas de história e sociologia aos meus estudos, acompanhei a ida de amigos que debandavam para a luta armada.
Em 69, iniciei minha faculdade, na UFF, onde presenciei mais de perto o movimento dos companheiros que aderiram à resistência e se sacrificaram dando suas vidas em prol do sonho de restabelecer a democracia em nosso país.
Os anos 70 apontaram que havia repressão e tortura em doses altas, tive muito medo sempre, sabia que a tal abertura viria, aos trancos e barrancos, mas as dores e arbitrios deixariam marcas em nossa geração para sempre.
Hoje tenho 64, passaram-se 50 anos, convivi e convivo com muitos amigos e amigas que foram perseguidos e torturados, alguns foram exilados e voltaram. Outros sumiram.
Perdi alguns de uns anos para cá, estes, enquanto viveram nunca deixaram de resgatar episódios tristes dessa história para que os brasileiros das novas gerações tomem conhecimento do que se passou e nada disso se repita.
Hoje sabemos que o Presidente João Goulart caiu com ajuda da CIA americana e de uma parcela de empresariado nacional, além das forcas militares, foi um golpe pela tomada do poder desrespeitando a democracia.
Reconquistamos o direito de escolher governantes, estive no comício das Diretas Já, tentamos consolidar a ordem de uma sociedade ainda infestada de práticas duvidosas, necessitada de combater violência e injustiças, desigualdades sociais e grande manipulação viciosa por parte de expressivo percentual de sua classe política.
1964 ressoa em mim, na adolescente que fui, perplexa, que assistiu o Brasil refém de regime militar, assim como 2014 reflete em mim, agora, um tempo representado por meio século de esperanças no avanço de consciência e no respeito aos que se tornaram mártires no enfrentamento à ditadura em nossa terra.
Aos 64, trago ainda, muitas perguntas sem respostas, que fiz aos 14. E, tenho ainda, a esperança de que os ideais de liberdade de pensamento e convivência democrática sadia, dentro da lei, sejam alcançados com desenvolvimento e paz, em nosso Brasil.
Cida Torneros, jornalista e escritora, mora no Rio de Janeiro . Edita o Blog da Mulher Necessária, onde o texto foi publicado originalmente