Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados."

(Millôr Fernandes)

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Poderes em desequilíbrio

Quinta, 11 de agosto de 2011
Por Ivan de Carvalho
Ontem, ao tratar neste espaço da Operação Voucher da Polícia Federal, com a prisão de mais de 30 pessoas (o total de mandados de prisão preventiva ou temporária foi de 38), assinalei que “a PF conseguiu por as mãos – não algemas, que gostaria, mas cuja imposição abusiva o Supremo Tribunal Federal proibiu uns tempos atrás – em 33 pessoas”. 
    Ontem mesmo, mais tarde, vi na Internet foto de algumas das pessoas presas sendo conduzidas, algemadas e cada uma com um cinto laranja na cintura (invenção nova na PF brasileira). O erro do jornalista, provavelmente pela diferença entre o horário em que escrevi e o horário em que as algemas apareceram em cena, pode ser incômodo, mas tem pouca ou nenhuma importância ante o significado do fato.

    Não faz muito tempo, o Supremo Tribunal Federal, consolidando sua jurisprudência – que inclui, com relatório do ministro Marco Aurélio Mello, a anulação de um julgamento do Tribunal do Júri da Comarca de Laranjal Paulista, por abuso na utilização de algemas –, editou a Súmula Vinculante 11, cujo teor é o que segue:

    “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.

    As decisões precedentes do STF e a Súmula Vinculante 11 encontram seu fundamento, segundo deixa evidente a Corte Suprema em sua jurisprudência a respeito de algemas, na preservação da dignidade humana. Foi esta dignidade que a Polícia Federal, por seus prepostos envolvidos na Operação Voucher, agrediu, não apenas covardemente, mas numa atitude de ostensivo desacato a decisão do Supremo Tribunal Federal.

    A ilicitude do procedimento da PF está evidente quando se verificam as condições em que as algemas (e os pirotécnicos cintos laranja) foram usadas. As algemas foram impostas aos presos – já sob pacífica custódia da Polícia Federal desde o momento em que lhes foi comunicada a prisão – para que fossem deslocados da detenção da Polícia Federal em São Paulo para o ônibus da própria Polícia Federal, ônibus que cheio de presos desarmados e agentes armados foi até o aeroporto, onde houve o embarque em avião da PF, igualmente muito bem guarnecido de agentes.

     Em outras palavras: não houve resistência, não havia fundado (nem mesmo infundado) receio de fuga, nem perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros. Portanto, nenhum dos requisitos para o uso, excepcional conforme a súmula do STF, das algemas. O que o comportamento da PF permitiu foi que os presos (alguns deles, pelo menos) fossem fotografados algemados pela imprensa, com o que materialmente foi atingida sua dignidade humana, no entender da Constituição da República interpretada pelo STF.

    Noticia-se que o ministro da Justiça determinou à Polícia Federal que esclareça seu procedimento, o que é chover no molhado, pois a súmula do STF já determina que isto seja feito, por escrito. A desobediência da PF ao STF, nos termos da Súmula Vinculante 11, implica na nulidade das prisões e dos atos processuais a que se refere. Também obriga à responsabilização disciplinar, civil e penal da autoridade.

Além disso, os presos algemados poderão processar a União por danos morais por haverem sido algemados e, quando for o caso, por indiciamento sem indícios e prisão sem causa, como certamente terá sido o caso do ex-deputado baiano Colbert Martins Filho.

De resto, se nada de sério acontecer por causa desse desacato da PF a decisão do Supremo Tribunal Federal, forçoso será convir que o Judiciário terá passado a Poder de segunda classe, o que há muito já aconteceu com o Congresso Nacional – fenômeno péssimo para garantia da liberdade e o exercício – até mesmo a preservação – de um regime democrático no país.

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Este artigo foi publicado originalmente na Tribuna da Bahia desta quinta.
Ivan de Carvalho é jornalista baiano.