Domingo, 18 de agosto de 2013
Marwan Bishara Al-Jazeera, Qatar
Com a situação em escalada rumo a confronto declarado entre os
militares egípcios e apoiadores da Fraternidade Muçulmana, Washington
brinca mais uma vez de cabra-cega com Estados seus fregueses.
Feliz de ver os islamistas de volta, o governo dos EUA resistiu a
chamar de golpe a derrubada do presidente Morsi, nem depois de
influentes membros do Congresso a terem identificado como tal. O governo
Obama queria que o golpe prosperasse, mas não queria ser apanhado com
sangue nas mãos. Mas se contava com conseguir acalmar os militares e
manobrá-los, errou.
Os generais decididos a conter, se não a quebrar, a Fraternidade,
viram os problemas políticos que o Egito enfrenta como problemas de
segurança a exigirem o uso da força. Impuseram leis de emergência que
permitem maior controle, mas o movimento só fez aumentar a violência.
Prepararam-se para atacar violentamente os apoiadores de Morsi. E viram
Washington permanecer quase integralmente em silêncio.
Os clamores dos EUA por moderação, diálogo e pela volta das urnas
pareceram mais retóricos que práticos ou efetivos. A ansiedade por
manter relação íntima com os militares e por continuar relevantes no
Egito impediu que os norte-americanos tomassem posição clara.
INVESTIR NOS MILITARES EGÍPCIOS
O Egito é “importante aliado não OTAN”, com as ligações de militares
com militares no centro de tudo. As relações entre os militares egípcios
e o ocidente começaram depois do Tratado de Paz de 1979 entre Israel e
Egito. E fizeram do Egito o segundo maior beneficiário de assistência
bilateral,[1] atrás só de Israel.
Para tanto, foi necessário um grande investimento financeiro e
militar que totalizou US$ 66 bilhões desde a assinatura do Tratado de
Paz. A corte que os americanos fazem aos generais egípcios custa aos EUA
US$ 1,3 bilhão ao ano, desde 1987.
Presentes caros, como 1.000 tanques e 221 jatos de combate, ao custo
de bilhões, mostram o quanto os EUA comprometeram-se com o Egito.
Em 2011 – ano da revolução –, o Egito recebeu quase 1/4 de todos os
fundos do Financiamento Norte-americano para Militares Estrangeiros
[orig. America’s Foreign Military Financing]. A colaboração EUA-Egito resultou, dentre muitas outras coisas, numa força egípcia americanizada de defesa.
Anualmente, mais de 500 oficiais egípcios beneficiam-se do sistema
norte-americano de educação militar. Entre esses, altos oficiais
egípcios, inclusive o comandante da Defesa Nacional, general Abdel
Fattah al-Sisi, que se formou na Academia de Guerra dos EUA na
Pennsylvania, e o comandante da Força Aérea, Reda Mahmoud.
A educação e a formação dos oficiais egípcios em academias militares
norte-americanas, os programas de treinamento e os exercícios militares
conjuntos geraram traços duradouros de ligação entre os establishments dos dois países.
DUAS POSIÇÕES QUE SÃO UMA
A questão então é: com os militares egípcios convertidos em parceiros
que já causavam tantos embaraços – o que os EUA deveriam ter feito? Um
ultimato? Cortar a ajuda, depois de anos durante os quais os EUA foram
fonte de fundos tão significativos?
A sabedoria convencional no establishment político no Oriente
Médio, especialmente entre os aliados de Israel, reza que Washington
precisa manter relacionamento íntimo com os militares egípcios, e
sempre.
Há quem diga que os militares egípcios são aliados confiáveis e
indispensáveis naquele mar revolto; e apoiá-los serve também aos
interesses da segurança nacional dos EUA. Para esses, as forças civis
emergentes – populares, se for o caso; islamistas ou seculares – não são
nem amistosas nem confiáveis. Outros dizem que calar qualquer crítica
permite que Washington exerça alguma influência na tomada de decisão dos
militares.
O recém nomeado “enviado de paz” de Washington para o Oriente Médio,
Martin Indyk, diz que os EUA devem comunicar-se por canais privados com
os militares do “maior, militarmente mais poderoso, culturalmente mais
influente e geoestrategicamente mais importante país do mundo árabe”,
nunca trabalhar contra eles.
PAPÉIS INVERTIDOS
Alguns, uma minoria no establishment de Washington, defendem o
rompimento de relações com os militares egípcios se não puserem fim à
violência. Veem qualquer sinal de cumplicidade entre os EUA e os
militares egípcios autoritários como danoso aos interesses dos EUA de
longo prazo, sobretudo porque abre caminho para algum tipo de retaliação
por islamistas na região.
Mas é ilusório supor que esse tipo de alerta merecerá qualquer
atenção em Washington. Que sentido haveria em cortar a ajuda militar,
num momento em que os EUA vão rapidamente perdendo a importância na
região?
Vendo reduzirem-se o próprio poder de alavancagem e a própria
influência, sobretudo se se consideram os eventos dramáticos em curso na
Síria, Iraque, Irã, Líbano e em toda a região de modo geral, Washington
absolutamente não poderá abrir mão de um dos poucos pilares
estratégicos que lhe restam no Oriente Médio.
Os militares egípcios sabem perfeitamente disso tudo e compreendem
muito bem a utilidade que têm para os EUA na região. Por exemplo: e se o
próprio Egito decidir ‘separar-se’ dos EUA? Com certeza haveria pânico
em Washington e não menos pânico em Israel.
Afinal de contas, não é o Egito quem ajuda os EUA a manter a estabilidade por ali e a preservar a segurança de Israel?
O CAMINHO ADIANTE…
Washington muito apreciaria que os generais pusessem fim à violência, que entregassem o país a governo civil, que admitissem um retorno rápido ao processo democrático e até, talvez, que se recolhessem de volta à caserna.
Washington muito apreciaria que os generais pusessem fim à violência, que entregassem o país a governo civil, que admitissem um retorno rápido ao processo democrático e até, talvez, que se recolhessem de volta à caserna.
Mas, se dizem tal coisa, os EUA só o dizem em voz baixa, sem o
cuidado de fazer saber aos generais que o fracasso deles terá
consequências que lhes serão cobradas. Com a espiral de violência
alastrando-se pelas ruas do Egito, os EUA teriam de fazer valer o poder
de alavancagem que tenham sobre os militares egípcios.
A declaração da Casa Branca e a fala do secretário de Estado
condenando a violência não são, de modo algum, bom começo. Condenar a
violência? Mas todos condenaram a violência… Até os generais egípcios!
Não há conversa privada ou com os
respectivos botões ou arrependimentos públicos que consiga conter a
escalada da violência. Se têm real poder sobre o seu estado-freguês, os
EUA têm de começar por dizer aos generais egípcios: acabem com a lei de
emergência e reponham em cena as urnas. Não há terceira via. É isso ou
isso.
Fonte: Tribuna da Imprensa