Quinta, 18 de dezembro de 2014
Da Pública
Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo
Enquanto manifestações contra a violência policial que atinge os negros ocorrem há meses nos Estados Unidos, o Brasil recebeu com total indiferença os últimos dados de violência policial em seu território, elaborados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Confrontos com a polícia resultaram na morte de 2.212 pessoas em 2013 em todo o país. Em média, seis pessoas por dia morreram atingidas por armas policiais no ano passado no país.
Segundo dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro obtidos pela Agência Pública,
os homicídios decorrentes de intervenção policial no estado do Rio, os
famosos autos de resistência, tiveram um aumento de 30% entre 2013 e
2014. Até outubro de 2014, 481 pessoas morreram; foram 381 até outubro
de 2013, e 416 em todo o ano de 2013. É praticamente o mesmo número de
homicídios cometidos pela polícia dos Estados Unidos em um ano, em um
território de 300 milhões de habitantes – há 16 milhões de habitantes no
estado do Rio.
Os números de 2014 mostram ainda que, apesar da diminuição desses
homicídios no estado após a adoção das Unidades de Polícia Pacificadora
(UPP), em 2008, esses crimes estão de novo subindo. Ainda permanecem,
contudo, distantes do recorde de 2007, com 1.330 mortos pela polícia.
No estudo sobre a violência fluminense “Segurança pública, violência e
polícia: o que aconteceu com o Rio de Janeiro” (2014), a pesquisadora
Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania
da Universidade Cândido Mendes, mostra que o aumento ou a diminuição
dos homicídios de um modo geral estão ligados à violência policial. Se a
polícia é mais violenta, o conjunto da sociedade se torna também mais
violento. Com a chegada das UPPs, “os autos de resistência recuaram 70%
se compararmos com o ano de seu ápice, 2007 com 2013, e as taxas de
homicídio caíram para 28 por 100.000 em 2011 e 2012, contra 40 a 50 por
100.000 nos anos 2000”. Por isso, a pesquisadora acredita que “as UPPs
são em boa medida um programa de ‘pacificação da polícia’”. Ela ressalta
que “para as favelas sem UPPs prevaleceu a autorização para matar”.
“Sem mudar profundamente a polícia e as políticas de segurança não
seremos capazes de controlar os problemas de violência e criminalidade
no estado”, escreve.
“Stamos
em pleno Mar”, de Laura Taves. 9 placas vermelhas que os bombeiros usam
para alertar o perigo no mar: “PERIGO CORRENTEZA” : PERIGO IGNORÂNCIA /
PERIGO PASSIVIDADE / PERIGO INDIFERENÇA, com os números cumulativos
entre 2003 e 2013 dos homicídios resultantes de intervenções policiais
no estado do Rio/Evento de arte ALALAÔ (galeria A Gentil Carioca). 30
nov 2013
Existem várias pesquisas sobre os autos de resistência no estado do
Rio desde pelo menos 1997, quando foi publicado o estudo “Letalidade da
ação policial no Rio de Janeiro”, feito por Ignácio Cano, sociólogo do
Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (Uerj).
O pesquisador Michel Misse, sociólogo do Núcleo de Estudos da
Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), produziu o estudo “Autos de resistência: uma análise
dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro
(2001-2011)”. Uma das conclusões mais importantes do trabalho foi
mostrar que o Ministério Público (MP) propôs o arquivamento em 99,2% dos
casos de auto de resistência. Isso significa que, para o MP, em quase
todos os casos, a polícia atua em legítima defesa e, como consequência,
não recebe nenhuma punição. Recentemente, o delegado Orlando Zaccone
analisou em sua tese de doutorado os fundamentos que levaram o MP a
decidir pelo arquivamento de mais de 300 casos entre 2005 e 2009.
Cabe também destacar o estudo “Autos de resistência em São Gonçalo”. O
trabalho veio justamente do MP e foi produzido em 2008 por Paulo
Roberto Mello Cunha Júnior, que foi promotor titular do Tribunal do Júri
em São Gonçalo, no Rio. Todas as investigações de especialistas em
criminologia chegam à mesma conclusão, resumida pelo delegado Zaccone na
seguinte frase: “Em suma, a polícia mata, mas não mata sozinha”. Se a
polícia mata tanto é porque, na maioria dos casos, sabe que não haverá
problemas judiciais por conta disso. No dia a dia, a Justiça acaba
legalizando as mortes por autos de resistência como se fossem legítima
defesa.
Na teoria, o Ministério Público é o órgão que pode controlar e punir
os abusos da polícia, seja ela civil ou militar. Mas, segundo todos os
estudos, a Justiça costuma acreditar na versão policial. Aceita-se uma
investigação mal feita mesmo quando há muitas contradições no que foi
relatado pelos policiais, mesmo quando poucas perícias foram realizadas
ou mesmo quando tudo aponta para um excesso de força ou até para uma
execução sumária.
Michel Misse define o relato dos policiais como “uma
narrativa-padrão observável na imensa maioria dos casos analisados: os
termos de declaração diziam que os policiais estavam em patrulhamento de
rotina ou em operação, em localidade dominada por grupos armados, foram
alvejados por tiros e, então, revidaram a ‘injusta agressão’. Após
cessarem os disparos, teriam encontrado um ou mais ‘elementos’ baleados
ao chão, geralmente com armas e drogas por perto, e lhes prestado
imediato socorro, conduzindo-os ao hospital. Em quase todos os ‘autos de
resistência’ é relatado que as vítimas morreram no caminho para o
hospital, e os boletins de atendimento médico posteriormente atestam que
a vítima deu entrada no hospital já morta”.
Em sua análise de cem casos de autos de resistência em São Gonçalo, o
promotor Mello Cunha nota que “a prática de socorrer sempre os
‘feridos’ nos confrontos – em 100% dos autos de resistência pesquisados –
é ainda mais suspeita quando comparamos com outras ocorrências”. “De
fato, a experiência indica que quando se trata de homicídio ou mesmo
acidentes de trânsito, o Corpo de Bombeiros ou o Serviço de Atendimento
Médico de Urgência (Samu) é acionado para prestar o socorro à vítima ou
recolher o cadáver. A praxe, porém, se inverte quando se trata de autos
de resistência”, escreve Mello Cunha.
Em muitos casos, os autos de exame cadavérico – outro exame pericial –
demonstram ser muito improvável que a vítima pudesse apresentar sinais
de vida que justificassem a sua remoção para um hospital. São bastante
comuns as hipóteses de laceração do coração, dos pulmões ou do cérebro,
indicando ser muito improvável que a vítima ainda estivesse viva quando
foi socorrida. Em 32% dos casos de São Gonçalo as vítimas tinham mais de
três ferimentos, com algumas chegando a ter mais de dez feridas de
entrada de projétil de arma de fogo. O fato de a polícia mover o corpo
dificulta a realização do exame do local do suposto confronto, que, na
prática, nunca está no inquérito policial. A ausência de perícia no
local impede o recolhimento das balas que permitam os exames de
confronto de balística, também praticamente inexistentes em casos de
autos de resistência. Nunca é feita também a reconstituição para
determinar a veracidade dos confrontos alegados pela polícia.
Em vez de fazer todos esses exames (do local e de balística) e a
reconstituição, a Polícia Civil prioriza encontrar a folha de
antecedentes criminais da vítima. “A construção da legitima defesa é
feita não por conta de como foi realizada a ação do policial, isso é o
que menos importa. O que mais importa é a identificação do morto. Se ele
for negro, favelado, tinha uma folha de antecedentes criminais, ou
algum familiar relata que ele estava envolvido com o crime, é suficiente
para legitimar a morte”, escreve o delegado Zaccone. De fato, as
perguntas feitas aos familiares quando chamados são sempre para
determinar “o caráter moral da vítima”. Até quando a família responde
que a vítima era trabalhadora ou estudante as perguntas insistem em
duvidar dessa versão, e tentam descobrir se era viciada em algum tipo de
droga – o que poderia também “justificar” sua morte.
Michel Misse notou que “em todos os inquéritos de ‘autos de
resistência’ não se costuma solicitar a folha de antecedentes criminais
para os policiais”. “Interessa mais saber sobre o passado da vítima do
que ter acesso à vida pregressa do autor do fato ou à quantidade de
homicídios que ele já cometeu em serviço”, relatou.
Em São Gonçalo, o estudo demonstra que, para 82% dos mortos, não
havia qualquer informação no inquérito policial sobre os antecedentes da
vítima, uma informação comumente obtida por meio de uma simples
consulta eletrônica ao banco de dados. Quando a folha de antecedentes
criminais estava presente no inquérito policial, 7% dos mortos possuíam
alguma anotação ou condenação antecedente. Outros 7% não tinham qualquer
envolvimento anterior documentado com atividades criminosas. Já 3% dos
opositores mortos – embora não houvesse qualquer informação oficial
sobre eles – foram identificados pelos próprios policiais militares
envolvidos no confronto como “gerentes do tráfico”, “chefes do tráfico”
ou mesmo “donos do morro”.
Paulo Roberto Mello Cunha aponta várias contradições nas versões da
polícia sobre o suposto enfrentamento com bandos armados: “O baixíssimo
índice de apreensão de armas longas e o número altíssimo de revólveres
calibre 38 apreendidos com supostos opositores demonstra, de duas, uma:
ou os policiais não estão enfrentando constantemente grupos fortemente
armados; ou não existem tantos fuzis em poder dos criminosos como querem
nos fazer crer. Não há outra opção. Ademais os policias contam sempre
que os bandos armados, atirando primeiro, conseguem atingir o adversário
em apenas 2% dos casos. Ou estas pessoas não têm a mínima noção de como
utilizar uma arma de fogo, ou há um número incrivelmente alto de
deficientes visuais militando na vida do crime. Em suma, chamar de
investigação o que acontece nos inquéritos relativos aos autos de
resistência seria um verdadeiro deboche”.
As conclusões desses especialistas em criminalidade são terríveis
para todo o aparato de segurança e, consequentemente, para a sociedade.
“É insuficiente atribuir a responsabilidade por estas mortes a uma
‘cultura policial’. O dever legal de fiscalização do inquérito cabe ao
Ministério Público que, no entanto, tende a não exigir mais do que a
inclusão das peças minimamente necessárias para o arquivamento dos
procedimentos dentro da formalidade obrigatória, sendo raras as posturas
dissonantes de promotores”, escreve Michel Misse. Sobre o trabalho dos
juízes, o especialista constatou o seguinte: “Os juízes do Tribunal do
Júri, por sua vez, têm a prerrogativa de contestar estes arquivamentos,
mas, salvo poucas exceções, tendem não apenas a acatá-los como a
rejeitar denúncias e impronunciar os casos, devido à falta de elementos
mínimos para fundamentar uma acusação”.
Sem defender a polícia, o delegado Zaccone diz que o Ministério
Público tem grande responsabilidade nesses casos: “O MP diz que não
consegue responsabilizar a polícia porque os inquéritos são mal feitos,
só que eles usam nos pedidos de arquivamentos tudo o que é construído no
inquérito. Então, se os inquéritos são mal feitos, as promoções de
arquivamentos são péssimas e, de fato, são péssimas”.
O promotor Mello Cunha Júnior é mais duro, qualificando todo o
processo de “um verdadeiro pacto da hipocrisia”. “A Polícia Militar
finge que se confronta com marginais, a Polícia Civil finge que
investiga estes confrontos, o Ministério Público finge que fiscaliza a
ação dos policiais e o véu da mentira oficial a tudo encobre para
felicidade geral da nação”, escreve. Vale dizer que isso é válido para
somente parte da nação, porque a outra parte está sofrendo. “A maioria
dos confrontos ocorre em incursões deliberadas, feitas pelos policiais
naquelas áreas onde sabem que encontrarão oposição armada. Podem ser
consideradas verdadeiros duelos programados, que nada, ou muito pouco
tem a ver com a segurança da população. Com elas, consegue-se apenas
tornar crônicos os conflitos armados, aumentando o número de mortos,
expondo os policiais a maior risco e impondo maior grau de insegurança à
população local.”
Algo se quebrou
São muitos os relatos de famílias destruídas pela ação da polícia em
favelas cariocas. Ana Paula Gomes de Oliveira diz, de antemão, que não é
mais a mesma pessoa depois da morte do seu filho. “Algo se quebrou em
mim. Uma parte de mim está destruída. E é a mesma coisa para minha
família”, disse. Seu filho Jhonatha de Oliveira Lima, de 19 anos, morreu
em 14 de maio ao ser atingido por uma bala nas costas. Ele foi o quinto
morto da UPP Manguinhos desde a sua instalação. Por quê? Como? Por
azar, por passar no lugar errado, na hora errada.
Jhonatha era militar, não estava envolvido com o crime. Mas, nesse
dia, havia um confronto entre policiais da UPP e moradores que atiraram
pedras contra a polícia. Jhonatha estava a caminho da casa de sua avó
quando foi atingido. Deliberadamente? Acidentalmente? A investigação
ainda está em andamento. “O policial disse que Jhonatha tinha uma arma e
atirou contra ele”, disse a mãe. A Secretaria de Segurança Pública e o
MP (o promotor não quis dar entrevista) confirmaram que o policial foi
indiciado pelo crime de homicídio culposo (sem intenção de matar).
Como explicam os diferentes estudos citados nesta reportagem, a
presença de testemunhos diretos impede que o caso seja arquivado pelo
MP. Mas, mesmo quando não se trata de auto de resistência, a Justiça se
torna menos punitiva contra a polícia. Como explicar que o policial
responsável pela morte de Jhonatha siga trabalhando na mesma UPP, como
confirma a Secretaria de Segurança Pública? Para todos os outros
policiais da UPP, sua presença depois de um homicídio não é a
confirmação de que “se pode matar e nada vai acontecer”?
Depois da morte de seu filho, Ana Paula tornou-se ativista no Fórum
Social de Manguinhos, e foi recentemente a Brasília para apoiar o
projeto do deputado Paulo Teixeira (PT-SP) de acabar com os autos de
resistência. Sua amiga Fátima dos Santos Pinho de Menezes também perdeu
um filho de 18 anos nas mãos da polícia e foi testemunha da morte de
Jhonatha. O filho dela, Paulo Roberto Pinho de Menezes, foi espancado
até a morte e depois asfixiado por cinco policiais, que foram indiciados
pelo crime de lesão corporal seguida de morte. Eles continuam
trabalhando, mas em outros batalhões da PM, enquanto esperam pelo
julgamento.
Tanto para Paulo Roberto como para Jhonatha, as duas mães sabem que a
estratégia da polícia será a de apresentar seus filhos como criminosos
para convencer o júri de que houve “legítima defesa”. Com isso, pode ser
que, se nada mudar na mentalidade da sociedade e da Justiça, os
policiais sejam absolvidos. “No Brasil, o criminoso é desprovido de
todos os direitos, incluindo o direito maior, que é o direito à vida”,
escreve Zaccone. Em sua tese, o delegado faz uma comparação interessante
com uma pesquisa da Anistia Internacional de 2011, na qual se constatou
que, nos 20 países que ainda mantêm a pena de morte em todo o planeta,
foram executadas 676 pessoas, sem contabilizar as penas capitais
infligidas na China, que se nega a fornecer os dados. No mesmo período,
somente os estados do Rio de Janeiro e São Paulo produziram 961 mortes a
partir de ações policiais, observando que em 2011 foi comemorado um
decréscimo da violência letal a partir de ações policiais. “A pena de
morte, proibida na Constituição brasileira, na realidade é legalizada
pela ação da polícia e da Justiça”, conclui o delegado. Logo, um
criminoso não merece viver, e pouco importa se era mesmo um criminoso ou
não.
O diretor executivo da Anistia Internacional no Brasil, Atila Roque,
reage à comparação feita por Zaccone. “É verdade que devemos defender os
mais esquecidos na sociedade. O Brasil é um pais que pune muito. Somos a
quarta maior população prisional do mundo. Não é verdade dizer que o
Brasil é o país da impunidade total. É o país de uma certa impunidade,
que exerce a impunidade de forma seletiva. A pessoa que comete um crime
não está fora do direito, está sob cuidado do Estado, não pode ser
vítima de execução. Um criminoso não tem os seus direitos suspensos.”
Falta ensinar isso nas academias de polícia e lembrar a Justiça disso.