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(Millôr Fernandes)

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

"Coração Valente" tomou posse?

Sexta, 2 de janeiro de 2015

Por Aldemario Araujo Castro*
Fonte: http://www.aldemario.adv.br

 

Afirmei, às vésperas do segundo turno da eleição presidencial de 2014: “Portanto, no essencial, Aécio e Dilma são 'iguais' (representam os mesmos interesses). Meu voto será nulo. Não me sinto minimamente representado pelos dois projetos políticos postos. Insisto que Aécio e Dilma são faces da mesma moeda, embora as imagens e os coloridos sejam aparentemente diversos. Não creio que o voto nulo deve ser evitado a todo custo. Pode ser a alternativa de quem adota um critério 'mais rígido' entre duas opções (substancialmente iguais e ruins)” (1).

No site de campanha da Presidente Dilma Rousseff, meticulosamente apelidada de “coração valente”, podem ser encontradas as seguintes afirmações da candidata (2):

“Brasil, mais uma vez, essa filha é tua, não fugirá da luta”.

“Nós, que lutamos tanto para você melhorar de vida, não vamos permitir que nada, nem ninguém, nem crise, nem pessimismo tire de você o que você conquistou”.

“Férias, Décimo Terceiro, Horas Extras, Fundo de Garantia: todas são conquistas que o povo brasileiro não vai deixar isso ser ameaçado ou combatido. É algo que nós conquistamos ao longo de uma história de luta por várias gerações. Não tem flexibilização, isso é conquista, e conquista se defende”.

“Nem que a vaca tussa nós vamos mexer nos direitos trabalhistas!”

No dia 29 de dezembro de 2014, várias autoridades do primeiro governo Dilma Rousseff, sintomaticamente sem a presença da própria, anunciaram “ajustes” nas despesas relacionadas com o(a): a) abono salarial; b) seguro-desemprego; c) seguro-desemprego do pescador artesanal; d) pensão por morte e e) auxílio-doença. Pretende-se, com as medidas restritivas de direitos trabalhistas e previdenciários, uma “economia” de cerca de 18 (dezoito) bilhões de reais (3). As manchetes nos meios de comunicação e as primeiras avaliações apontam o “alvo” das “maldades valentes”:

“Governo arrocha trabalhador” (Correio Braziliense).

“Essas medidas são um chute no joelho do trabalhador” (Rodolfo Peres Torelly).

“Governo torna mais rigoroso acesso a benefícios previdenciários” (Portal G1)

“Governo torna mais rígidas regras de pagamento de benefícios sociais” (Portal da Folha de São Paulo)

“Mudanças em benefícios deixam milhões ao deus-dará, diz Força Sindical” (Portal UOL)

“Governo torna mais rígido acesso a pensão e seguro-desemprego” (Portal Estadão)

“Governo ataca direitos dos trabalhadores, aposentados e pensionistas para privilegiar o pagamento de juros da dívida” (Auditoria Cidadã da Dívida)

Notícias nos meios de comunicação apontam que estão sendo preparadas várias medidas voltadas para o aumento da tributação sobre o consumo, com o “conveniente esquecimento” da oneração tributária do capital e da propriedade. “A Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), que incide sobre o diesel e a gasolina, atualmente zerada, poderá subir, assim como o Imposto Sobre Operações Financeiras (IOF) para empréstimos” (4).

Se o propósito das medidas já anunciadas e daquelas ainda gestadas é o fortalecimento do caixa do Poder Público (para garantia de serviços públicos e direitos sociais adequados, espera-se), algumas (entre outras) importantes e valentes alternativas podem ser cogitadas:

a) supressão da isenção de imposto de renda sobre lucros e dividendos distribuídos aos sócios, abrangidas as remessas para o exterior, obra do governo Fernando Henrique Cardoso, mantida pelos governos Lula e Dilma;

b) adoção de patamares adequados para o imposto de renda nas operações financeiras em bolsa de valores;

c) eliminação da isenção do imposto de renda nas aplicações de títulos da dívida pública brasileira, implementadas no governo Lula;

d) extinção da esdrúxula figura dos “juros sobre o capital próprio”, outra obra do governo Fernando Henrique Cardoso, mantida pelos governos Lula e Dilma;

e) fim da tributação exclusiva na fonte sobre os ganhos e rendimentos de capital;

f) implementação da auditoria da dívida pública e anulação de sua parte ilegítima. “Interessante observar que o governo defende o ajuste alegando que ele permitirá uma redução de R$ 18 bilhões nos gastos com seguro-desemprego, pensões e outros benefícios durante todo o ano de 2015. Tal valor corresponde a apenas 5 dias de pagamento da dívida pública no ano que vem [este ano de 2015]” (5);

g) redução drástica do “bolsa empresário” em operação no âmbito do BNDES;

h) instituição do imposto sobre grandes fortunas (em atenção a expressa determinação constitucional nesse sentido).

A formação do ministério do novo governo parece um filme de terror cuidadosamente montado e encenado contra os interesses e os anseios mais legítimos da maioria da população brasileira (os 99%, como insistia Luciana Genro durante a campanha eleitoral em 2014). Temos uma equipe econômica completamente alinhada com as posições dos maiores grupos financeiros nacionais e internacionais, a participação significativa do agronegócio mais refratário a democratização do campo brasileiro, um punhado de políticos clientelistas bastante conhecido no cenário político nacional e um repugnante “toma-lá-da-cá” voltado para assegurar a mais vil e torpe maioria parlamentar (em nome da tal “governabilidade”). Alguém, em sã consciência e com honestidade de propósitos, pode acreditar que esses nomes estão comprometidos com um Brasil mais justo, menos desigual, com menor e decrescente corrupção: Gilberto Kassab, Helder Barbalho, Eliseu Padilha, Kátia Abreu, George Hilton, Antonio Carlos Rodrigues, Luís Inácio Adams, Armando Monteiro, Cid Gomes, Joaquim Levy e Cia.

Respondo a indagação do título deste escrito. “Coração valente” não tomou posse neste dia 1o de janeiro de 2015. A razão é muito simples. “Coração valente” não existe, não corresponde a alguém que atende pelo nome de Dilma Vana Rousseff. “Coração valente” é simplesmente uma imagem de marketing eleitoral utilizada para iludir e enganar. A candidata, eleita e empossada, é, só e somente só, a gestora maior de um sistema socioeconômico, com todos os mecanismos e instrumentos institucionais postos e azeitados, responsável pela construção e manutenção de uma das sociedades mais selvagens e desiguais existentes no planeta. Se há alguma valentia, algum traço residual de valentia, é utilizado seletivamente contra os mais necessitados e em favor dos privilegiados de sempre (6).

NOTAS:

(2) Disponível em: http://www.dilma.com.br.
(3) Medidas Provisórias ns. 664 e 665, ambas de 30 de dezembro de 2014. Disponíveis em: http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-1/medidas-provisorias/2014-posteriores-a-emenda-constitucional-no32.
(6) “Os super-ricos brasileiros detêm o equivalente a um terço do Produto Interno Bruto, a soma de todas as riquezas produzidas do país em um ano, em contas em paraísos fiscais, livres de tributação. Trata-se da quarta maior quantia do mundo depositada nesta modalidade de conta bancária”. Disponível em:

*Aldemario Araujo Castro
Mestre em Direito
Procurador da Fazenda Nacional
Professor da Universidade Católica de Brasília
Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (pela OAB/DF)
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